Archive for October, 2014
O homem que sobreviveu a três tentativas de assassinato
Nebrão: “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio”
Quem conversa com o pacato Nebrão, de 33 anos, não imagina que ele já foi um dos homens mais perseguidos da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Comunicativo e de fala mansa, hoje se orgulha da vida tranquila e também de ter evitado que crianças e adolescentes entrassem ou continuassem no mundo do crime.
“Saí desse caminho errado graças a Deus. Já fui ladrão sim. Também me envolvi em outras coisas erradas. Não posso negar meu passado, mas me distanciei dessa vida sem futuro”, garante enquanto exibe inúmeras cicatrizes, principalmente marcas de facadas. De origem pobre e sem estrutura familiar, Nebrão é um raro exemplo de sobrevivência, ainda mais levando em conta que no bairro onde foi criado quem se torna criminoso precisa de sorte para chegar aos 25 anos.
O rapaz perdeu muitos amigos de infância e adolescência nos anos 1990, quando uma onda de terror tomou conta do bairro. Naquele tempo, a Vila Alta era conhecida como Vila do Sossego. “Muita gente foi pra debaixo da terra e outro monte pra cadeia. Era bandido matando bandido. É até difícil citar uma rua onde não morreu ninguém na época”, afirma. Os assassinatos no bairro sempre tiveram relação com o narcotráfico ou rixas entre facções do crime organizado. “Aqui é bem tranquilo para quem não se envolve com essas coisas, mas o ‘bicho pega’ se tu seguir a vida do crime e der mancada”, garante e cita o exemplo de um garoto de 13 anos que morreu após levar um tiro na cabeça enquanto estava escorado sobre um tanque, bebendo água da torneira.
O adolescente foi morto porque furtou uma trouxinha de drogas. A tolerância é zero, tanto com quem tenta enganar algum traficante quanto com quem consome e não paga pelo produto. “A quantidade nunca interessa. Pra eles, o mais importante é impor medo e respeito, mostrar que a punição é mortal”, enfatiza. Enquanto converso com Nebrão, ele faz questão de caminhar alguns passos e me mostrar onde três adolescentes foram executados porque “cresceram os olhos” sobre os lucros do chefe. “Quem se envolve com a bandidagem tem que respeitar também a lei do crime”, explica.
Por muito tempo, Nebrão foi conhecido como o maior “ladrão de água e de energia elétrica da Vila Alta”, atividade que depois lhe trouxe problemas com a Companhia Paranaense de Energia (Copel), Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e polícia militar. Autodidata, se tornou uma espécie de mestre das gambiarras. “Só de olhar, eu sabia o que tinha de fazer. Por R$ 35, eu resolvia o problema de qualquer um. Só ficava sem água ou sem luz quem quisesse”, lembra e acrescenta que já atendeu cerca de 1/3 do bairro.
Famoso pelo serviço rápido, o rapaz desde cedo demonstrou talento em montar e desmontar objetos. Chegou a ser contratado para furtar pontes de córregos. “Dependendo do tamanho, ele não precisava nem de uma hora para desmontar e levar embora”, garante um amigo que entre sorrisos testemunha a conversa. Envolvido com furtos, roubos e receptação de mercadorias desde a adolescência, Nebrão declara que só está vivo porque Deus quis assim. “Quem tem um histórico parecido com o meu não vive muito. Sou um sobrevivente”, garante.
O rapaz tem motivos para pensar assim. Perdeu as contas de quantas noites dormiu sem saber se acordaria. Uma vez atearam fogo em sua casa de madrugada. Nebrão percebeu o incêndio a tempo e escapou da morte, apesar dos prejuízos materiais. “Comecei a ser perseguido porque um cara delatou dois traficantes e deu o meu nome como se fosse o dele. Ele queria me ‘ferrar’”, revela.
Quando tudo parecia ter voltado à normalidade, Nebrão foi surpreendido na rua por dois homens armados. No momento da execução, apesar da insistência dos atiradores, nenhum dos revólveres disparou. “Dei como certa a minha morte. Ouvi só o barulho acionado pelo gatilho, mas a bala não veio. Corri e vieram no encalço com pedaços de pau. Tentaram me derrubar golpeando minhas pernas. Não caí por milagre e consegui escapar mais uma vez”, confidencia o rapaz que é alto e corpulento, o que também pode ter ajudado na fuga.
