Archive for January, 2015
O assassinato de Raphael Azambuja na Areia Branca do Tucum
Amigo de Leonel Brizola e primo de Erico Verissimo, empreendedor foi assassinado em 1962 durante negociação de terras na região de Paranavaí
Em 1962, o empreendedor gaúcho Raphael Verissimo Azambuja costumava vir a Paranavaí, no Noroeste do Paraná, pelo menos uma vez por mês para comprar terras e investir no desenvolvimento da Gleba Areia Branca do Tucum, às margens do Rio Paraná. Sempre telefonava do Rio Grande do Sul pedindo que o gerente da Reta Táxi Aéreo, Augustinho Borges preparasse um avião para levá-lo até o local.
“Ô Augustinho, e no domingo, tal hora, você me pega lá pra eu tomar o avião da Varig para o Rio Grande do Sul, mas antes ligo confirmando”, lembra Borges, reproduzindo as palavras de Azambuja na primeira semana de julho de 1962. O então gerente estranhou que o final de semana terminou e não recebeu nenhum telefonema de Raphael Verissimo.
Na segunda-feira de manhã, logo depois de levar alguns pilotos e passageiros para o Aeroporto Edu Chaves, o telefone tocou. Era o governador do Rio Grande do Sul. “Ô meu jovem, é o seguinte: Falei com a diretoria da Reta em Londrina e eles recomendaram que eu entrasse em contato com você. Preciso que me faça um grande favor”, disse Leonel Brizola.
O governador explicou que o seu amigo Raphael Verissimo Azambuja foi assassinado no sábado. “Perguntei o que ele queria que eu fizesse. ‘Olha, arruma o corpo, põe dentro do avião e manda ele pra mim. Pago todas as despesas aqui’”, prometeu Brizola após detalhar a situação.
Surpreso com a educação e cordialidade do governador que preferiu resolver tudo por conta própria em vez de transferir a responsabilidade para alguém, Borges se tornou fã do político. “Levei um susto. De todos os homens públicos com quem conversei até hoje, o Brizola foi o que mais se destacou pra mim. Tinha grandes valores e conversava com todo mundo de igual para igual”, justifica Augustinho Borges.
Naquele tempo, Azambuja tinha uma fazenda que ficava próxima a Nova Londrina e Marilena. Acostumado a viajar pela região, o empreendedor de 53 anos não imaginava que seria assassinado por um amigo na manhã do dia 7 de julho de 1962. A traição aconteceu quando o homem percebeu que as terras que vendeu a Raphael Verissimo conquistaram um bom valor de mercado em pouco tempo. “O sujeito de sobrenome Volpato ficou enciumado e desferiu cinco tiros à queima-roupa contra meu pai, um homem de bem e que andava desarmado”, afirma Alan Verissimo Azambuja.
Sobre o episódio, o conceituado escritor Erico Verissimo declarou que a discussão começou quando o suposto amigo de Azambuja exigiu um reajuste de preços por compensação. “Meu primo disse que o negócio estava feito e pronto. Quando se recusou a concedê-lo, o outro meteu-lhe vários balaços no corpo, matando-o quase instantaneamente”, escreveu Verissimo na biografia Solo de Clarineta, lançada em 1973.
De acordo com Augustinho, Azambuja era um sujeito excepcional, de caráter inquestionável. No entanto, foi iludido pela própria ingenuidade, pois não sabia que a Gleba Areia Branca, nas imediações do Porto São José, tinha uma das piores famas do Paraná. “A demanda de terras naquele lugar era tão grande quanto a criminalidade. Era violência em cima de violência. Pra você ter uma ideia, meus parentes moravam lá e chegavam a juntar sacos de cápsulas de balas”, confidencia Borges.
Após o crime, os funcionários da fazenda de Azambuja encaminharam o corpo para uma funerária de Nova Londrina. De lá, Augustinho o trouxe a Paranavaí, onde preparou um quadrimotor de Havilland DH.114 Heron para 16 passageiros. “O avião tinha o apelido de Constellation Baiano. Aluguei ele com piloto e copiloto para levar o caixão porque naquela época não tinha aeronave própria pra esse tipo de transporte”, explica Borges que contou com a ajuda da Star Taxi Aéreo, de Londrina.
