David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for July, 2013

Um índio por um velho chapéu de aba larga

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Garoto caiuá foi comprado para ajudar a escrever um dicionário de guarani

Ulrico Goevert: "Ele literalmente o comprou com um velho chapéu” (Acervo: Ordem do Carmo)

Ulrico Goevert: “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios” (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1951, um frade capuchinho foi enviado a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, com a missão de evangelizar os poucos índios que ainda viviam nas matas virgens da colônia. “Onde os colonos chegam, desaparecem os índios, os aborígenes do lugar”, escreveu o frei alemão Ulrico Goevert em publicação da revista alemã Karmel-Stimmen, sobre as experiências em Paranavaí.

Embora seja verdade, o missionário capuchinho conseguiu encontrar nativos de etnia caiuá vivendo na região. Como era impossível estabelecer a comunicação falada, o homem apelou para gestos. No começo foi difícil. Foram necessários dias para conquistar a liberdade de se aproximar dos índios.

Mesmo sem entender quase nada sobre os caiuás do Noroeste Paranaense, o frade ficou intrigado com os costumes e a língua guarani. Então um dia foi até um dos chefes da tribo, mostrou o próprio chapéu de aba larga e apontou para um jovem índio, sugerindo uma troca. Depois de avaliar bem o item, o líder caiuá acabou aceitando. “Ele literalmente o comprou com um velho chapéu”, registrou Goevert no relato escrito em um diário em 1957 e publicado no ano seguinte na Alemanha.

José de Oliveira: “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado” (Foto: David Arioch)

José de Oliveira: “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado” (Foto: David Arioch)

O garoto foi trazido até a área urbana de Paranavaí, onde serviu de referência para o frade escrever um dicionário de guarani. Todas as perguntas eram feitas por meio de sinais. Um trabalho moroso e não muito produtivo. Mas, obstinado, o capuchinho só retornou à aldeia depois de um bom tempo estudando a língua. Ainda hoje, não há informações sobre o destino do jovem subalterno trocado por um chapéu surrado. “Ele deixou de pertencer a tribo logo que foi comprado. Não tinha pra onde voltar”, comentou o pioneiro José Francisco de Oliveira.

Quem também viveu por muitos anos em Paranavaí e teve bastante contato com os caiuás, descendentes dos índios que sobreviveram às investidas dos bandeirantes paulistas e portugueses entre as décadas de 1620 e 1640, foi o frei alemão Alberto Foerst que tinha grande experiência como missionário.

Alberto Foerst: "Com presentes, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo" (Acervo: Ordem do Carmo)

Alberto Foerst: “Com presentes, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo” (Acervo: Ordem do Carmo)

No artigo “Noch Ein Missionsberich”, da edição número 10 da revista Karmel-Stimmen, de outubro de 1954, Foerst diz que para se aproximar dos caiuás, causando boa impressão, era preciso primeiro presenteá-los. “Dessa forma, ganhávamos a simpatia do cacique da tribo, tornando nosso trabalho mais fácil”, revelou. À época, um dos presentes preferidos era a caneta-tinteiro, pois a consideravam um lindo ornamento para colares.

Ainda assim, segundo Oliveira, os nativos costumavam evitar ao máximo o contato com outros povos. “Eles eram até pacíficos e bem tolerantes. Quando viram o chamado progresso chegando, em vez de nos atacar, eles partiram para uma grande área de mata fechada lá pelas bandas do Rio Ivaí, pra lá de Paraíso do Norte”, conta o pioneiro.

No pequeno livro “História e Memória de Paranavaí”, um lançamento póstumo de 1992, Ulrico Goevert lembrou dos episódios em que, não se sabe se por represália ou escassez de alimentos, os caiuás invadiram muitas roças da região para furtar milho e mandioca. “Era muito diferente daquela enaltecida raça com a qual o Karl May [um dos mais populares escritores alemães – criador de personagens heroicos como Mão de Ferro e Mão de Fogo] nos entusiasmou na adolescência”, queixou-se.