As histórias de Nebrão são confirmadas por outros vizinhos que se aproximam para ouvir a conversa. Apesar das tentativas de homicídio, continuou no bairro, próximo da família e dos amigos. Mais tarde, um conhecido apareceu na casa do rapaz e gritou: “Ô, nego, chega aí. Quero falar contigo, é papo reto, coisa rápida.” Em seguida, a irmã de Nebrão disse: “Tenha fé, meu irmão. Deus me disse que hoje você vai amarrar o diabo.”
Quando abriu o portão, o sujeito apontou o revólver para Nebrão que começou a orar enquanto mantinha os olhos fixos sobre o atirador. “Ele abaixou a arma, chorou e disse que não aguentava mais aquela vida. Decidiu se entregar para a polícia”, relata Nebrão que em diversas situações foi perseguido por falsas denúncias de delação de traficantes.
Naquele dia, o homem enviado para matar Nebrão já tinha assassinado cinco pessoas na periferia de Paranavaí. Preocupado com o futuro, Nebrão se distanciou do crime, parou de beber, fumar e se tornou evangélico. Admite que atualmente ganha pouco para sobreviver, mas está feliz por não dever nada a ninguém. “É um dinheiro honesto. Quando a situação aperta, trabalho até na roça nos finais de semana”, assegura.
Hoje, se empenha em fazer alguma diferença na vida de crianças e adolescentes que se tornam ladrões ou ingressam no mundo das drogas. “‘Mando a real’ na molecada. Explico que esse caminho não traz nada de bom. É uma ilusão, e se continuar nele vai morrer sem aproveitar a vida. Aos traficantes e ladrões que conheço, peço pra não oferecer droga nem serviço pra eles. O que posso fazer é aconselhar e pedir”, comenta Nebrão que já conquistou bons resultados com essas ações.
Saiba Mais
Nebrão é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
Vivendo na Vila Alta
Garotos de 12 anos contam histórias sobre o cotidiano em um dos bairros mais pobres de Paranavaí
No último sábado, passei a tarde toda na Vila Alta, um dos bairros mais pobres e isolados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Foi o suficiente para ouvir muitas histórias sobre a realidade de cinco garotos de 12 anos.
Enquanto brincavam, chamei a atenção de um e perguntei se sabia o significado do símbolo na camiseta que ele vestia. Respondeu negativamente com a cabeça e sanei sua curiosidade explicando que era o logotipo da banda cristã de metalcore (uma mistura de heavy metal com hardcore) Devil Wears Prada, dos Estados Unidos.
Quando questionei sua idade, hesitou um pouco, mas contou que tem 13 anos. O amigo ao lado o corrigiu, dizendo que são 12 anos. “Vixi, você não sabe nem sua idade!”, repreendeu. O garoto que vou chamar de R. para preservar a sua identidade justificou que nunca viu os próprios documentos. “Fica tudo com minha vó, ela que sabe dessas coisas”, se defendeu enquanto coçava a cabeça.
R. continuou falando e ressaltou que foi jogado na rua pela mãe quando tinha três anos. “Ela me batia muito, não gostava de mim. Quem me tirou da rua foi minha avó. Se não fosse por ela, eu ainda ‘tava’ lá”, garante. V. aproveita a confidência do amigo para revelar que seu pai sempre bate na sua mãe. Por isso, hoje só dorme na casa da avó. “Não consigo mais dormir com eles. Não durmo em nenhum outro lugar, só na minha avó”, enfatiza.
R., que abandonou a escola, assim como outros dois garotos de uma turma de cinco amigos, já passou muito tempo nas ruas. Com nove anos, além de usuário de drogas, se tornou “laranja” do narcotráfico. “Eu roubava [furtava] também. Um dia, a gente ‘passou a mão’ em uns canos de alumínio e levamos pra uma dona de um ferro-velho. Falamos que a Copel [Companhia Paranaense de Energia] descartou tudo no “Lixão”. Era mentira. A polícia veio atrás e a gente teve de correr”, explica. As histórias de R., contadas com singela inocência e peculiar ausência de noção moral, são confirmadas por um adulto que o conhece há mais de três anos.