Como não podia se ausentar do trabalho, Augustinho relatou a situação para o Major Valle, responsável por comandar o trabalho policial na região de Paranavaí. “Falei que veio um pedido do Brizola para que o major acompanhasse o transporte do corpo. Então o comandante contou que tinha medo de andar de avião, tanto que nunca entrou em um”, destaca.
Para convencer o Major Valle a embarcar na aeronave, Borges o levou até um boteco em frente ao Aeroporto Edu Chaves. Lá, garantiu que o homem ganharia coragem depois de tomar algumas doses de uma pinga com cascavel. “O couro da cobra chegava a balançar no fundo da garrafa. Consegui arrumar tudo e coloquei ele dentro do avião. Mas, rapaz, quando era mais ou menos 6h recebi um telefonema”, enfatiza.
Augustinho despertou com os berros do Major Valle. O homem gritava: “Filho da puta, você vai me pagar quando eu chegar aí. O avião pegou fogo na descida, perto de uma mangueira. Esfumaçou tudo!”, recorda Borges às gargalhadas. Apesar dos imprevistos, o comandante cumpriu a missão. Em Porto Alegre, entregou o corpo de Raphael Azambuja para o governador Leonel Brizola que o agradeceu pessoalmente e cobriu todas as despesas.
Ainda assim, o Major Valle se recusou a voltar de avião e embarcou em um ônibus. Chegou bravo em Paranavaí, mas se acalmou e convidou Augustinho para tomar chimarrão. “Só me deu uns tapas na cabeça por ter que ficar mais de oito horas passando medo dentro da aeronave”, conta sorrindo.
Azambuja queria transformar o Noroeste no celeiro do Brasil
Segundo o filho Alan Verissimo Azambuja, Raphael Verissimo Azambuja acreditou tanto no desenvolvimento da região de Paranavaí que abriu mão de ser ministro da agricultura quando o amigo João Goulart assumiu a presidência do Brasil. “Mesmo com os apelos dos mais próximos, meu pai preferiu dedicar-se integralmente ao grande projeto de sua vida que era transformar o Noroeste do Paraná no celeiro do Brasil. Seu empreendimento colonizador ia de vento em popa”, assinala.
No livro Solo de Clarineta, de 1973, o escritor Erico Verissimo narrou que nos últimos anos de vida a atenção e energia de Azambuja se voltaram para a região de Paranavaí. “Comprou terras de um sujeito de maus bofes que ele, Raphael, na sua boa-fé, julgava seu amigo. Organizou loteamento de terras e fez ruas com entusiasmo e esperança. Quando nos encontrávamos, me expunha seus planos para o futuro: novas cidades, fundação de um banco e construção de um grande edifício. Acreditou sempre no futuro do Brasil e costumava lançar longe o dardo de seus bem arquitetados sonhos”, registrou Verissimo, falecido em 1975.
No livro, o escritor relata que de uma das janelas da casa onde morava em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, avistava o cemitério onde o corpo do primo foi enterrado. “Raphael, assim como tantos outros amigos, como a minha própria mãe, na realidade não se encontra em seu túmulo. Com maior ou menor intensidade, continua ainda vivo dentro de mim. Por um desses milagres da memória, eu o tenho sempre ao meu lado”, poetizou.
Raphael Verissimo coordenou as campanhas de Brizola
Raphael Verissimo Azambuja nasceu em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul, em 1º de março de 1909. Nos anos 1940, trabalhou como assistente do ministro João Alberto de Lins e Barros e desempenhou os cargos de chefe do Setor do Abastecimento Nacional e do Serviço de Fiscalização de Preços do governo federal. Atuou também na chefia de propaganda do Partido Social Democrático (PSD). À época, chegou a receber uma carta de agradecimento do presidente da República, Eurico Gaspar Dutra.
