David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for March, 2013

Quando o Khmer Vermelho fez milhões de vítimas no Camboja

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Empresário foi uma das milhões de vítimas do Angkar

A reforma política do Khmer Vermelho culminou em genocídio, miséria e fome (Foto: Reprodução)

A reforma política do Khmer Vermelho culminou em genocídio, miséria e fome (Foto: Reprodução)

Entre os anos de 1975 e 1979, o Camboja, no sudeste asiástico, foi governado pelo Khmer Vermelho, como era mais conhecido o Partido Comunista do Kampuchea (Angkar), uma organização política com o compromisso de promover de Norte a Sul do país uma nova engenharia social baseada na reforma agrária e autossuficiência. O problema é que a tentativa foi ineficaz, resultando em fome e miséria para a maior parte da população do Camboja.

Inocentes eram executados em sítios nas imediações de Phnom Penh (Foto: Reprodução)

Inocentes eram executados em sítios nas imediações de Phnom Penh (Foto: Reprodução)

Nesse período, muitos morreram vitimados por doenças que já tinham cura, como a malária, enquanto muitos outros, considerados opositores do governo, foram torturados e executados pelo Khmer Vermelho. Uma das vítimas do genocídio colocado em prática de 1976 a 1978 pelo Partido Comunista foi o empresário do ramo de transportes Kara Doung Sisowath.

De acordo com o cientista político cambojano Chanto Doung Sisowath, Kara Sisowath foi um dos milhões de alvos da política de genocídio do Khmer Vermelho. “Até hoje não consigo entender a razão da execução do meu pai e de todos os outros compatriotas. Ele não era um homem engajado na política, muito menos criminoso. Pelo pouco que me lembro, se tratava de um homem de família, assim como a maior parte dos cambojanos”, afirma Chanto Doung que era criança na capital Phnom Penh, quando o pai foi executado pelo Khmer Vermelho.

A ditadura do Angkar afetou milhões de cambojanos (Foto: Reprodução)

A ditadura do Angkar afetou milhões de cambojanos (Foto: Reprodução)

Entre 1970 e 1975, o chefe de família dos Sisowath recebeu muitos convites para deixar o país e começar uma nova vida longe da guerra civil que levaria o Khmer Vermelho ao poder. “Ele era patriota e não quis abandonar o Camboja e desistir da sua empresa de transportes. Meu pai disse que continuaria aqui porque ao final da guerra queria ajudar na reconstrução do país. Infelizmente, o seu patriotismo não foi recebido com gratidão”, declara Chanto Sisowath.

Logo as atitudes do empresário foram interpretadas como suspeitas pelo Partido Comunista que não acreditava nas boas intenções de pessoas sem ligação com o Khmer Vermelho. Kara Sisowath foi preso em 1978 e enviado para interrogatório. Um homem chamado Met Chan, conhecido como um contumaz inquiridor, conta que certo dia levaram Sisowath para fora de uma cabana, onde o arrastaram e o espancaram por todo o caminho, até chegarem ao sítio de execuções.

Crianças tiveram de aprender a conviver com a morte (Foto: J. Isaac)

Crianças tiveram de aprender a conviver com a morte (Foto: J. Isaac)

Antes de ser assassinado, o empresário foi algemado e jogado em um porão que ficava em um antigo templo abandonado, com outros três homens. Nenhum dos prisioneiros recebeu comida por dias. Sisowath estava com o rosto inchado e coberto por hematomas. Muitas de suas costelas foram quebradas pelos violentos golpes diários que o fizeram perder a consciência e a capacidade de articular palavras.

O empresário chegou a um ponto de sofrimento que não conseguia mais se mover, nem mesmo pedir por clemência. “Na última vez que falou, ele perguntou pela esposa, filho e filha. Imaginei que estivesse preocupado com a família, mesmo quase morto”, confidencia Met Chan que envergonhado pelo próprio passado começou a denunciar as práticas criminosas do partido em 1985.

Pol Pot e Leng Sary, dois dos maiores criminosos da História do Camboja (Foto: Reprodução)

Pol Pot e Leng Sary, dois dos maiores criminosos da História do Camboja (Foto: Reprodução)

Dois dias após o último interrogatório, Kara Sisowath recebeu três golpes com hastes de metal na parte de trás da cabeça. Met Chan preferiu não falar se o empresário morreu naquele momento ou se agonizou por mais algum tempo. “Meu pai foi morto em julho de 1978, cinco meses antes dos vietnamitas invadirem o Camboja e libertarem os prisioneiros do Khmer Vermelho. Hoje em dia, faço questão de ser uma das vozes que falam ao mundo sobre as atrocidades da política do Angkar [como os cambojanos se referiam ao Partido Comunista do Kampuchea]”, enfatiza emocionado o filho e cientista político Chanto Sisowath.

Durante o domínio do Khmer Vermelho, milhões de cambojanos perderam familiares e amigos. A maioria dos que viveram esse período tem problemas psicológicos e precisam de acompanhamento médico. “Ainda somos uma população assustada”, admite Chanto Doung. Muitos cambojanos talentosos, principalmente intelectuais, optaram por deixar o país, mesmo com o fim da política Angkar, o que foi muito negativo para o Camboja.

O que o Partido Comunista do Kampuchea fez, sob a liderança de Pol Pot e Leng Sary – dois dos maiores criminosos de guerra do país, jamais deve ser ignorado. “É uma lição monumental para as gerações futuras. Que o mundo evite mais dessas atrocidades, mas ao mesmo tempo nunca as esqueça”, ressalta o cientista político.