Acostumados a passar bastante tempo fora de casa, é costume os garotos retornarem ao convívio familiar tarde da noite. “Fico na casa do V. até as 22h. Tem época que vou embora só pra dormir”, relata R. O tempo livre é ocupado jogando bola, matando passarinhos e brincando no bosque ou em uma área conhecida como “Barragem”.
O costume de matar animais não domésticos surgiu com a fome, mas acontece também de algumas crianças fazerem isso sem justificativa aparente. “Parei porque não é legal”, comenta A. O mais intrigante é que a maneira como falam sobre o assunto não demonstra crueldade, e sim falta de referência entre certo e errado, o que é permitido ou não.
É proeminente o desconhecimento sobre a importância da vida animal. Dois garotos disseram que raptaram filhotes de quati e diversas vezes perseguiram outros animais no Bosque Municipal de Paranavaí apenas por diversão. Esse tipo de situação é incentivada pelas atitudes dos mais velhos. Exemplo é um episódio protagonizado por um pai de família que aproveitou um incêndio no bosque para matar quatro macacos-prego em fuga. Um vizinho denunciou que o homem cozinhou, assou e comeu os animais, acompanhado da mulher e dos filhos.
“Aí já aconteceu de tudo. Teve uma época que a gente vivia fumando maconha lá dentro”, salienta R. enquanto aponta em direção a um buraco feito com alicate na cerca lateral do bosque. W. aproveita a “deixa” do amigo para confidenciar que há dois anos testemunhou um assassinato na “Barragem”. “Vi uma turma matando um cara com golpes de ferro de portão. Só me falaram pra sair de lá”, garante. O local é citado pelos moradores mais velhos como uma área neutra, onde facções criminosas resolviam desavenças e se livravam de cadáveres.
Curioso, um garoto ainda mais jovem e que não faz parte da turma pergunta se estou entrevistando eles. Respondo que sim e pede para escrever que o sonho dele é ter duas armas, andar de “carrão” com uma mulher no colo e ir pra “zona” tomar pinga. “É isso que quero pra minha vida”, complementa sorrindo.
Na sequência, R. lembra que há pouco tempo achou no “Lixão” um saco de balas de revólver. “Só tinha bala vermelha”, afirma. Da turma de cinco amigos, M. é o único que não reprovou na escola e se orgulha do feito, considerado raro entre os garotos do bairro que têm a mesma faixa etária. Muitos crescem sem incentivo para estudar.
“Falam que é bobeira, que estudar não vai dar em nada. Tem pai até que proíbe de ir pra escola”, assegura R. que mal sabe ler e escrever. Também é preocupante o quadro de analfabetismo funcional. Na Vila Alta, muitas crianças leem, mas poucas assimilam o aprendizado a ponto de explicar o que entenderam. Para reforçar o problema, cito como exemplo outra ocasião em que entrevistei dez garotos e seis disseram que estudaram em sala especial.
Em contraponto, é fácil perceber que muitos jovens do bairro são espertos e tem dons que não são aproveitados ou estimulados. Crentes de que o futuro dificilmente vai melhorar, acabam aceitando o convite para ingressar no mundo do crime. “O que mais aparece é gente chamando pra roubar alguma coisa ou vender drogas. Às vezes, você decide roubar porque ‘tá’ com fome”, destaca R., acrescentando que tem crianças do bairro que passam o dia na rua procurando algo pra comer, principalmente as que vivem a dura realidade do abandono ou ausência familiar.
Um dia, me deparei com uma criança no fim da Vila Alta, no “Lixão”, sentada sobre uma placa de “vende-se”, comendo restos de comida descartados por um restaurante do Centro de Paranavaí. Ela parecia não se incomodar com a presença de um urubu se alimentando da carniça de um cachorro a alguns metros de distância. Me aproximei, dei algum dinheiro, ela agradeceu assustada e foi embora. Moradores das imediações me informaram que essa cena não é incomum. “A sua intenção foi boa, mas pode acreditar que isso não vai acabar assim. Precisamos de muita ajuda aqui”, avalia a dona de casa Maria Cândida de Oliveira.