Em uma análise hermética e ocidentalizada, Goevert definiu os caiuás como figuras primitivas alheias à própria cultura. Ficou chocado nas diversas vezes em que os testemunhou comendo lesmas. “Não colocam mais em prática os conceitos morais e praticam a justiça por conta própria. E que mania eles têm de dormir a céu aberto. Não é de se admirar que tenham saúde tão precária”, reclamou em referência aos muitos que adoeceram e até morreram nos anos 1950 em decorrência da tuberculose. No entanto, é válido ressaltar que a doença chegou à região com migrantes e imigrantes.

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Sobre matanças e os temidos quebra milho

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Experiências e impressões sobre criminosos que viveram em Paranavaí nos tempos de colonização

Frei Ulrico: "Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos" (Acervo: Ordem do Carmo)

Frei Ulrico: “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos” (Acervo: Ordem do Carmo)

Embora tenha falecido há muitos anos, o frei alemão Ulrico Goevert, um dos pioneiros religiosos de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, tinha o hábito de registrar muito do que via e ouvia na antiga Fazenda Brasileira. O primeiro diário de Goevert sobre os fatos aqui vividos data de 1951. Sete anos mais tarde, a convite do padre provincial Adalbert Deckert, de Bamberg, no estado alemão da Baviera, o frei começou a publicar suas experiências em Paranavaí na revista germânica Karmel-Stimmen, onde ganhou uma coluna periódica.

Entre os relatos que mais chamaram a atenção dos alemães está um sobre as matanças promovidas pelos quebra milho, como eram chamados os jagunços e grileiros violentos que viviam na região de Paranavaí entre os anos 1940 e 1950. “Muitos que aqui chegavam de outros estados e países buscavam construir uma nova vida. Tudo isso resultou em uma grande mistura internacional”, conta Ulrico Goevert, acrescentando que no meio de tanta gente havia famílias sonhadoras, oportunistas gananciosos e aventureiros preocupados apenas com o presente.

O frei alemão admitiu anos mais tarde que entre 1951 e 1958 foi procurado por quebra milho das mais diversas origens. “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos. Me procuravam pedindo para ajudar a tirar as mortes da consciência”, lembra. O contato frequente com a comunidade fez Goevert se aprofundar um pouco mais sobre o passado duvidoso de uma significativa parcela da população local. “Eu era procurado até por aqueles que não queriam mais do que continuar a sua velha safadeza neste novo lugar”, declara. Boa parte pedia informações ao padre sobre como providenciar novos documentos para dar início a uma nova vida, se isentando dos crimes do passado.

Em Paranavaí, no final dos anos 1940 até a metade da década de 1950, muita gente conseguiu mudar de nome, enganando a polícia e os perseguidores que percorriam milhares de quilômetros para acertar as contas. “Aqueles que demonstravam verdadeira boa vontade, eu consegui ajudar, possivelmente os livrando da morte. O que mais podia fazer se não contribuir para torná-los membros úteis de uma comunidade?”, questiona o frei alemão na coluna mais lida da revista Karmel-Stimmen em 1958.

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse fatos sobre Paranavaí na revista Karmmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse sobre Paranavaí na revista Karmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Perdulários, os quebra milho eram temidos e chamavam muita atenção em Paranavaí pelos gastos astronômicos com bebidas, comidas e orgias em locais como a Boate da Cigana. No entanto, algumas festas eram particulares e aconteciam em locais afastados da cidade. “Eles apenas ordenavam que buscassem as moças, escolhidas a dedo, que iriam servir para o lazer”, confidencia o pioneiro cearense João Mariano.

Tudo era custeado com pequenas fortunas conquistadas em um curto período de tempo explorando mão de obra barata na derrubada de mata e lavouras ou cobrando dívidas e desapropriando terras ilegalmente. “Eram promotores de um estilo de vida totalmente imoral e leviano. Não tinham interesse em mudar. Viviam em função da sequência roubo, homicídio e morte”, registra o alemão.