Curiosidades

Ex-líderes do Khmer Vermelho, Pol Pot e Leng Sary morreram de ataque cardíaco. O primeiro em 15 de abril de 1998 e o segundo em 14 de março de 2013.

Os crimes praticados no Camboja pelo Khmer Vermelho inspiraram a banda de punk-rock Dead Kennedys, uma das mais politizadas do gênero nos EUA, a compor o clássico Holiday In Cambodia, lançado em 1980.

A versão sulista do poema Odisseia

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Filme conduz três condenados por importante etapa da história dos EUA

Detentos são interpretados por George Clooney, Tim Blake Nelson e John Turturro (Foto: Reprodução)

Detentos são interpretados por George Clooney, Tim Blake Nelson e John Turturro (Foto: Reprodução)

Lançado em 2000, o filme O Brother, Where Art Thou? (E Aí, Meu Irmão, Cadê Você?), dos irmãos Joel e Ethan Coen, é uma comédia que mostra três foragidos de uma prisão no Mississippi fazendo o possível para manterem-se livres e voltarem para casa.

Inspirado no poema épico Odisseia, do poeta grego Homero, E Aí, Meu Irmão, Cadê Você? tem como cenário o Sul dos EUA durante a Grande Depressão. No filme, um cego faz a introdução das aventuras que estão por vir. “Vocês três acorrentados encontrarão fortuna, mas não a que procuram. Vão viajar por uma estrada repleta de perigos. Verão coisas maravilhosas, até mesmo uma vaca no telhado de uma fazenda de algodão. A estrada pode dobrar-se e seus corações podem se abater, mas mesmo assim sigam pela estrada que os levará à salvação”, profetiza.

Personagens incorporam com muito bom humor a cultura sulista estadunidense (Foto: Reprodução)

Personagens incorporam com muito bom humor a cultura sulista estadunidense (Foto: Reprodução)

Os três protagonistas são interpretados por George Clooney, John Turturro e Tim Blake Nelson que fazem os papeis de Ulysses, Pete e Delmar. São personagens azarados que conduzidos pela história incorporam com muito bom humor a cultura sulista estadunidense. O trio conhece Tommy Johnson, o rapaz que foi até uma encruzilhada vender a alma ao diabo para se tornar um músico virtuoso, e confronta a organização racista Ku Klux Klan. Curiosamente, o diabo descrito por Johnson tem as mesmas características do xerife que os persegue ao longo do filme.

Uma clara referência ao poema Odisseia é o personagem Big Dan, interpretado por John Goodman, um vilão que tem apenas um olho, assim como o ciclope mitológico. Enquanto no poema os homens de Odisseu abatem o gado, na obra dos Irmãos Coen o gângster Baby Face Nelson quem atropela uma vaca. Além da bela fotografia e das tomadas que remetem ao realismo fantástico, outro ponto alto de E Aí, meu irmão, cadê você? é a antológica trilha sonora regionalista que pauta os acontecimentos, dialogando perfeitamente com o enredo do começo ao fim.

A crise de Kaufman

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Quando as dificuldades de um roteirista se tornam tema de um filme

Nicolas Cage interpreta o próprio roteirista do filme (Foto: Reprodução)

Nicolas Cage interpreta o próprio roteirista do filme (Foto: Reprodução)

Lançado em 2002, Adaptação, do cineasta Spike Jonze, é um filme de caráter metalinguístico que conta a história de um roteirista vivendo uma crise criativa ao adaptar um livro para o cinema.

Depois de Being John Malkovich, Spike Jonze e Charlie Kaufman conquistaram outra parceria de sucesso com o filme Adaptação que conta a história do próprio Kaufman quando teve dificuldades em adaptar o conteúdo de um livro para o cinema. Na obra, Charlie e Donald são dois irmãos interpretados por Nicolas Cage que enveredam pelo mercado cinematográfico.

No filme, personagens antagônicos representam o mesmo autor (Foto: Reprodução)

No filme, personagens antagônicos representam o mesmo autor (Foto: Reprodução)

Enquanto o antisocial Charlie, roteirista com alguma experiência, mais sensível e introspectivo, não consegue dar vida a história de um vendedor de orquídeas, Donald, o extrovertido roteirista iniciante, o faz. A partir das lições aprendidas em workshops sobre roteiro de cinema, o inexperiente Donald atende todas as expectativas da indústria cultural. Cria uma história baseada numa fórmula recheada dos clichês que costumam lotar as salas de cinema.

Donald, que existe apenas no filme, é uma representação das qualidades que faltavam ao verdadeiro Charlie Kaufman durante a crise criativa. Além de ser uma particular idealização de Charlie, Donald é também uma subjetiva figura antagônica do irmão. Do início ao fim, o filme mistura fatos e ficção, tornando mais difícil para o espectador desatento distinguir a realidade da ilusão, se tratando da verdadeira concepção da obra. O filme também traz no elenco algumas estrelas como Meryl Streep, Chris Cooper, Cara Seymour, Tilda Swinton e Brian Cox. A trilha sonora é de Carter Burwell.

Written by David Arioch

March 30th, 2013 at 1:37 pm

Todos querem ser John Malkovich

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A busca do ser humano por uma identidade que o faça sentir-se especial

Being John Malkovich trata da complexidade da natureza humana (Foto: Reprodução)

Being John Malkovich aborda a complexidade da natureza humana (Foto: Reprodução)

Lançado em 1999, Being John Malkovich (Quero Ser John Malkovich), do cineasta estadunidense Spike Jonze, é um filme sobre a busca do ser humano por uma identidade que o faça sentir-se especial, mesmo por alguns minutos.