Em 1947, quando estava hospedado em um hotel em frente a um lago em Velden am Wörther See, na Áustria, Azambuja conheceu a jovem Marion Mitterling, antes chamada Doina Sturza. Era uma jovem romena que perdeu pai, mãe e seis irmãos na Segunda Guerra Mundial e na Ocupação Soviética da Romênia.
Marion trabalhava como assistente da rainha da Bélgica e estava de férias na Áustria no mesmo período em que Raphael Verissimo chefiou uma missão diplomática de seleção de estrangeiros dispostos a se mudarem para o Brasil. “Ele a convidou para um passeio de barco a remo e ela aceitou. Assim começou um grande romance”, frisa Alan Verissimo Azambuja, o primeiro filho, nascido em 1948.
Em 1950, o casal deixou Salzburgo, na Áustria, e se mudou para o Rio de Janeiro, onde Raphael Azambuja trabalhou no Ministério da Agricultura. Em 1955, se tornou chefe do jornal O Clarim, de Porto Alegre, e coordenador das campanhas eleitorais de Leonel Brizola.
A partir de 1956, desempenhou muitas atividades. Comandou o Departamento de Administração e Finanças do Instituto Nacional de Imigração e Colonização e, atendendo a um pedido do governador Brizola, assumiu a Comissão Interestadual para Estudos dos Problemas da Bacia Paraná-Uruguai. “Em 1960, ele foi chefe de assessoria técnica do Ministério da Agricultura e no ano seguinte o nomearam como ministro interino”, cita Alan Azambuja.
Um gaúcho à frente do seu tempo
Um gaúcho à frente do seu tempo é a expressão que melhor define o perfil de Raphael Verissimo Azambuja. “Foi o primeiro sujeito em Cruz Alta [no Rio Grande do Sul] a sair à rua sem chapéu, chocando os nativos. ‘Que desaforo!’, ‘Que desrespeito para com as famílias!’, exclamavam as comadres”, escreveu o primo e escritor Erico Verissimo na biografia Solo de Clarineta.
Azambuja era conhecido como um sujeito questionador, que herdou a inteligência do pai e a vivacidade e capacidade de fazer amigos da mãe. “Ganhou dos dois a coragem para opinar. Nunca deixou de manifestá-la livremente. Era ávido leitor e quando se tornou homem maduro passou a acreditar na vida e na capacidade do ser humano de traçar o próprio destino”, testemunhou Erico Verissimo na obra.
Nos bailes, desde a mocidade atraía atenção pelo costume de dançar com todas as moças menos desejadas. “Ele as enlaçava e saia a rodopiar pelo salão. Dizia coisas agradáveis. Fazia elogios à beleza ou à elegância. Em suma, tornava-as felizes”, declarou o escritor que também fez menção à maneira impecável como o primo se vestia. Azambuja era habilidoso para escrever, mas nunca pensou em dedicar-se à literatura.
Frase de Erico Verissimo sobre o primo Raphael Azambuja
“Desde mocinho revelara uma grande generosidade, dessas que se manifestam nas menores coisas.”
Agradecimento especial
Alceu O. Annes, autor da Genealogia dos Annes Verissimo – material que serviu como principal fonte de pesquisa para a elaboração da reportagem.
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Ni e Jabulana, os guardiões do Cemitério Municipal de Paranavaí
Casal de cães de pequeno porte já evitou furtos e afastou usuários de drogas
São 8h e dois cães pequenos e mestiços prestam atenção em tudo que ocorre nas imediações do portão do Cemitério Municipal de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Quando entro no local, continuam sentados, mas acompanham meus passos com os olhos.
Assim que começo a conversar com a autônoma Maria Lurdes da Silva, um cão de pelagem escura chamado Ni reconhece que não sou uma ameaça, coça a orelha, se levanta e decide patrulhar a calçada à direita do cemitério. Jabulana, uma cadelinha de pelo claro, abana o rabo enquanto segue o caminho inverso, descendo à esquerda.