Apesar de não haver dados sobre a quantidade de quebra milho nos tempos da colonização, é possível inferir que era o suficiente para amedrontar a população. “Não se passava um mês sem eu ter de dar a unção a alguma vítima de assassinato, nem sempre o morto fazia parte desta leviana corja. Tivemos muitos homicídios por causa de direitos de posse”, frisa Ulrico Goevert.

Os crimes eram quase inevitáveis quando dois ou mais proprietários de um mesmo pedaço de terra se encontravam. Um apresentava ao outro o documento que dizia ser legal e reivindicava o direito da área. “Um não queria ceder e muito menos o outro. A discussão só acabava quando puxavam o revólver”, afirma o frei que presenciou algumas dessas situações. Com o tempo, o alemão começou a tentar entender como várias pessoas tinham diferentes escrituras de uma mesma terra. Depois de muito pesquisar, Goevert descobriu que a diferença entre um documento e outro ultrapassava décadas.

A verdade é que em outros tempos alguns oportunistas compraram terras em áreas não colonizadas de Paranavaí e desistiram de construir, levando em conta o investimento com derrubada de mata e povoamento. Então esperavam anos, até alguém iniciar a colonização da região. O tempo passava e o governo autorizava uma nova venda de uma área comercializada muito tempo antes. “Quando tudo ficava aberto, limpo e habitável aparecia gente até com documentos do Século XIX e a confusão se armava”, detalha o líder religioso.

Não é à toa que até hoje há pioneiros em Paranavaí que culpam o governo federal e o governo paranaense por diversos assassinatos provocados por conflitos de posse e comissão de terras. “A situação esquentava e ninguém fazia nada. Se o poder público entrasse no meio para tentar amenizar a situação, quem sabe até disponibilizando uma nova terra à parte lesada, teríamos evitado tantas mortes. Com o sangue quente, e ninguém para ajudar, o peão perdia o controle e matava”, pondera Mariano.

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

As colonizadoras também ignoravam as negociações anteriores e simplesmente continuavam a atrair mais colonos com a venda de lotes pagos em pequenas parcelas. “Também perdi as contas de quantas mulheres apareceram reclamando a paternidade do filho e mostrando a foto do pai que já tinha outra família em Paranavaí”, desabafa o frei.

Normalmente o homem fugia de madrugada, abandonando as duas mulheres. A vontade de escapar da responsabilidade era tão grande que o sujeito atravessava a densa mata fechada habitada por animais silvestres e ainda cortava o Rio Paraná com algum bote. “É quase certo que no Mato Grosso o fujão começava tudo de novo”, lamenta frei Ulrico.

O perfil e a conduta dos quebra milho

De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, os quebra milho eram homens das mais diversas origens que podiam andar em grupos, duplas ou sozinhos. Chegavam a Paranavaí com um plano de ação definido. Eram contratados para comandar as mais diversas atividades, desde grupos de peões atuando na derrubada de mata até cobranças de dívidas e comissões de terras. “Um quebra milho não sentia remorso em tirar uma vida, mas também não fazia isso de graça ou por qualquer coisa. Eram como mercenários, mas com código de conduta”, explica Mariano.

A conduta era ditada pelo dinheiro, não por vingança ou punição. Quanto maior a recompensa, menor a preocupação com a exposição. Se o retorno financeiro fosse grande, não se importavam em invadir um bar cheio de gente para assassinar três ou quatro pessoas. “Ele ia, fazia o serviço e partia, sem olhar para ninguém a sua volta, a não ser as vítimas. Só que se fosse incumbido de cobrar alguma coisa sem matar ninguém, o sujeito também atendia a exigência”, esclarece o pioneiro que ao longo da vida conheceu muitos quebra milho, inclusive teve amizade com alguns.