Ajudando jovens em situação de risco
Oficina do Tio Lú tira crianças e adolescentes das ruas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná
Na Vila Alta, há poucos metros do Bosque Municipal de Paranavaí, na Casa 10 da Rua B, um corredor leva à Oficina do Tio Lú, um atelier bastante movimentado, onde 12 crianças e adolescentes em situação de risco ocupam o tempo livre transformando pedaços de madeira em obras de arte.
Sob a tutela do artista plástico Luiz Carlos Prates Lima, de 83 anos, aqueles que estão tendo o primeiro contato com a atividade aprendem sobre a utilidade de cada ferramenta, além de conservação de materiais e precauções de uso. “Ensino a lixar, medir e trabalhar simetria. Explico como reconhecer as qualidades de cada tipo de madeira. Aqui existe um passo a passo pra tudo”, garante Luiz Carlos que mostra também a importância do trabalho coletivo na criação de cada obra, o que melhora também a capacidade de socialização dos participantes.
Os mais experientes aprendem a fazer um bom acabamento e a desenhar peças, levando em conta a finalidade das obras. Se for decorativa, há uma preocupação maior com o valor estético. “Sou feliz aqui porque o ‘Seu Luiz’ é como um pai pra nós. Prefiro ficar na oficina do que na rua ou em casa”, comenta o aluno Robson Silva, de 12 anos, que se emociona e sorri com timidez ao contar que já lucrou R$ 50 com as peças produzidas na Oficina do Tio Lú.
Aproveitando a presença do amigo, Ariel Gonçalves Souza, também de 12 anos, se aproxima e conta com orgulho que sabe fazer carrinho, carroça e calhambeque de madeira. “Lixo bem, pode ver!”, comenta em tom de voz seguro. Luiz Carlos confirma: “É verdade. Ele monta direitinho cada peça.”
A harmonia na oficina é conduzida pelo jeito sério, mas comunicativo e carinhoso do artista plástico que se preocupa com o que acontece com os alunos dentro e fora da oficina. “Você ‘tá’ precisando de outro calçado. Nós vamos dar um jeito nisso”, diz Luiz Carlos para o lixador Vitor Hugo Gonçalves Souza, de 12 anos, que estava usando um tênis com dois furos grandes nas laterais.
Mateus Brito Gonçalves, primo de Vitor, ajeita o boné e conta que aprendeu a fazer até fogãozinho. “Ah! Tenho um amigo que conseguiu arrumar a bicicleta com o dinheiro das peças que fez e vendeu”, revela Robson. Ao longo da conversa, o artista plástico chama a atenção de um garoto que fala um palavrão sem perceber a gravidade do ato. “Foi mal, ‘Seu Luiz’”, reconhece o aluno envergonhado e cabisbaixo.
Os participantes da Oficina do Tio Lú são todos amigos. A maioria se conhece há anos. Mesmo assim as brincadeiras são permitidas só nos intervalos, como a “hora do lanche” que começa às 17h, pouco antes do final da aula. Durante a oficina, os sons mais altos saem principalmente das lixadeiras. “Aqui é bom porque a gente não fica na rua e ainda ganha um lanche caprichado”, comenta Mateus sorrindo.
Uma vez por semana, Luiz Carlos também oferece almoço para a garotada. No sábado que antecedeu o Dia das Crianças, o aroma do frango desfiado, especialidade da artesã Lindinalva Silva Santos, companheira do artista plástico, foi tão longe que até quem não era aluno pediu para participar da festinha que reuniu 16 crianças e adolescentes. “Gosto assim, todo mundo comendo à vontade e saindo daqui satisfeito”, diz Luiz Carlos que ao final do almoço costuma reunir todo mundo para um bate-papo sincero.
Na ocasião, os garotos falam sobre a vida, a família e o cotidiano. Em seguida, ouvem conselhos de quem os trata como se fossem filhos. É interessante ver como respeitam Luiz Carlos, provavelmente porque encontraram no artista uma figura paterna, alguém que se importa muito com o futuro deles.