Maria Lurdes conta que Ni se tornou o guardião do cemitério há mais de quatro anos, pouco antes de ganhar a companhia de Jabulana, encontrada ainda filhote depois de ser abandonada ao relento no cemitério. O nome faz referência à bola da Copa do Mundo de 2010. “Ela estava sozinha, assustada e gemendo”, diz a autônoma que a adotou.
Pouco tempo depois, Ni e Jabulana retornam e percorrem todo o cemitério. Sobem nos pontos mais altos para terem uma visão privilegiada da movimentação. Também circulam pelo cruzeiro e alas das gavetas. Só interrompem o percurso e sentam próximos a um túmulo quando encontram um grupo de pessoas.
Deixam a impressão de que estão checando se está tudo bem no local. Qualquer ação suspeita desperta a atenção dos cães. A vantagem de serem pequenos e aparentemente dóceis é que muitas vezes passam despercebidos por quem entra no cemitério com má intenção.
Espertos, os animais já impediram ações de ladrões de lápides, principalmente furtos de placas de bronze. “Quando veem alguma coisa errada, latem sem parar e partem pra cima”, garante Maria Lurdes, acrescentando que Ni e Jabulana afastaram do cemitério muitos jovens que iam até o local para usarem narcóticos. Embora nunca tenham recebido treinamento, os cães identificam usuários de drogas de longe, mesmo quando não estão consumindo nada.
A rotina de Li e Jabulana como guardiões do cemitério começa junto com o expediente dos funcionários. “Se venho trabalhar todos os dias, eles vêm também. Dependendo, chegamos 6h30, 7h. Daí levo eles em casa pra almoçar, retornamos e ficamos aqui até as 18h”, explica o mestre de obras Sebastião Donizete de Azevedo que constrói e reforma jazigos.
Ni também tem o hábito de proteger a caixa de ferramentas enquanto Azevedo trabalha. “Eles tomam conta de tudo no cemitério. Mexeu onde não deve, a confusão está armada”, garante Sebastião Donizete que é facilmente localizado pela dupla através do faro, independente da distância.
Os cães também montam guarda quando Maria Lurdes realiza algum serviço esporádico de lavagem de túmulos. “Eles ficam do lado observando. São nossos protetores. Ainda bem que nunca ninguém conseguiu machucar eles”, comenta a autônoma que mora em frente ao Cemitério Municipal de Paranavaí com o marido Donizete de Azevedo.
É provável que a convivência e a proximidade com o local de trabalho do casal façam com que Ni e Jabulana vejam o cemitério como uma extensão da própria casa. “Praticamente foram criados aqui dentro, tanto que um dia tivemos de pular o muro para buscar o Ni. Era noite e ele não chegava. Encontramos o bichinho dormindo em cima de um jazigo. Se deixasse, esperaria a gente até no dia seguinte”, revela Maria Lurdes emocionada.
O episódio lembrou o dia em que o pai do cãozinho morreu e o enterraram no quintal. Desolado, Ni passou dias dormindo sobre o túmulo improvisado. “Pois é, mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro”, cita Azevedo sorrindo, se recordando do ditado popular e destacando que o animalzinho é o seu maior companheiro.
Em retribuição, Sebastião Donizete e Maria Lurdes levam os animais para passear quase todos os dias e só os alimentam com ração de alta qualidade. “Na realidade, nos preocupamos mais com a alimentação deles do que com a nossa”, garante o mestre de obras às gargalhadas.
Ni e Jabulana convivem em harmonia com outros animais que moram no cemitério, inclusive os muitos gatos alimentados pelo administrador Amilcar Pereira dos Santos. Pela manhã, é fácil encontrar pratinhos com ração ao lado do escritório administrativo situado na entrada. O ambiente os atrai pela tranquilidade.
“Menina”, a gatinha que gostava de velórios
Há alguns anos, uma gatinha rajada chamada Menina se tornou muito popular nos velórios realizados na Capela Mortuária Municipal, ao lado do Cemitério Municipal de Paranavaí. Era raro o animal não comparecer a algum velório. Ficava quase sempre na mesma posição acompanhando a cerimônia.