Paranavaí nos tempos dos quebradores de milho (Acervo: Casa da Cultura)

Paranavaí nos tempos dos quebra milho (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Ao contrário do senso comum, dificilmente reagiam quando eram provocados por alguém sem envolvimento com seus negócios. Isso porque não traria retorno financeiro – a lógica da função. Metódicos, os quebra milho da Fazenda Brasileira dificilmente agiam por impulso. Além disso, não atuavam apenas em Paranavaí, mas em todo o Paraná, chegando a prestar serviços em São Paulo, Mato Grosso (incluindo o Mato Grosso do Sul), Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente a serviço de grandes empresários e latifundiários.

“Sei de alguns que encheram caminhões de cadáveres lá pelas bandas de Querência do Norte numa desapropriação ilegal e forçada. Tudo foi feito a mando de uma família tradicional da região de Maringá”, segreda Mariano que viu quando o caminhão estacionou em frente ao antigo Hospital João Cândido Ferreira (Hospital do Estado), onde é hoje a Praça da Xícara.

O veículo encostou e de longe os curiosos sentiram um forte odor de sangue que invadiu o centro da cidade. João Mariano diz que nunca tinha visto tanta gente morta em um mesmo local. “Havia dezenas. A maioria foi levada direto para um necrotério improvisado. Tinha tanto sangue que escorria até pelos pneus”, assegura.

Os quebradores eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Os quebra milho eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Por medo, nos anos 1940 e 1950, quando se falava em quebra milho, a maior parte da população não se manifestava sobre o assunto. Habilidosos com armas de fogo e armas brancas, inúmeros foram identificados como ex-jagunços, ex-guerrilheiros, criminosos condenados ou procurados, antigos membros de brigadas e de grupos paramilitares, além de desertores do Exército Brasileiro.

À época, como Paranavaí era apenas uma colônia, podiam ser facilmente identificados, mas ninguém queria se meter em confusão. Personagens controversos, os quebra milho fazem parte da história de Paranavaí, onde já viviam no princípio da colonização da Fazenda Brasileira na década de 1930. “Policiavam” e impediam que os migrantes atuando nas lavouras de café abandonassem o trabalho. Quem tentasse era abatido em barrancos às margens de algum rio ou durante a travessia. Antes do descarte de cadáveres, os criminosos os abriam, os enchiam com pedras, costuravam e os lançavam na água para afundar rapidamente, impossibilitando a localização.

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“Nunca vou cortar com ela não!”

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Kengo Toyokawa fala sobre a estranheza dos homens de Paranavaí ao ver uma mulher barbeira em 1949

Barbearia funcionava junto ao Bar São Paulo (Acervo: Família Toyokawa)

Barbearia funcionava junto ao Bar São Paulo (Acervo: Família Toyokawa)

Em 1949, na barrenta Rua Manoel Ribas, no Centro de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, por onde trafegavam muitas carroças, não tinha quem não olhasse uma senhora no interior de um salão de duas portas, contíguo ao Bar São Paulo, aparando barba ou cortando os cabelos de algum cliente. “Mas, rapaz, mulher cortando cabelo de homem? Nunca vou cortar com ela não!”, diziam copiosamente os mais conservadores.

A cena rendia muita conversa. Um curioso chamava o outro e quando menos se esperava havia muita gente em frente ao salão discutindo sobre o assunto. “Essa mulher era minha avó, a dona da barbearia que se tornou a mais famosa da região. Naqueles primeiros anos, muita gente não aceitava e agia com preconceito”, diz o comerciante Kengo Toyokawa, proprietário do famoso bar homônimo.

Outros não se importavam, apenas ignoravam a conversa na entrada enquanto esperavam a vez de receber uma toalhinha confortável, quente e cheirosa que amaciava a pele do rosto. O corte de barba ou cabelo era sempre metódico e como diferencial privilegiava os detalhes. As técnicas seguiam os preceitos da tradição japonesa.

Mas a maioria da população masculina de Paranavaí, no Noroeste Paranaense, acostumada a ser freguês de homens, estranhava os cuidados daquela mulher habilidosa de mãos leves e finas que além disso era uma boa administradora. “No começo foi esquisito, mas depois me acostumei. Quando saía de lá alguém sempre perguntava como foi e se valia a pena. Eu explicava que ela comandava o salão. Aí que o povo estranhava ainda mais: ‘Ué, será, mas a muié memo?’”, lembra o pioneiro João Mariano sem velar o sorriso.

