David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for August, 2013

Miodrag Petrović e a arte que nasce da guerra

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Quando a poesia humanista de um sérvio é capaz de eternizar soldados

Miodrag Petrović foi o artista militar que acompanhou o Exército Sérvio até o final da Primeira Guerra Mundial (Acervo: Народна библиотека Србије)

Miodrag Petrović acompanhou o Exército Sérvio até o final da guerra (Acervo: Народна библиотека Србије)

Não faz muito tempo que a Biblioteca Nacional da Sérvia (Народна библиотека Србије) lançou um projeto da Coleções Europeana baseado na obra de Miodrag Petrović, um artista que acompanhou todos os passos do Exército Sérvio na Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Pouco conhecido no mundo todo, com exceção da Sérvia, parte do trabalho de Petrović só se tornou público após mais de 90 anos. Seus desenhos e pinturas são acompanhados de poemas e textos alusivos em que amplifica interpretações pessoais, recria metáforas e enigmas. Vez ou outra detalhava o que acontecia no momento de criação de cada imagem, como se reconhecesse a importância de confundir e ao mesmo tempo situar o espectador no contexto da guerra – em situações de conflito ou bastidores.

Para entender a pluralidade do trabalho de Miodrag Petrović é preciso primeiro saber um pouco sobre o seu passado. Nascido em 1888, começou a estudar arte ainda na infância. Mais tarde, migrou para a Alemanha, onde se aperfeiçoou na Academia de Belas Artes de Munique. Com a animosidade do pré-guerra, retornou para a Sérvia e se alistou no Exército. As boas qualificações lhe garantiram um raro reconhecimento como artista militar.

Petrović participou de várias batalhas ao redor de Belgrado em 1914, até que no inverno de 1915 o enviaram para Montenegro, Albânia e ilha grega de Corfu. Antes da guerra chegar ao fim, o artista tinha documentado muitas impressões e criado inúmeras obras das experiências em Tessalônica, na Grécia, e também nos hospitais das campanhas acirradas na Tunísia e Argélia.

Em 1919, Miodrag retomou os estudos de arte em Paris, onde trabalhou e conviveu com alguns dos mais importantes nomes da pintura francesa da época. Apaixonado pelas artes visuais, prosa e poesia, o artista que faleceu em Belgrado em 1950 desenhou, pintou e escreveu até os últimos meses de vida.

O Funeral no Navio-Hospital Divona (Acervo: Народна библиотека Србије)

O Funeral no Navio-Hospital Divona (Acervo: Народна библиотека Србије)

Uma de suas obras de maior repercussão é O Funeral no Navio-Hospital Divona, sobre a embarcação para onde eram transportados os soldados e oficiais sérvios e franceses – doentes e feridos na Primeira Guerra Mundial. Em um de seus trabalhos disponíveis na Biblioteca Nacional da Sérvia, Miodrag explica que em 1915 participou de uma missão no Divona para enviar a Bizerta, na Tunísia, os impossibilitados de lutar. “Dois de nossos soldados morreram durante a nossa viagem pelo Mar Mediterrâneo. Um estava ferido e o outro doente. Testemunhei seus corpos sendo lançados ao mar sob a noite enluarada”, contou.

No relato, diz que às 20h a lua cheia engrandecia o céu límpido. Os dois jovens mortos eram mantidos com a cabeça voltada às bordas do navio enquanto os pés miravam o mar. “Incrível como aqueles cadáveres estavam mentindo, cobertos com a bandeira francesa. Claro, a cor vermelha mais próxima do mar e o branco e o azul disperso, ao longe”, comentou. Para Miodrag, o mar estava especialmente azul-esverdeado, assim como o céu, com o acréscimo do brilho do luar que refletia na água com certa magia.

As lâmpadas da parte de trás do navio continuavam desligadas. Apenas uma pequena luz parcial do lado direito iluminava a cerimônia fúnebre capitaneada por um sacerdote. O homem vestido de preto e usando uma estola se voltou para os corpos e o mar quando começou a ler a bíblia em voz baixa, quase em silêncio. Logo atrás estava o capitão do navio, também trajando roupa preta e, pela primeira vez em toda a viagem, com a cabeça descoberta.

Prosa e Poesia (Acervo: Народна библиотека Србије)

Prosa e Poesia (Acervo: Народна библиотека Србије)

À esquerda do capitão, havia um oficial francês ferido e dois sérvios. Os corpos estavam ladeados por dois marinheiros à esquerda e dois à direita. “Era possível ver de longe o azul ao redor de suas cabeças, a cabeleira branca e o topete vermelho. Nossos soldados feridos e doentes vinham logo atrás, acompanhados por duas enfermeiras de branco com a cruz vermelha em torno de seus braços”, detalhou.