“As pessoas se assustavam e diziam que ela parecia gente. Dava a impressão de que ela transmitia respeito. Mantinha a postura e não incomodava ninguém. Ficava só observando”, garante a autônoma Maria Lurdes da Silva, com quem Menina morava desde que era filhote.
Saiba Mais
Sebastião Donizete de Azevedo e Maria Lurdes da Silva foram surpreendidos muitas vezes ao saírem do banco e encontrarem Ni em posição de guarda os aguardando para irem embora. Episódio semelhante se repetiu também em lojas e mercados.
Garota de programa, intemperança e transtorno de personalidade
Hoje, li uma notícia sobre uma moça que atuava como garota de programa em Uberlândia, Minas Gerais. Ela foi assassinada porque chegou atrasada ao encontro com um cliente. No Facebook, um homem com cerca de 35 anos e uma foto de perfil em que aparece sorrindo com dois filhos e a esposa comentou exatamente o seguinte: “Que sirva de exemplo para essas quengas kkkk.”
E há quem se pergunte o que existe de errado na sociedade atual. Pessoas aparentemente normais, bastante sociáveis, muitas vezes se tornam irreconhecíveis na internet. Alimentam a intolerância e deixam bem claro que nutrem desprezo pela vida daqueles que lhes são diferentes.
Se você é afeiçoado à generalizações, incapaz de dialogar abertamente ou de aceitar e discutir diferenças sem apelar para clichês, estereótipos ou senso comum, há grandes chances de que você seja um inimigo do conhecimento e do livre-arbítrio.
Infelizmente, ter uma visão limitada do que deve ou deveria ser o mundo revela um tipo peculiar de intemperança e até de megalomania. No fundo, todos nós temos nossos pré-conceitos e preconceitos. No entanto, o problema se torna crônico quando nos recusamos a entender ou analisar em profundidade algo que poderia nos tornar pessoas melhores.
Hoje em dia, o que tem chamado muita atenção de estudiosos do comportamento humano é a tal dissonância entre quem você é na internet e quem você é fora dela. É um assunto preocupante porque nos últimos anos descobriu-se que em âmbito online houve um crescimento imensurável dos mais diversos tipos de transtorno de personalidade.
Para situar melhor, acho plausível citar um exemplo que considero o mais comum na atualidade. Se uma pessoa conversa com outra fora da internet e a primeira diz que a segunda age de modo completamente diferente quando está online, surge aí um grande indício de que a segunda sofra de algum tipo de transtorno de personalidade.
Acredito que hoje a vantagem é que comportamentos suspeitos são facilmente monitorados pela internet. Então quando uma pessoa tem uma atitude nociva em uma mídia social ou faz apologia à violência, ela não apenas mostra quem realmente é como também pode correr o risco de um dia ser responsabilizada por um comentário inconsequente.
O Velho do Saco que não assustava crianças
A história de um andarilho que se sentia um fazendeiro mesmo morando dentro de um buraco
Ao longo de décadas, muitas crianças de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, principalmente as que cresceram no Jardim Ouro Branco e em bairros próximos, ficavam intrigadas com a folclórica e enigmática figura de um andarilho. “Quando as crianças aprontavam alguma coisa, os pais diziam: ‘Olha, ali vem o Velho do Saco. Fica quieto senão vou mandar ele te levar”, conta o agricultor Arthur Justino da Silva que mora no Ouro Branco desde o início dos anos 1960.
Mas a verdade é que a fama do homem jamais refletiu a realidade. O “Velho do Saco”, como ficou mais conhecido a partir da década de 1980, se chamava Nelson. Era um senhor de 1,67m de altura e barba branca volumosa que se confundia com os cabelos igualmente alvos. Tinha uma postura inconfundível e um andar pausado e remansoso. Quando pegava algo do chão, surpreendia. Em vez de agachar, flexionava o corpo para a frente. Sem dobrar os joelhos, arqueava as costas e encostava as palmas das mãos no chão. “Chegava a dar inveja”, comenta o comerciante José Ferreira de Lima. De sobrenome desconhecido, assim como o número da casa onde viveu tantos anos na Rua Campo Largo, no Jardim Ouro Branco, o Velho do Saco era um sonhador vitimado por uma misteriosa desilusão.