A barbearia da avó de Kengo surpreendia também pela rapidez no atendimento. A equipe era formada por cinco profissionais. “Você pode me apontar uma barbearia hoje que tenha cinco barbeiros? É raridade!”, destaca o comerciante, acrescentando que o interesse por trabalhar no comércio surgiu com os avós.

Aos poucos, a fama da barbearia aumentou e em finais de semana muitos trabalhadores do campo, desde colonos até peões que atuavam na mata, vinham a Paranavaí de charrete. Percorriam quilômetros para cortar cabelo e barba no salão ao lado do popular Bar São Paulo que tinha três portas e também pertencia aos Toyokawa. “A boa fama foi longe”, resume Kengo Toyokawa.

Antes de se mudar para Paranavaí, a família trabalhou um bom tempo nas lavouras de café, pelo menos até conseguir guardar um pouco de dinheiro. “Antes meus avós e meus pais moraram em Guaritá [atual Nova Aliança do Ivaí]. O mais curioso é que depois decidiram investir no comércio sem saber falar português”, relata Toyokawa.

A princípio, foi bem complicado, mas a persistência e a vontade de garantir um bom futuro fez os avós de Kengo superarem até mesmo a barreira do idioma. “No começo, eles negociavam tudo por gestos, uma comunicação universal. Depois aprenderam a falar bom dia e outras frases básicas. As coisas foram se ajeitando”, enfatiza.

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Lou Ferrigno, de vítima de bullying a campeão de fisiculturismo

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Stand Tall, mais do que uma versão Pumping Iron do ítalo-americano

Filme foi lançado em 1996 por Mark Nalley (Foto: Reprodução)

Filme foi lançado em 1996 por Mark Nalley (Foto: Reprodução)

Embora muitos digam que o ex-fisiculturista e ator Lou Ferrigno foi ofuscado por muito tempo pelo também ator e ex-fisiculturista Arnold Schwarzenegger, a verdade é que o primeiro filme estrelado pela dupla, o documentário Pumping Iron, de 1977, de Robert Fiore e George Butler, serviu para alavancar ainda mais a carreira do ítalo-americano, mesmo que a película tenha se pautado mais na carreira e personalidade de Arnie.

Exemplos não faltam. Após o lançamento de Pumping Iron, Lou Ferrigno estrelou o filme The Incredible Hulk, seguido pela série homônima de sucesso que foi ao ar pela CBS até 1982. Depois, Ferrigno foi protagonista de The Incredible Hulk Returns, de 1988; The Trial of the Incredible Hulk, de 1989; e The Death of the Incredible Hulk, de 1990. Ainda trabalhando com a sétima arte, interpretou o mitológico Hércules em 1983 e 1984, além de Sinbad of the Seven Seas em 1989.

Dos anos 1990 para cá, o fisiculturista aposentado teve poucas participações no cinema e na TV. Os trabalhos mais populares incluem a voz do Hulk nos remakes mais recentes e muitas dublagens para os desenhos animados da Marvel. No Brasil, o filme Stand Tall, de 1996, do cineasta Mark Nalley, é desconhecido da maior parte do público aficionado por musculação e fisiculturismo.

Obra mostra que Ferrigno sofreu muito em função da surdez (Foto: Reprodução)

Obra mostra que Ferrigno superou grandes obstáculos para se tornar um atleta (Foto: Reprodução)

Curiosamente, é o único que mostra quem é e quem foi o maior adversário de Arnold Schwarzenegger no antológico Mr. Olympia de 1975. Ainda assim, é preciso ressaltar que talvez por ser um docudrama com caráter de tributo ou homenagem, Stand Tall omite informações sobre o final da carreira de Ferrigno como bodybuilder, quando amargou em 1992 e 1993 as posições de 12º e 10º colocado.

