David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Um manifesto sobre a fragilidade

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Ivanovo Detstvo e o sonho da infância espoliada

Filme mostra um garoto dividido entre o pesadelo da guerra e o sonho da infância (Foto: Reprodução)

Filme apresenta um garoto dividido entre o pesadelo da guerra e o sonho da infância (Foto: Reprodução)

Lançado em 1962, Ivanovo Detstvo, que chegou ao Brasil com o título A Infância de Ivan, é um filme do cineasta humanista russo Andrei Tarkovsky e aborda o estado de introspecção de uma criança órfã dividida entre o pesadelo da Segunda Guerra Mundial e o sonho da infância espoliada.

Ivanovo Detstvo conta a história de Ivan (Nikolai Burlyayev) que teve a inocência dilacerada quando soldados nazistas assassinaram seus familiares. Ignorando a própria condição existencial como criança, o garoto ingressa no exército soviético em busca de retaliação. Sob a perspectiva de Tarkovsky, a guerra assume um caráter individualista a partir das ações de Ivan.

A animosidade da contenda e a ausência de relações familiares levam o protagonista a um endurecimento e negação da juventude. Mesmo quando outros combatentes soviéticos tentam protegê-lo e o lembram de sua idade, o garoto age como se não estivessem se referindo a ele. Uma das cenas mais intensas da obra surge quando Ivan se torna refém de uma tormenta psicológica.

Sem a mãe, Ivan perde o seu elo com o mundo (Foto: Reprodução)

Sem a mãe, Ivan perde o elo com o mundo (Foto: Reprodução)

Consumido por desespero e delírio, o jovem armado com uma faca circula pela escura, gélida e sombria base militar a procura de nazistas. Mas não encontra nada, pois naquele ambiente a sua única companhia é a solidão. Incapaz de aceitar e lidar com a realidade, Ivan luta para velar a fragilidade e a sensibilidade com um manto de frieza. No entanto, ao dormir, é vencido por sentimentos e lembranças que retornam para reafirmar a sua condição infantil e conflitante.

O jovem soviético tenta ultrapassar a etapa da vida que deveria ser marcada pela ingenuidade justamente porque simboliza o momento mais doloroso de sua existência. Rejeitar a infância na fase de transição para a adolescência é uma forma de Ivan se desvincular do passado – uma tentativa sem sucesso. Ainda assim, não são poucos os momentos em que o garoto é transportado a um universo de nostalgia, onde se sente plenamente livre, estimulado por imagens de beleza e candura protagonizadas pela mãe, até pouco tempo seu maior elo com o mundo.

Tarkovsky projeta humanismo na figura do Capitão Kholin (Foto: Reprodução)

Tarkovsky projeta humanismo na figura do Capitão Kholin (Foto: Reprodução)

Ivan sofre sempre que acorda. Apesar disso, conta com o humanismo projetado na figura do capitão Kholin (Valentin Zubkov), um homem com quem estabelece uma difícil, mas alentadora relação. Kholin se torna a ponte entre o velho e o novo mundo do garoto, tentando mantê-lo em uma linha de equilíbrio, onde a sobriedade precisa ser nutrida com sonhos e expectativas.

Sobre a estética e os planos de filmagem da obra de Tarkovsky, o tempo todo a câmera assume papel de personagem, transmitindo sentimentos e emoções em meio a uma contumaz escuridão desértica. No chão, a consternação é marcada pelo solo improdutivo. No céu, onde há muito tempo as estrelas não brilham, as nuvens são substituídas por cortinas de fumaça cor de chumbo. A natureza parece sepultada, assim como tantas vidas representadas por escombros e ruínas. Em suma, Ivanovo Detstvo é um manifesto sobre a fragilidade humana.

One Response to 'Um manifesto sobre a fragilidade'

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  1. discuto as noções de encontro, de composição e, especialmente, aquela ligada à função anômalo, tais como descritas por Deleuze e Guattari (2002). Para tanto, analiso os filmes O garoto, de Charles Chaplin (1921), e O menino selvagem, de François Truffaut (1970). Interessa-me aqui debater em que medida podemos pensar na criança singular, na criança-acontecimento, a partir do momento em que ela é atravessada, cinematograficamente, por uma potência desestabilizadora, expressa pela figura do pária, do indivíduo excepcional, limítrofe.

    Bryon Norris

    4 May 13 at 8:22 am

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