A obra marcou a estreia do cineasta Spike Jonze que teve o mérito de contar com um bom roteiro de Charlie Kaufman, também conhecido por roteirizar filmes que estão muito além do padrão hollywoodiano – como Adaptação, Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças e Confissões de uma Mente Perigosa.

Obra é protagonizada por John Cusack (Foto: Reprodução)

Obra é protagonizada por John Cusack (Foto: Reprodução)

O argumento do filme de Jonze se sustenta na psicologia da natureza humana, o que justifica porque Quero Ser John Malkovich é pautado na subjetividade da existência. No filme, Craig Schwartz (John Cusack em uma de suas melhores interpretações) é um titereiro que descobre acidentalmente como entrar na mente de John Makovich ao longo de 15 minutos. A descoberta torna-se um refúgio para dar vazão ao sentimento de inferioridade do protagonista.

Logo Craig tem a ideia de partilhar a oportunidade com outras pessoas. Sob influência de uma colega de trabalho, decide cobrar U$ 200 para proporcionar a mesma experiência aos outros. A chance de ser o famoso Malkovich por alguns instantes torna-se uma catarse para muitos, pessoas que se apegam a tal realidade virtual como uma ilusória autoafirmação, e mais, a confirmação da crescente falta de identidade do ser humano.

Nem o homenageado, que na história é um personagem caricato, abre mão da oportunidade de entrar dentro da sua própria mente. Quero Ser John Makovich é um filme que recria diversas realidades pessoais que se afunilam e homogeneizam não partindo apenas do que cada um se condiciona a ver, mas também da necessidade que cada personagem tem de existir para além de si mesmo. O filme também traz no elenco Cameron Diaz, Catherine Keener, Orson Bean e Charlie Sheen. A trilha sonora é de Carter Burwell.

Movidos pela ganância

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O Falcão Maltês, o primeiro filme do gênero noir

Humphrey Bogart interpreta um detetive cínico e ganancioso (Foto: Reprodução)

Humphrey Bogart interpreta um detetive cínico e ganancioso (Foto: Reprodução)

Lançado em 1941, The Maltese Falcon (O Falcão Maltês), do cineasta estadunidense John Huston, é o precursor dos filmes do gênero noir. A obra apresenta personagens imorais e traiçoeiros envolvidos em uma trama que tem como elemento central a procura de uma estátua de ouro coberta por pedras preciosas.

Com estética influenciada pelo cinema expressionista alemão – principalmente no uso de iluminação que privilegia as sombras do ambiente e ressalta a expressividade hermética dos atores, levando o espectador a divagar pelo submundo, o Falcão Maltês entrou para a história do cinema como o primeiro filme noir.

Sem personagens idealizados ou mergulhados em pureza surreal, a obra apresenta um universo realista pautado em defeitos como insegurança, cinismo, hipocrisia, ganância e falsidade. Em O Falcão Maltês, o solitário detetive Sam Spade (Humphrey Bogart) é o maior exemplo da desconstrução de um herói, um protagonista cínico e ganancioso que quando bem pago não mede esforços para concretizar qualquer objetivo.

Trama gira em torno da procura do Falcão Maltês (Foto: Reprodução)

Trama gira em torno da procura do Falcão Maltês (Foto: Reprodução)

Na obra, o detetive e seu parceiro Miles Archer (Jerome Cowan) conhecem Brigid O’Shaughnessy (Mary Astor), uma femme fatale que usa mais a sensualidade e a beleza do que o dinheiro para persuadir homens a ajudarem-na. Brigid contrata a dupla para descobrir o paradeiro da irmã que foi vista pela última vez com um homem chamado Thursby. Logo no início da investigação, Archer é assassinado.

Pouco tempo depois, o espectador descobre que Sam Spade tinha um caso com a mulher de Miles. Envolvido na trama criada por Brigid – que na realidade queria saber a localização de Thursby, um dos envolvidos no roubo do Falcão Maltês, a estátua de ouro coberta de jóias, o detetive decide ir até o fim movido pela ambição e desejo de fazer justiça pela morte do amigo. Os dois elementos confirmam a dualidade e a hipocrisia sempre presente no personagem. Spade mistura honra e dinheiro como se um fosse intrínseco ao outro.

Também é destacável o enaltecimento da figura masculina a partir da personalidade do detetive. Quando Spade conhece os criminosos Joel Cairo (Peter Lorre), Wilmer Cook (Elisha Cook Jr.) e Kasper Gutman (Sydney Greenstreet) – que demonstram certo desvio de sexualidade, ele se sente mais confiante em seu desígnio. O investigador machista crê que a exacerbação da masculinidade lhe garante vantagens sobre os “vilões”. O Falcão Maltês é um filme sobre personagens desiludidos que evitam emoções e estão acostumados a apelar para a farsa.

A megalomania de Frankenstein

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Em 1931, a Universal Pictures lançou a primeira versão cinematográfica de Frankenstein

A criação deveria ser o arquétipo da negação do fim (Foto: Reprodução)

A criação deveria ser o arquétipo da negação do fim (Foto: Reprodução)

Lançado em 1931 pela Universal Pictures, o clássico Frankenstein, do cineasta britânico James Whale, é um filme que gira em torno da ambição do homem em criar vida artificial, o que funciona também como uma crítica sobre a megalomania.