O filme de Mark Nalley tem boa estrutura, em acordo com uma proposição humanista que visa despertar a identificação do público com um dos maiores ícones da era de ouro do bodybuilding. Na obra, Louis Jude Ferrigno é uma criança do Brooklyn, em Nova York, que aos três anos é diagnosticada com surdez causada por uma infecção. Restando apenas 15% da audição, o jovem Ferrigno cresce retraído. As cenas sobre a infância difícil do atleta são apresentadas em forma de vídeos caseiros registrados no final dos anos 1950.

A musculação ajudou Lou a superar a baixa autoestima (Foto: Reprodução)

A musculação ajudou Lou a superar a baixa autoestima (Foto: Reprodução)

Vítima constante de bullying, apenas anos mais tarde consegue ouvir e falar com clareza. São emocionantes as cenas de Lou contando como foi ridicularizado na infância por ser um garoto magricela surdo-mudo. Mas tudo começa a mudar aos 13 anos, quando descobre o fisiculturismo como forma de superar a timidez e a baixa autoestima. O amor pela modalidade é quase instantâneo, tanto que Ferrigno trabalhava como engraxate para comprar revistas de musculação.

Um dos momentos mais inesquecíveis de Stand Tall surge quando o ex-fisiculturista lembra dos episódios em que disse aos seus clientes que se tornaria um campeão mundial de bodybuilding. A narrativa vigorosa e a construção clara e objetiva do filme conquistam a atenção do espectador. Mesmo quem não gosta de musculação ou fisiculturismo começa a entender e respeitar a complexidade e o rigor da construção corporal, seja em nível competitivo ou não.

O filme que conta a história de superação do ítalo-americano também tem algumas semelhanças com Pumping Iron. No clássico de 1977 o adversário que o protagonista Arnold Schwarzenegger precisa superar é Lou. Já em Stand Tall, Ferrigno, com mais de 40 anos, tem de vencer o veterano Boyer Coe. A obra que levou um ano e meio para ser produzida tem bom material de pesquisa e apresenta entrevistas com familiares e amigos de Lou, além de Arnold, o maior ídolo do fisiculturismo.

O atleta se tornou Mister Universo em 1973 e 1974 (Foto: Reprodução)

Em Stand Tall, o atleta tenta superar o adversário Boyer Coe (Foto: Reprodução)

Nalley quase desistiu de ter Schwarzenegger no filme por causa das dificuldades em convencê-lo a participar. Para o bem do cineasta, as regulares insistências garantiram um final feliz. Em troca da participação, Arnie pediu apenas uma caixa de charutos. “Sabíamos como seria determinante para o filme ter alguém famoso como o Arnold”, diz o cineasta Mark Nalley que precisou se desdobrar com um orçamento modesto de 200 mil dólares, considerado minúsculo para os padrões estadunidenses. Uma das poucas queixas sobre o filme diz respeito a iluminação. Há algumas cenas escuras que denunciam uma certa falta de cuidado e de recursos da produção.

Felizmente, nada disso é o suficiente para ofuscar o brilho do documentário sobre um dos atletas mais importantes da história do fisiculturismo. Se tratando de estatura física, Ferrigno, que tinha 1,96m e 130 quilos, ultrapassou os padrões do bodybuilding profissional e conquistou dois títulos de Mr. Universo em 1973 e 1974, além de uma terceira colocação no Mr. Olympia de 1975. Em síntese, Stand Tall é um filme feito para todos os seres humanos, amantes ou não de atividade física resistida. “Ele tinha tudo. Boas costas, bons ombros e sabia como posar”, comenta um admirador do atleta no filme.

Paranavaí e a sociedade de “colonização bruta”

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Uma cidade que de tão heterogênea surgiu com grandes falhas sociais

Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Reprodução)

Sem planejamento, Paranavaí foi colonizada pelo próprio governo paranaense (Foto: Acervo da Fundação Cultural de Paranavaí)

Não são poucos os pioneiros que afirmam que Paranavaí, no Noroeste do Paraná, é uma cidade formada a partir de uma sociedade de “colonização bruta”. Mas qual é o significado disso?Declarações como essa são justificadas por fatos envolvendo principalmente distinções culturais. Paranavaí foi colonizada pelo governo paranaense, ou seja, houve pouca participação ou abertura para a colonização de iniciativa privada ou planejada. Assim a organização precisava partir da própria comunidade.