Enquanto a cerimônia era iluminada por uma trêmula e pálida luz amarela-esverdeada, os rostos de todos os presentes tinham o mesmo aspecto – de tristeza e solenidade. Assim que o padre terminou a oração, as enfermeiras sussurraram a Oração do Senhor. “Me recordo do padre dando alguns passos para trás, fechando a bíblia, virando-se para o capitão e falando: ‘Terminei’. Em seguida, o comandante fez um rápido sinal e se aproximou dos corpos”, confidenciou Petrović.

No discurso arquivado há quase cem anos, e muito bem preservado pela Biblioteca Nacional da Sérvia, o capitão disse o seguinte: “Camaradas, longe de sua terra natal, vocês deram o último suspiro neste fraternal barco francês. Vão para o outro mundo, confiantes de que seus filhos, esposas e pais muito em breve viverão a liberdade que vocês não puderam desfrutar. Adeus, camaradas. Adeus…Adeus…”

A Nova Odisseia (Ulisses) I (Acervo: Народна библиотека Србије)

Primeira parte de A Nova Odisseia (Ulisses) I (Acervo: Народна библиотека Србије)

Ao final, o capitão deu um sinal e dois marinheiros levantaram uma parte do tabuleiro e os deslizaram em direção ao mar, onde os corpos afundaram com 30 quilos de ferro presos aos pés. Logo que os cadáveres se chocaram contra a água, um marinheiro soprou bem alto um apito. O ato foi seguido por cinco minutos de silêncio. “Mesmo que tenhamos enterrado tantos companheiros e visto milhares de defuntos, ainda assim era algo que tinha um impacto muito grande sobre todos, a ponto de ninguém ser capaz de dizer uma palavra”, revelou o artista militar.

Prosa, Poesia e a Nova Odisseia (Ulisses)

Em outra de suas obras, intitulada Prosa e Poesia, Miodrag Petrović apresenta um retrato peculiar e bucólico da guerra, baseado na imagem de um soldado sentado debaixo de uma bela laranjeira, abundante em frutos, tentando remover os piolhos que o incomodavam. “O percebi intoxicado pelo cheiro da laranja. As cascas se deitavam ao seu lado. Ele estava encantado com o céu azul e a superfície azul-esverdeada do mar por onde um barco colorido deslizava. Do outro lado da água, podia-se ver a costa da Albânia com as docas cobertas em neve. O rapaz gentilmente retirou o casaco e interrompeu os incômodos insetos aninhados. Tudo para não se distrair da poesia daquele momento”, escreveu Petrović.

A Nova Odisseia (Ulisses) II (Acervo: Народна библиотека Србије)

Segunda parte de A Nova Odisseia (Ulisses) II (Acervo: Народна библиотека Србије)

Já a obra Nova Odisseia (Ulisses) nasceu de um episódio envolvendo o bombardeamento de um navio por submarinos alemães. A embarcação partia de Bizerta, na Tunísia, para a cidade grega de Tessalônica. Na tragédia, apenas um soldado sérvio, um senegalês e dois franceses – um soldado e um marinheiro – sobreviveram. Os quatro se salvaram graças a uma jangada feita de tábuas grossas, um recurso salva-vidas muito comum nos barcos da Primeira Guerra Mundial.

Chegaram a uma costa rochosa vestindo apenas trapos, morrendo de fome, sede e quase “azuis de frio”. “Só lhe restaram as túnicas de verão. Apesar da exaustão, ficaram muito felizes por sobreviverem depois de remarem tanto com as pernas”, enfatizou. Segundo a obra de Miodrag, o mar ficou extremamente agitado e os quatro só não morreram porque surgiram as nereidas.

Enquanto riam histericamente, as ninfas do mar os rodearam e puxaram a jangada em direção à costa, percorrendo pelo menos cem metros. Os sobreviventes estavam pálidos, assustados e confusos. Sentado sobre uma pedra, o soldado sérvio ficou com o olhar vagando em direção à pátria. Logo atrás, uma nereida em pé tocava uma harpa feita de madeira e cantarolava melodias expansivas, na tentativa de animá-lo. “O mar já estava calmo e o dia claro, mas perto das rochas havia apenas uma caverna”, narra o artista, deixando a interpretação livre.