No filme, Henry Frankenstein (Colin Clive) é um ambicioso cientista que tomado por um anormal desejo de poder decide brincar de deus e cria um ser humano. A consequência é uma criatura feita com tecido, carne e órgãos de vários mortos que deveria ser o arquétipo da negação do fim, mas em função das deficiências físicas e psicológicas torna-se um símbolo degenerado da vida post mortem.

No clássico, o monstro é interpretado pelo célebre Boris Karloff (Foto: Reprodução)

No clássico, o monstro é interpretado pelo célebre Boris Karloff (Foto: Reprodução)

Em Frankenstein, o cineasta James Whale conseguiu transportar para o cinema toda a magia inventiva da obra que consagrou a escritora britânica Mary Shelley. A construção de cada personagem, desde Henry Frankenstein ao monstro interpretado pelo antológico Boris Karloff, foi concluída sob influência do cinema expressionista alemão, assim como o cenário que também remete ao romantismo gótico.

Tais referências podem ser observadas na saturação das sombras durante os momentos em que a pouca incidência de luz simboliza o triunfo da escuridão. Cena que ilustra isso é a de Henry Frankenstein e o seu ajudante Fritz (Dwight Frye), extasiados pelo inédito, procurando cadáveres frescos no cemitério, como se fossem deglutidos pelas trevas.

Já se tratando dos personagens, o mais emblemático é o monstro. Inapta a falar, a criatura é impelida a transmitir sensações e emoções por meio de expressões faciais, gestos e grunhidos que embora instintivos transmitem a essência do homem antes do processo civilizatório. Em vários momentos, mesmo privado de sua humanidade e sem saber quem realmente é, a criação de Frankenstein demonstra benevolência e desejo em ajudar, como se manifestasse uma certa consciência de outra vida.

Personagem incorpora a essência humana antes do processo civilizatório (Foto: Reprodução)

Personagem incorpora a essência do homem antes do processo civilizatório (Foto: Reprodução)

A figura do cientista que luta contra as leis naturais da vida também é das mais inesquecíveis, graças ao paradoxo criado por Whale que confunde o espectador sobre quem seria realmente o monstro, criador ou criatura, já que toda criação representa a materialização de um anseio do inventor, mesmo disforme.

O filme considerado um dos maiores clássicos de horror de todos os tempos ainda traz no elenco mais alguns célebres atores dos anos 1930, entre os quais Mae Clarke, John Boles, Edward Van Sloan, Frederick Kerr, Lionel Belmore e Marilyn Harris. A trilha sonora é de Bernhard Kaun. Com um modesto orçamento de 262 mil dólares, Frankenstein arrecadou mais de doze milhões de dólares.

Um retrato da solidão de Travis Bickle

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Quando o homem não se sente parte de lugar algum

Travis Bickle sofre uma metamorfose no decorrer do filme (Foto: Reprodução)

Travis Bickle sofre uma metamorfose em Taxi Driver (Foto: Reprodução)

Lançado em 1976 pelo cineasta estadunidense Martin Scorsese, o filme Taxi Driver, de estética noir, é um retrato da solidão de um taxista inapto a conviver com problemas sociais que se tornaram triviais nos grandes centros urbanos.

A história gira em torno de Travis Bickle (Ro­bert de Niro), um taxista misantropo que em fun­ção da insônia troca o dia pela noite. O protagonista seria apenas mais uma pessoa traba­lhando na madrugada metropolitana, se não fosse pelo fato de começar a rejeitar o papel de sujeito passivo em um mundo que o ignora e o repele.

Personagem é uma consequência do mundo moderno (Foto: Reprodução)

Personagem é uma consequência do mundo moderno (Foto: Reprodução)

Nas primeiras noites de trabalho, Travis assis­te, sob o auxílio dos faróis do táxi, que iluminam e saturam a obscura e underground realidade pe­riférica yankee, o cotidiano de cafetões, prostitutas, traficantes e usuários de drogas; sujei­tos sociais que o personagem deprecia amarga­mente, chegando a desejá-los mortos. A ojeriza cresce, assumindo um formato pertur­bador, quando o protagonista conhece Iris (Jodie Foster), uma garota de 12 anos que se submete ao cafetão Sport (Harvey Keitel).

O contraponto no contexto é Betsy (Cybill Shepherd), funcionária de um candidato ao sena­do, a quem o taxista atende ocasionalmente, des­pertando em Travis um sôfrego e inédito interesse pela essência humana. A personagem feminina encontra a complacência da solidão na excêntrica e complexa personalidade do taxista. Os dois são ostracistas, mas enquanto Travis está em estado avançado de deterioração psicológica e incoerência social, Betsy arquiteta para si um mundo que, mesmo fosco, ainda é digno de ma­leabilidade.

Travis é uma consequência do mundo moder­no, alguém que empurrado para a individualidade sucumbiu antes mesmo de morrer. Mas no decor­rer da história sente-se ressuscitado ao descobrir, mesmo tardiamente, que existe diferença entre assistir a vida como um medíocre espectador e realmente vivê-la.

Bickle carrega na alma as falhas da incomunicabilidade (Foto: Reprodução)

Bickle carrega na alma as falhas da incomunicabilidade (Foto: Reprodução)

O personagem, bastante fragilizado carrega na alma as falhas da incomunicabilidade. Exemplo é a cena em que convida Betsy para ir ao cinema. Quando os dois chegam ao local, ela o abandona ao se deparar com um filme pornô. Alheio à socialização, Travis aparece em muitos momentos monologando em frente ao espelho, hábito cada vez mais moderno, individualista e antagônico à realidade de viver em um mundo cada vez mais populoso.