Nos anos 1940, nos tempos da Fazenda Brasileira, Paranavaí contava com uma sociedade restrita, pouco sociável e formada pela política da conquista de novas terras. A colônia atraía todo tipo de gente porque os lotes eram baratos e, em algumas situações, até doados. “Havia a coletividade, mas sem articulação social. A maior parte das pessoas vinha pra cá com esse interesse em comum. Não socializavam quase. Assim surgiu uma sociedade com uma colonização bruta, sustentada apenas pelos mesmos objetivos econômicos”, afirma o pioneiro Ephraim Marques Machado.

Como havia povos das mais diferentes origens, por vários anos persistiu uma segregação entre os moradores. Muitos se relacionavam apenas com pessoas que vieram do mesmo estado, região ou país. “Em Paranavaí, naquele tempo, mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos. Sofri muito com isso”, lembra o pioneiro Sátiro Dias de Melo. O testemunho é endossado pelo pioneiro cearense João Mariano que viu muitos peões e colonos nordestinos serem escravizados por migrantes do Sul e Sudeste nos anos 1950 e 1960.

De acordo com Ephraim Machado, a heterogeneidade podia ser vista como um problema social, já que Paranavaí lembrava uma colônia dividida em pequenos povoados. “Os nortistas e os sulistas eram muito diferentes, então o distanciamento foi inevitável. Sem dúvida, algo que interferiu na evolução local. Paranavaí demorou para começar a se constituir como o que chamamos de sociedade nos moldes atuais”, avalia Machado.

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

População demorou para se articular socialmente (Foto: Toshikazu Takahashi)

A facilidade de acesso às terras fez Paranavaí receber muita gente diferente, não apenas migrantes que sonhavam com um pedaço de terra para construir uma moradia, plantar e assegurar o futuro da família. Aventureiros e oportunistas das mais diversas regiões do Brasil, até mesmo assassinos e ladrões, vinham para a região, crentes de que encontrariam um lugar isolado e de muitas riquezas. “O governo até fretava aviões para abandonar criminosos nas matas virgens das imediações de Paranavaí. O objetivo era não ter despesas e responsabilidades com essa gente”, diz João Mariano.

Pelo país afora, a colônia era conhecida como um local administrado pelo poder público, com pouca interferência da iniciativa privada. “Muitos gostaram daqui por isso”, declara Mariano. Já cidades colonizadas por companhias não atraíam tanta gente assim. O custo de vida não era barato e o investimento era maior em função do planejamento minucioso. E claro, também tinha mais exigências e mais burocracia. Outro diferencial é que em áreas loteadas pelo poder público havia menor participação de autoridades e maior facilidade na realização de negociações escusas.

Intimidada pelo baixo custo dos lotes da antiga Fazenda Brasileira, a Companhia de Terras Norte do Paraná (CTNP), conhecida por vender imóveis por preços mais altos, criou uma situação desconfortável entre as décadas de 1940 e 1950. “A companhia chegou até Nova Esperança e ali parou. Eles queriam nos isolar. Não deixavam ninguém fazer nada em Paranavaí, inclusive convenciam quem queria investir aqui de que seria um mau negócio”, lamenta Mariano.

Nos tempos de colonização, Paranavaí foi palco de muitas brigas de corretores de imóveis. “Não esqueço que em 1950, antes de me casar, eu morava no Hotel Real, na antiga Rua Espírito Santo, e ali mesmo o Cangerana assassinou um sujeito por causa de comissão de terras”, relata Machado. Os pioneiros também se recordam do episódio em que um homem matou na Avenida Paraná, no prédio do antigo Banespa, três pessoas que o enganaram em uma negociação.