Não é à toa que a Oficina do Tio Lú, criada para atender jovens em situação de risco de segunda a quarta, das 14h às 18h, hoje funciona de segunda a sexta, das 8h às 11h30 e das 14h às 17h30. “Se dependesse deles, não iriam embora não. Agora faço minhas peças só de madrugada. Durante o dia, me dedico à oficina porque sei que eles precisam mais de mim do que eu de dinheiro”, avalia Luiz Carlos que também desempenha funções de pai substituto.
Mesmo sob sol escaldante, Luiz Carlos e Lindinalva já saíram muitas vezes de bicicleta para levar alunos enfermos ao Pronto Atendimento Municipal e Unidade Básica de Saúde (UBS). “Tiramos bicho-de-pé, lidamos com anemia, sarna e outras coisas mais. Fazemos tudo ao nosso alcance quando não conseguimos ajuda profissional”, garante o artista.
Saiba Mais
Localizada na periferia, a Vila Alta é um dos bairros mais pobres de Paranavaí.
Criada de forma independente por Luiz Carlos Prates Lima, hoje a Oficina do Tio Lú é um exemplo de trabalho social em prol de jovens carentes.
Lurdinha: “Meu sonho era trabalhar em uma biblioteca”
Em Paranavaí, Maria de Lurdes dedicou 26 anos à Biblioteca Júlia Wanderley
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até o dia 29 de setembro, uma segunda-feira, a rotina da auxiliar de serviços gerais Maria de Lurdes Sousa Silva era acordar às 5h30, chegar à Biblioteca Municipal Júlia Wanderley às 6h40 e preparar o café e o chá às 8h. Tradicionalmente, antes ouvia as notícias da Rádio Cultura e da Rádio Caiuá. “Meu expediente começava às 8h, mas eu fazia questão de chegar bem mais cedo”, comenta Lurdinha, como sempre foi conhecida no trabalho.
Aos 61 anos, a auxiliar de serviços gerais nunca deixou nada passar despercebido. Mesmo no último ano de trabalho, Lurdinha ainda tinha fôlego para limpar a biblioteca, a Fundação Cultural de Paranavaí e o Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Uma vez fiquei um mês sozinha. Fazia o café da biblioteca e da Fundação Cultural e ainda limpava tudo. Na hora do almoço, para adiantar o serviço, eu cuidava da limpeza dos banheiros”, relata.
A tarde de Lurdinha era dedicada ao Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa. “Não saía de lá se não estivesse limpo como a minha casa. “Fazia com muito amor e carinho”, garante sorrindo e diz que não se esquece das vezes em que levou água fervendo da biblioteca para a Fundação Cultural. A intenção era ganhar tempo, deixar o cafezinho pronto o mais rápido possível.
Pontual em tudo que faz, Maria de Lurdes almoçava às 11h30, acompanhada da edição do dia do Diário do Noroeste. “Não abria mão disso. Eu ficava doente se não lesse o Diário”, brinca Lurdinha que se tornou muito querida no serviço, onde conheceu bastante gente e fez grandes amizades.
Cita como exemplo do bom relacionamento o trabalho colaborativo na limpeza dos camarins do Altino Costa. “Uma colega sempre ajudava a outra, até porque ficamos bem amigas”, comenta e se emociona ao falar que considera os funcionários da Biblioteca Municipal Júlia Wanderley e da Fundação Cultural como parte de sua família.
Só na biblioteca, Lurdinha trabalhou 26 anos. Tudo começou em 1984, quando a Júlia Wanderley funcionava onde é hoje a Câmara Municipal de Paranavaí. “Pedi para a ‘dona Miriam’, mulher do ex-prefeito Pinto Dias, me transferir pra lá porque meu sonho era trabalhar em uma biblioteca. Eu não sabia o que era”, confidencia.
O pedido foi atendido e Lurdinha dedicou 18 anos à Júlia Wanderley. “Mais tarde, me transferiram para o Colégio Municipal Santos Dumont. Depois de quatro anos, voltei para a biblioteca, onde fiquei até me aposentar na semana passada”, explica.