Do início ao fim do filme, sob um prisma estético, o cenário urbano transmite a contumá­cia do realismo e sofre uma profunda abstenção de cores. Também é chocante o aspecto físico do per­sonagem que pela gradativa implosão de emoções – reflexo de anseios, privações e frustrações, parece sofrer de uma particular metamorfose kafkiana.

A moralidade de Travis Bickle é um elemento intrigante e confuso. Ao mesmo tempo que o protagonista age de forma cesarista e discricionária, ele se sente atraído pelos personagens do submundo. Ainda assim, é imperativo o desejo onírico de limpar a área e restabelecer a ordem. Cabe ao espectador interpretar a intenção dessa motivação.

Independência e sangue

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O que o mundo ignorou sobre a Guerra da Tchetchênia

Os enormes estragos da Guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Os enormes estragos impostos pela guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Nos anos 1990, a Guerra da Tchetchênia entrou para a história como um dos grandes momentos de selvageria e carnificina da humanidade, chegando a ser comparada com a Segunda Guerra Mundial. O conflito foi desencadeado ao Sul da Rússia, desestabilizando completamente uma região ocupada por uma população castigada por condições precárias de vida.

A primeira fase da Guerra da Tchetchênia teve início em 1994, quando tropas russas atacaram indiscriminadamente cidades e vilas. Tudo em represália à tentativa dos tchetchenos de serem independentes e criarem um estado autônomo. Os soldados russos não hesitavam em matar e estuprar civis, além de saquear e queimar residências e lojas. O trunfo da Mãe Rússia eram as grandes formações de aviões e tanques com artilharia pesada que em poucas horas causavam enormes estragos.

Nem mesmo as crianças eram poupadas, tanto que a beligerância é lembrada como um momento histórico de revelia aos direitos humanos e às leis de guerra. Sobre o assunto, até hoje o mundo e a grande imprensa pouco se manifestou, segundo o jornalista estadunidense Barry Renfrew que por muitos anos atuou como correspondente de guerra da Agência Associated Press.

Matar ou morrer por um ideal

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

Tchetchenos orando antes da batalha (Foto: Reprodução)

A guerrilha tchetchena se articulou para dar o troco nos opressores e conseguiu. Mais motivados e bem preparados que os russos, os guerrilheiros lutavam pelo nacionalismo e ódio étnico. O propósito era matar ou morrer por um ideal. Já os russos chegaram a um ponto em que estavam mais preocupados em sobreviver às investidas dos guerrilheiros do que vencer. “Foi uma guerra tão selvagem que não há justificativas para explicá-la”, comenta Renfrew que assistiu de perto o constituído governo democrático russo buscar no seu passado de ferocidade medieval e totalitarismo os métodos mais cruéis para punir o povo da Tchetchênia.

Enquanto os russos viam os tchetchenos como selvagens traiçoeiros e criminosos, os tchetchenos encaravam os russos como conquistadores cruéis e espoliadores de sua pátria. “A Rússia é uma colcha de retalhos formada por muitos grupos étnicos que foram conquistados à força. E todo governo russo, independente de ideologia, sempre acreditou que a preservação desse império deve ser mantida a qualquer custo”, diz o jornalista. A dissolução da União Soviética já havia sido encarada como um pesadelo que feriu profundamente o orgulho russo, então a possibilidade de perder qualquer território, por menor que fosse, era algo inaceitável.

Barry Renfrew: "Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza"

Barry Renfrew: “Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza” (Foto: Reprodução)

Um povo nacionalista e marcial

Os tchetchenos, desde sempre conhecidos como um povo nacionalista e marcial, foram os últimos a serem conquistados pela Rússia Czarista do Século XIX. Certa vez, na década de 1940, em punição a não subserviência dos tchetchenos, o líder soviético Josef Stalin deportou centenas de milhares de homens, mulheres e crianças para a Ásia Central, onde a maioria morreu sob terríveis condições. A resistência dos tchetchenos chegou ao ápice em 1991, quando aproveitaram o colapso da União Soviética e declararam independência.

“Para eles, ser independente é um fato indiscutível da natureza, assim como as montanhas que cercam suas terras. Eles não precisam se justificar. E se você tenta questioná-los sobre isso, recebe um olhar reprovador”, explica Barry Renfrew. Quem também não se posicionou sobre essa guerra foi a Justiça Internacional. O Ocidente fechou os olhos para a Tchetchênia e tratou o conflito como uma questão interna sem base legal para intervenção externa, mesmo ciente de que os russos foram responsáveis pela morte de milhares de civis tchetchenos. “A verdade é que o Ocidente preferiu apoiar Boris Iéltsin e o seu dito governo pró-ocidental em Moscou. Se limitou a simplesmente fazer apelos por uma conduta ‘mais moderada’”, frisa o jornalista.

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A invasão russa se transformou em um desastre (Foto: Reprodução)

O papel do exército

Em dezembro de 1994, os soldados russos chegaram à Tchetchênia, onde se surpreenderam com a grande quantidade de mulheres e crianças tentando bloquear a entrada dos tanques. A maioria implorava para que voltassem para a Rússia. Um general decidiu suspender a invasão alegando que o papel do exército não era lutar contra os próprios cidadãos. Mas nada disso impediu a tragédia que estava por vir. Mais tropas russas invadiram a Tchetchênia em uma ação prevista como rápida e inofensiva para os civis.