Ephraim Machado: "As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Ephraim Machado: “As pessoas partilhavam apenas os mesmos interesses econômicos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

“Os maiores crimes dos tempos da colonização foram provocados por causa de comissão e não disputa de terras”, ressalta Ephraim Machado, embora admita que houve muitas situações em que o capitão Telmo Ribeiro, braço direito do ex-diretor da Penitenciária do Estado do Paraná, Achilles Pimpão, e amigo do interventor federal Manoel Ribas, teve de intervir em casos de grilagem de terras. Ribeiro foi proprietário de uma fazenda que se transformou no Jardim São Jorge.

No entanto, nada se sabe sobre as implicações legais das atuações de grileiros em Paranavaí, deixando subentendido que muita gente pode ter construído fortunas sem se submeter, em qualquer momento, aos rigores da lei. “Desconheço qualquer caso de alguém de Paranavaí que foi punido por causa disso. Ainda assim, sei que encrenca maior se deu na Gleba Sutucu, Areia Branca, dos Pismel e também na Gleba 23. Teve quem foi tirado da terra à força. Juridicamente, não tenho a mínima ideia de como tudo foi feito”, comenta Machado.

O fato de Paranavaí ser tão grande até o início dos anos 1950 facilitava a grilagem de terras. À época, a colônia tinha uma vasta área que ia até as fronteiras com os estados do Mato Grosso (área do atual Mato Grosso do Sul) e São Paulo. Quem iria fiscalizar tudo isso e com quais recursos, sendo que hoje, mesmo com tantos avanços, ainda existe grilagem no Brasil?”, questiona João Mariano.

Sátiro de Melo: "Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos" (Foto: Toshikazu Takahashi)

Sátiro de Melo: “Mineiro era chamado de nortista e nortista aqui era considerado ladrão para os migrantes preconceituosos” (Foto: Toshikazu Takahashi)

Uma transformação social imposta pela pecuária

O pioneiro Ephraim Marques Machado explica que até os anos 1960 era comum um proprietário de terras contratar meeiros para se responsabilizarem pela produção agrícola. “O camarada ia até São Paulo e Minas e falava: ‘Olha, eu tenho 200 alqueires em Paranavaí e vou produzir 100 mil pés de café. Preciso de cinco famílias e dou a ‘meia’ para plantar. Então ele dividia tudo em partes iguais e cada um cuidava de um pedaço”, exemplifica. Com isso, o bom resultado financeiro foi garantido até o surgimento das geadas. A última que castigou a região foi a de 1975.

Nas décadas de 1960 e 1970, Machado viu centenas de meeiros de Paranavaí migrarem para as regiões de Toledo, Marechal Cândido Rondon, Umuarama e Naviraí, no Mato Grosso do Sul. Outros se mudaram para o Norte. Muitas propriedades foram transformadas em pasto depois de 1964 e 1965, quando a colonização caiu bastante. “É aquela: ‘onde entra o boi sai o homem’. O café já não tinha mais tanto valor e o pasto acabou com o que sobrou”, pondera Ephraim. Quem partiu para novas frentes de trabalho trocou a lavoura de café por algodão, amendoim e arroz.

Fazendas que tinham 300 alqueires e garantiam o sustento de pelo menos 15 famílias passaram a ser ocupadas por apenas uma. Em outros casos, nem isso. “A migração modificou a sociedade local. A própria cultura da cidade passou por uma transformação”, enfatiza Ephraim Machado.  A partir da década de 1970, Paranavaí, que até então atraiu tanta mão de obra para as lavouras, chamou muita atenção de empreendedores e pecuaristas de outras cidades e estados. Eram pessoas de alto poder aquisitivo que aqui se fixaram para ocupar posição de grande status econômico e social.

Saiba Mais

Nos anos 1950, já viviam em Paranavaí, além de migrantes de todas as regiões do Brasil, portugueses, italianos, alemães, poloneses, russos, ucranianos, tchecos, iugoslavos, húngaros, espanhóis, neerlandeses, japoneses, franceses, suíços, sírios e libaneses, além de outros povos.

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