Em tom nostálgico, se recorda com alegria dos tempos em que a Biblioteca Municipal funcionava na Rua Souza Naves, próxima ao Banco Real. “A gente recebia de 150 a 200 alunos por dia. Lá, eu tinha medo de entrar no cofre porque naquele lugar funcionou um banco e um dia um gerente se matou lá dentro por enforcamento”, relata.
Ao longo de dez anos, Lurdinha trabalhou aos sábados até as 12h. “Também trabalhei muitos domingos. Isso foi quando não havia internet e os estudantes iam para a biblioteca fazer pesquisas”, justifica e acrescenta que durante a semana a Júlia Wanderley, que chegou a ter dez funcionários, ficava aberta até as 22h para atender a demanda dos estudantes.
O ambiente fez Maria de Lurdes se apaixonar pela leitura. Além de ler nos intervalos, fazia questão de levar revistas e livros para casa. “Ficava curiosa em ver tanta diversidade nas estantes. Comecei a gostar de ler ainda na época das revistas Cruzeiro e Manchete”, destaca e conta que recentemente se encantou lendo o livro “O Menino do Dedo Verde”, do francês Maurice Druon.
Em pouco tempo, aprendeu muito sobre o acervo da biblioteca. Na ausência de alguma funcionária, os frequentadores da Júlia Wanderley tiravam dúvidas com a Lurdinha. “Sempre gostei tanto daquele lugar que eu até falava com os livros. Era uma terapia pra mim ficar em contato com eles”, assegura.
Por muitos anos, Maria de Lurdes Sousa Silva passou mais tempo na Biblioteca Municipal do que em qualquer outro lugar. “Era minha segunda casa. Agora estou numa tristeza muito grande por ter me aposentado. Ainda não me acostumei”, revela.
Vila Alta e a realidade da periferia
Documentário mostra que a Vila Alta também é uma comunidade de pessoas honestas
Disponibilizei hoje no meu canal no YouTube o documentário “Vila Alta”, que faz parte da série Realidade da Periferia, composta por um filme de longa-metragem, um de média-metragem e um curta. É uma trilogia de documentários. Todos estão relacionados, tanto que há referências de cada obra nos três filmes.
Na semana que vem começo a produzir o curta-metragem “Ivan & Rose”, sobre as dificuldades e o cotidiano de um casal de catadores de recicláveis que vive com R$ 280 por mês. O filme fecha a trilogia iniciada com a obra “Oficina do Tio Lú”, lançada em fevereiro.
Mas voltando ao filme que lancei hoje, o documentário Vila Alta mostra que há mais de 30 anos os moradores mais pobres da área rural e de diversos bairros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foram obrigados a se mudar para um lixão no fim da Vila Operária. No local, mesmo sem energia elétrica e água encanada, eles montaram dezenas de barracos de lona para abrigar suas famílias.
Vivendo sob condições sub-humanas, ainda tiveram de conviver com o preconceito, a intolerância, a violência e a criminalidade. Socialmente invisível, a população do bairro, que um dia foi conhecido como Balão Mágico e Vila do Sossego, hoje sofre para se livrar de um estigma social que se perpetuou ao longo de décadas.
Em Paranavaí, os mais jovens crescem ouvindo histórias que reforçam o mito de que a Vila Alta é uma “terra de criminosos”, um lugar onde ninguém deve ir. Não é à toa que a maior parte da população da cidade não conhece o bairro.
O documentário destaca outra realidade pouco conhecida. Na contramão da sua fama, a Vila Alta também é uma comunidade de pessoas honestas, batalhadoras e sensíveis que mesmo privadas das necessidades básicas ainda lutam e sonham com um futuro mais digno.
Apresentado de forma crua, mas solene, Vila Alta é uma obra testemunhal em que os personagens dialogam livremente. Do início ao fim, para reforçar o caráter intimista, a câmera é apoiada sobre uma mão. Não há escapismo, tratamento de imagem, uso de microfone externo e neutralização do som ambiente. Até mesmo alguns ruídos são preservados, cumprindo o objetivo de retratar com fidelidade as particularidades de cada momento, assim como o universo de cada personagem.
Para quem quiser assistir ao filme na íntegra, segue o link:
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