“A situação saiu de controle e se transformou em um desastre. Os russos começaram a bombardear os assentamentos civis. Bem organizados, os tchetchenos capturaram aviadores inimigos e em alguns casos nem se deram o trabalho de transformá-los em prisioneiros. Para servir de lição, alguns foram mortos lá mesmo”, enfatiza Renfrew que viu o despreparo do exército russo nas investidas em solo tchetcheno.

Quando Grozny sucumbiu

Grozny, a capital, sucumbiu diante de uma truculenta batalha campal. Enquanto por terra a artilharia pesada dos tanques martelava a cidade. Pelos céus, os russos apelavam para as sequências de bombardeamentos aleatórios, como se não houvesse uma real estratégia de atuação. “A meta parecia ser pulverizar a cidade, pois estavam destruindo tudo”, lembra. Um fato curioso é que a maior parte de Grozny era ocupada por uma população de etnia russa. Desesperados, os sobreviventes fugiam para as aldeias vizinhas.

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

Grozny depois de destruída pelo Exército Russo (Foto: Reprodução)

A capital foi a mais castigada porque a Rússia acreditava que a maior base insurgente se situava no coração de Grozny. Até aquele momento, os tchetchenos se refugiavam em grandes blocos de apartamentos, onde era possível reforçar as proteções, tornando-as mais resistente aos ataques. “Eu podia ver claramente que ambos os lados fariam de tudo para ganhar. O interesse maior era derrubar o inimigo”, comenta Renfrew. Embora contassem com menos armamento militar, os tchetchenos conseguiram render muitos inimigos. Aqueles que não foram mortos receberam bom tratamento e foram até liberados.

No Verão de 1996, o Kremlin declarou ao mundo que a vitória na Tchetchênia estava assegurada, após um ataque surpresa que culminou na captura de vários líderes do movimento separatista. “Não foi bem isso que aconteceu. A Rússia retirou suas forças da Tchetchênia para salvar a própria imagem. Não havia esperança de vitória militar”, avalia o jornalista estadunidense.

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Capital foi a cidade mais castigada da Tchetchênia (Foto: Reprodução)

A imposição russa em 2000

A Rússia apenas conseguiu se impor sobre os separatistas em 2000, quando restaurou o domínio direto da Tchetchênia ao destruir Grozny. Resistentes, os rebeldes montaram uma base de ataque nas colinas. Com o passar dos anos, os tchetchenos sofreram grandes baixas. Uma das maiores foi a morte do líder separatista Aslan Maskhadov em março de 2005, seguida pela do comandante militar Shamil Basayev, assassinado em julho de 2006.

Entre as muitas crianças mortas pelos russos entre os anos de 1999 e 2000 estava Tapa Arskeyov, irmão de Dmitri Arskeyov. Tapa que tinha 12 anos acompanhava o pai Sergey, na tentativa de convencer um grupo de soldados russos a não invadir uma área escolar em Grozny. Foi uma tentativa em vão, embora um dos invasores tenha se sensibilizado com a situação.

“Outros que vinham atrás viram meu pai e Tapa com as mãos para o alto; apenas acenavam. Antes que os russos perguntassem qualquer coisa, atiraram contra suas cabeças. Os dois caíram mortos”, confidencia Dmitri Arskeyov que hoje tem 25 anos. Enquanto alguns russos ficaram chocados com o acontecimento, outros simplesmente riram e seguiram adiante, sem se importar com os corpos de pai e filho já caídos sem vida sobre o solo. Dmitri e a mãe Lydia tiveram de recolhê-los com um carrinho de mão.

Um criminoso de guerra no poder

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Kadyrov, líder pró-Rússia responsável por 75% dos crimes de guerra na Tchetchênia (Foto: Reprodução)

Em 2007, Ramzan Kadyrov, filho do ex-presidente Akhmad Kadyrov, assassinado em 2004, assumiu a presidência da Tchetchênia, tendo como principal apoiador o presidente russo Vladimir Putin. Na segunda fase do conflito, as forças russas e seus aliados tchetchenos foram acusados de abuso generalizado de civis, incluindo desaparecimentos, torturas e matança indiscriminada. Grupos de direitos humanos internacionais estimaram que até cinco mil civis foram sequestrados por forças russas ou pró-Rússia.

Muitos inocentes eram violentados brutalmente para assumirem ligação com a guerrilha, mesmo quando não tinham qualquer relação com grupos separatistas. As forças de Kadyrov, conhecida como Kadyrovtsy, são creditadas por levarem a cabo a maior parte das abduções, tanto que a Federação Internacional de Helsinki para Direitos Humanos descobriu que a Kadyrovtsy operava uma rede de prisões secretas na Tchetchênia. O grupo é responsável por 75% dos crimes de guerra cometidos contra os tchetchenos. Ainda assim, quando reassumiu a localidade, a Rússia fez questão de oferecer o cargo de presidente da Tchetchênia ao criminoso de guerra Ramzan Kadyrov.

Como reflexo da guerra, até hoje as forças russas de segurança da Tchetchênia permanecem mal treinadas, indisciplinadas e corruptas. E isso tem relação direta com a pouca responsabilidade pelos abusos que cometeram ao longo de muitos anos. “Todos os militares russos julgados pelos crimes na Tchetchênia foram absolvidos ou receberam penas modestas. Me recordo do episódio de dois soldados que saíram impunes, após matarem seis civis em 2005”, exemplifica o jornalista Barry Renfrew. A justiça russa aceitou a alegação de que os acusados seguiam apenas ordens superiores, algo incompatível com um verdadeiro julgamento de guerra.