Quando “dois olhos de fogo” brilharam na escuridão

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O dia em que quatro missionários alemães se perderam nas matas virgens de Paranavaí

Jipe usado pelos quatro missionários no dia em que se perderam (Acervo: Ordem do Carmo)

Jipe usado pelos quatro missionários no dia do incidente (Acervo: Ordem do Carmo)

Em outubro de 1954, um artigo intitulado “Noch Ein Missionberich”, do frei alemão Alberto Foerst, da Ordem dos Carmelitas, foi publicado na edição número 10, ano 21, da revista alemã Karmel-Stimmen, de Bamberg, no estado da Baviera. Ao longo de quatro páginas, o missionário relata algumas experiências nas matas virgens de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, onde dividiu bons e maus momentos ao lado dos freis Henrique Wunderlich, Burcardo Lippert e Adalberto Deckert.

No texto, Foerst conta que viajar por uma região em processo de colonização era muito complicado. Os mapas eram imprecisos e os menos precavidos podiam perder-se na mata por dias. “Costumávamos nos orientar pela bússola, mas nem sempre era possível evitar o erro. A nossa sorte é que de vez em quando encontrávamos um caminho já trilhado, facilitando o nosso trajeto”, explica.

Alberto Foerst: "Os menos precavidos podiam perder-se na mata por dias" (Foto: Reprodução)

Alberto Foerst: “Os menos precavidos podiam perder-se na mata por dias” (Foto: Reprodução)

Porém, certo dia, os freis Alberto, Henrique, Burcardo e Adalberto, como eram mais conhecidos em Paranavaí, ficaram com o jipe atolado em meio a uma floresta densa, habitada somente por uma rica fauna silvestre. Embora viajassem com picaretas, pás e outras ferramentas que auxiliavam em situações difíceis, de nada adiantou. Horas depois, veio a escuridão e tiveram de passar a noite na mata. “Não podíamos seguir a pé porque era uma área muito isolada e distante”, justifica.

Mesmo com uma espingarda ao alcance das mãos, os missionários não conseguiam se distrair da “noite tenebrosa” e especialmente escura, acompanhada de um “silêncio sinistro” que os mantinha em alerta. “Apesar de tudo, como o dia foi estafante, chegou um momento em que cochilamos. Só acordamos quando ouvimos as cobras fazendo ruídos nas ramagens e madeiras apodrecidas da floresta”, conta frei Alberto no artigo “Noch Ein Missionberich”, de 1954.

Não demorou muito e um grupo de macacos começou a gritar bem alto. Daquela escuridão, “dois olhos de fogo” brilharam em direção aos quatro missionários. Foi quando perceberam que estavam cercados por uma onça. “Ficamos assustados e os nossos corações dispararam. O medo era tão grande que podiam tirar nossa pulsação pelo dedinho do pé. A onça nos farejou e circulou o jipe por algum tempo”, relata.

Henrique Wunderlich, Burcardo Lippert e Alberto Foerst (Acervo: Ordem do Carmo)

Henrique Wunderlich, Burcardo Lippert e Alberto Foerst (Acervo: Ordem do Carmo)

Com dificuldades de raciocínio, se entreolhavam, crentes de que a espingardinha de chumbo fino seria inofensiva contra o selvagem animal. “Ela só riria de nós. Então decidimos ficar quietos, sem se mexer ou respirar alto”, continua. Aguardando a iminência de uma tragédia, os missionários foram salvos por uma eventualidade. Um macaco, debandado de seu grupo, saltou sobre uma imensa árvore que estava acima do jipe, chamando a atenção da onça.

“Ela saiu no encalço dele e respiramos aliviados. Se bem que não dormimos mais naquela noite e ficamos muito felizes quando amanheceu. É uma pena que não haja fotos do episódio”, lamenta. Pela manhã, os quatro aventureiros procuraram as chamadas “árvores elétricas” que ofereciam energia para equipamentos elétricos. A voltagem mais alta ficava nas copas e a mais baixa nas raízes. “Para conseguir uma boa voltagem era preciso pendurar nos galhos. A força da energia estava subordinada ao atrito provocado pelo vento no meio das folhas”, destaca Alberto Foerst.

Depois de usarem os barbeadores elétricos, os missionários se perguntaram o que fariam para sair daquela região desconhecida, pois tinham o compromisso de abençoar uma nova escola. Então Henrique Wunderlich pegou a sua gaita de boca e começou a tocar. “Logo apareceram índios [de etnia caiuá] de todos os lados, atraídos por aquela mágica melodia. O frei Henrique ainda tocou mais algumas músicas e pedimos que os nativos nos ajudassem. Deram a direção certa e conseguimos chegar ao nosso destino”, acrescenta.

No mesmo dia, foram convidados para conhecer uma interessante granja de galinhas. Em torno do aviário, havia uma grande e bela roça de girassóis que deixou os alemães admirados. “Nos falaram que serviam de alimento para as galinhas botarem ovos com mais gorduras saudáveis. Explicaram que os ovos saíam com uma camada extra que dispensava o uso de óleo na hora de prepará-los”, enfatiza.