A retaliação tchetchena

Conforme se intensificou o ataque aos civis tchetchenos, os guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia. Lá, os rebeldes usaram civis como escudos humanos. Um dos episódios mais marcantes foi registrado em outubro de 2002, quando os tchetchenos tomaram um teatro em Moscou durante a realização de um musical popular. Nesse dia, os próprios russos mataram os reféns quando liberaram um gás venenoso.

Guerrilheiros decidiram levar a guerra até a Rússia (Foto: Reprodução)

Dois anos depois, os separatistas fizeram mil reféns em uma escola na cidade de Beslan, o que acabou na morte de 330 pessoas. Também houve ataques a hospitais, concertos públicos e áreas residenciais. O comandante tchetcheno Shamil Basayev declarou em 2005 que era preciso fazer com que todos os russos sentissem a dor da guerra. “A responsabilidade é de toda a nação russa. Se a guerra não chega até eles individualmente, ela nunca terá seu fim na Tchetchênia”, disse Basayev.

A repreensão tardia

Os Estados Unidos e alguns outros países ocidentais tardiamente decidiram repreender a Rússia pela negligência quanto aos direitos humanos na guerra. Em 2000, o então presidente estadunidense George Bush ameaçou interromper a ajuda que dava à Rússia, caso continuassem matando mulheres e crianças – deixando muitos refugiados tchetchenos órfãos. Mas tudo mudou após o 11 de setembro de 2001 e o surgimento de alegações de que alguns comandantes da Tchetchênia tinham ligação com a Al Qaeda e outros grupos terroristas internacionais.

Espertos, os russos aproveitaram o sentimento anti-islâmico para vender a ideia de que a luta na Tchechênia tinha como objetivo evitar a criação de um estado islâmico terrorista. Mesmo recebendo severas críticas da União Europeia, a Rússia conseguiu sair vitoriosa da situação. Em pouco tempo, a questão quase desapareceu das pautas da política internacional. “A Rússia transformou a Tchetchênia em um país perigoso tanto para os tchetchenos quanto para os estrangeiros. Hoje em dia, infelizmente, há pouca discussão pública sobre a Tchetchênia”, lamenta Renfrew.

Sobre Barry Renfrew

O jornalista Barry Renfrew começou a trabalhar na Associated Press em 1978. Desde então, já atuou como correspondente de guerra em Sydney, Moscou, Joanesburgo, Seul, Islamabad, Cabul e Londres. Antes de se tornar um dos diretores mais importantes da AP, Renfrew foi chefe do escritório no Paquistão e trabalhou na sede da Associated Press em Nova York e também na Virgínia Ocidental.

 Curiosidade

Imagens do documentário “Melancholian 3 Huonetta” que mostra as consequências da Guerra da Tchechênia. A música é da banda de post-rock finlandesa Magyar Posse – Single Sparks Are Spectral Fires.

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O dilema da agiotagem

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Bruno Dalólio: “A situação chega a ponto em que o devedor se limita a pagar apenas os juros”

Bruno Dalólio: "Em poucos meses, os R$ 40 mil se transformaram em R$ 115 mil" (Foto: David Arioch)

Bruno Dalólio: “Em poucos meses, os R$ 40 mil se transformaram em R$ 115 mil” (Foto: David Arioch)

Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, não são poucos os casos de pessoas com restrições de crédito que recorrem aos agiotas para conseguir empréstimos. Nessas circunstâncias, o problema maior surge quando o devedor se torna incapaz de honrar o pagamento mensal da dívida, se submetendo a cobranças de juros que chegam a 10% por mês, uma prática criminosa, de acordo com a Constituição Federal.

“Quando a dívida se torna acumulativa chega a ponto em que o devedor se limita a pagar apenas os juros, ou seja, a situação fica totalmente fora de controle”, explica o bacharel em direito e estudioso do assunto, Bruno Ricardo Dalólio que há muito tempo acompanha o dilema vivido por inúmeros paranavaienses que emprestaram dinheiro de agiotas.

Um exemplo é uma família de microempresários que enfrentava dificuldades financeiras, mas por estarem com restrições de crédito, pegaram R$ 40 mil de um usurário. “O empréstimo, na realidade, foi feito a um amigo deles. A idéia era dividir o valor, assim cada um pagaria metade todo mês. Só que o tal amigo fugiu com a maior parte do dinheiro e deixou a dívida com essa família”, explica Dalólio, acrescentando que como os devedores não tinham condições de arcar com o pagamento mensal a dívida ganhou proporções inimagináveis.

Em poucos meses, os R$ 40 mil se transformaram em R$ 115 mil e o agiota entrou em contato com a família, tentando coagi-los a pagar o valor total. O primeiro erro da família foi procurar um agiota. E claro, confiar no tal amigo ao ponto de permitir que os convencesse a passar a escritura de um imóvel residencial no nome do agiota, como garantia do pagamento da dívida. “Tudo isso serviu para fazer com que um ato ilegal parecesse legal. Em suma, foi uma prática de enriquecimento ilícito”, argumenta Bruno Ricardo, destacando que a gravidade da situação dificulta e muito a recuperação do imóvel.

A família que prefere não se identificar relata que para não ter problemas com a justiça o usurário mascara o empréstimo como se fosse o pagamento mensal de um aluguel. “É uma situação muito difícil. Nenhum de nós dorme há muito tempo. Estamos vivendo um pesadelo”, admite um dos inadimplentes. A matriarca da família, proprietária do imóvel repassado ao agiota, se emociona e chora durante a entrevista prevendo a possibilidade de perder a casa onde sempre morou. Na última avaliação imobiliária, foi constatado que a residência tem um valor venal de R$ 160 mil. Constrangido, um dos familiares enfatiza que o desespero motiva o ser humano a cometer atos dos quais se arrepende mais tarde.

É difícil provar que se trata de agiotagem (Arte: Reprodução)

Dalólio: “É difícil conseguir provas e testemunhas” (Arte: Reprodução)

Para Bruno Ricardo Dalólio, é importante que pessoas sensibilizadas por problemas financeiros não se deixem seduzir pelo momento, afinal os juros cobrados mensalmente por um agiota ultrapassam até mesmo o limite anual tolerado pelo Sistema Financeiro Nacional, com respaldo no Banco Central e no Conselho Monetário Nacional (CMN). “Na nossa cidade, há muitos outros casos parecidos, inclusive de pessoas que tentaram suicídio”, diz Dalólio. O Instituto Nacional de Defesa dos Consumidores Financeiros (Andif) qualifica a agiotagem como crime e recomenda que qualquer pessoa lesada preste queixe na delegacia.

O problema é que depois de feito o boletim de ocorrência acontece muito da vítima ser surpreendida com a resposta de que nada pode ser feito porque falta os requisitos de materialidade e autoria do crime. “Quando isso não é observado, eles arquivam sem contextualizar o problema”, reclama Bruno Ricardo.

É difícil provar que se trata de agiotagem

Uma das principais dificuldades de quem se envolve com agiotagem é justamente provar que a negociação se enquadra como prática onzenária. “É difícil reunir provas e até mesmo conseguir testemunhas. É o tipo de situação que pode se arrastar por anos na justiça até ter um desfecho”, avalia Dalólio.

Isso acontece porque o direito privilegia a forma. Segundo Bruno Ricardo, só documentos têm valor legal. “Existe muito conservadorismo na nossa justiça brasileira, até por parte dos advogados. É o senso comum teórico dos juristas. E assim, a pessoa perde um direito que deveria ser garantido porque o mais importante é o que está no papel”, lamenta e acrescenta que devido as manobras de agiotas há casos em que o fórum pode se tornar palco de negociação ilícita.

Dicas do Instituto Nacional de Defesa dos Consumidores Financeiros (Andif)

1 – Fuja dos agiotas e classificados de jornal que ofereçam dinheiro fácil.

2 – Jamais passe a escritura de um imóvel ou outro bem, a título de garantia, para nenhuma pessoa.

3 – Nunca peça dinheiro emprestado por telefone ou internet.

4 – Não assine notas promissórias, cheques, duplicatas em branco ou confissões de dívidas.

5 – Nunca forneça dados pessoais por telefone.

6 – As pessoas lesadas por práticas onzenárias (agiotagem) devem registrar, em primeiro lugar, queixa em um posto policial. Depois devem procurar um órgão de defesa do consumidor que pode fazer uma representação junto ao Ministério Público.

7 – Para os consumidores que passarem seus bens aos agiotas há recursos jurídicos que possibilitam reaver os imóveis.

O retorno de Brancaleone

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Quando Monicelli ironizou os cavaleiros cruzados

Vittorio Gassman revive Bracaleone no clássico de 1970 (Foto: Reprodução)

Vittorio Gassman revive Brancaleone no clássico de 1970 (Foto: Reprodução)

Seguindo a fórmula de L’armata Brancaleone (O Incrível Exército de Brancaleone), o cineasta italiano Mario Monicelli lançou em 1970 o clássico Brancaleone Alle Crociate (Brancaleone Nas Cruzadas). O filme é uma anti-heroica e bem-humorada crítica a visão romântica sobre os cavaleiros cruzados.

Em Brancaleone Alle Crociate, o protagonista anti-herói Brancaleone (Vittorio Gassman) é líder de um exército de perdedores que viaja rumo à Terra Santa. Logo no início da jornada, a ausência de um estratagema, que dá a tônica da falta de hierarquia e de propósitos coletivos, termina em massacre. Então o trapalhão Brancaleone decide formar uma nova armada, composta pelos sobreviventes; nada mais que derrotados com anseios totalmente individualistas. Tudo isso soma para ratificar com muita ironia o extremo da contradição existencial do homem.

No segundo filme da franquia Brancaleone, Mario Monicelli novamente faz críticas escrachadas e satíricas sobre o perfil do cavaleiro medieval, figura muito humana e caricata na obra. A ideia do autor é justamente antagonizar a imagem clássica do cavaleiro – o que muitos livros e filmes épicos vendem como exemplo de fidalguia. O cineasta não poupa nem a Igreja Católica ao mostrar uma briga de egos entre os papas Gregório e Clemente. Um ordena o genocídio de seguidores do outro, quando na realidade a religião deveria cumprir o seu papel de valorizar a vida.

Há também, como de costume na filmografia de Monicelli, o clássico humor pastelão. Exemplos são as cenas em que Brancaleone confronta o seu companheiro e teimoso pangaré Aquilante, uma paródia do cavalo Rocinante, de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saveedra. Brancaleone Alle Crociate é uma comédia de gradação em que o espectador é estimulado a rir de situações corriqueiras e subjetivas.