“A casinha dele era normal, com água e energia elétrica. Tinha tudo. Lembro que antigamente ele vendia perfumes e usava uma roupa bem branquinha. Seguia naquela vidinha, lutando”, lembra José Ferreira que conheceu o “Seu Nelson” há mais de 30 anos, quando o vendedor tinha entre 45 e 50 anos. Também atuava como boticário, fabricando os perfumes que comercializava. De repente, desistiu de tudo e se tornou um andarilho. Começou a recolher papelão e outros materiais que jogava dentro de casa. “Só vendia latinhas e cobre. O restante, inclusive papelão e entulho, ele ia amontoando”, conta o pedreiro e vizinho Nélio Ramos Sabatini.
Aos poucos, a residência do Seu Nelson se tornou a morada do Velho do Saco. Sem água e energia elétrica, restando apenas uma casinha ofuscada por uma mata que cobria a fachada, o homem se transformou em outra pessoa. Anos mais tarde, quando o chão da casa abriu, formando uma cratera, Seu Nelson começou a viver dentro do buraco, cercado por toneladas de materiais, entre papelão, ferro e entulhos. No local, dividia o espaço com ratos, abelhas, escorpiões e outros animais. “Era tanta tranqueira que ele nem tinha mais onde guardar”, testemunha o aposentado Alcides Ramos Sabatini.
De vez em quando o Velho do Saco discutia com outro vizinho, sogro de José Ferreira. O motivo era quase sempre o mesmo. O andarilho queria que todos fossem embora do bairro, a sua “fazenda”. “Falava que tudo ali era dele, que a gente estava se apossando de seus bens”, relata o comerciante, acrescentando que apesar de tudo Seu Nelson sempre “fazia as pazes” com todos.
Porém, em época de quaresma, os mais supersticiosos diziam que o Velho do Saco virava lobisomem, um mito que surgiu porque o andarilho chegava em casa muito tarde e passava horas no quintal antes de dormir. “Com o barulho, a cachorrada latia muito, então o povo espalhou essa besteira”, explica Alcides Sabatini.
Com um grande saco nas costas e outro sobre a cabeça, Seu Nelson, que tinha o hábito de comer carne crua, principalmente linguiça, circulava pelo Jardim Ouro Branco e evitava ir muito longe. Tinha uma mochilinha em que carregava pedras que recolhia das ruas. Chamava a si mesmo de garimpeiro, um desbravador que não se interessava mais em ir além da rotatória próxima ao Hospital Unimed, na Rua Luiz Spigolon. Quem sabe, porque Seu Nelson talvez acreditasse que sua “fazenda” terminasse naquele local.
Embora aceitasse comida apenas de José Ferreira, da mulher e cunhada do comerciante, o homem era visto com frequência nas imediações do Hipermercado Cidade Canção e da Praça dos Pioneiros, onde coletava e comia restos de lanches e salgados das lixeiras. Ocasionalmente, parava para descansar em bares e lanchonetes de conhecidos. “Ele passava um bom tempo aqui, mesmo sujo e com um odor bem forte. Sei que isso poderia afastar os clientes da minha lanchonete, mas nunca achei certo mandar ele ir embora”, pondera Ferreira que sempre guardava para o andarilho as latinhas descartadas pelos clientes.
O Velho do Saco também era um antigo freguês do comerciante Arthur Justino. “Ele começou a frequentar o meu bar em 1979. Estava sempre com dinheiro no bolso e pagava tudo certinho. Gostava de conversar. Era um homem com boa cultura”, avalia Justino. O problema era que às vezes exagerava na cachaça.
Um dia, Seu Nelson resistiu quando tentaram levá-lo para casa, achando que iriam matá-lo. O único que conseguiu se aproximar para carregá-lo foi José Ferreira. “Deu tudo certo. Chegando em casa, deitou e dormiu. Apesar disso, ele nunca atrapalhou ninguém. Muita gente gostava dele. Mesmo sem aposentadoria, jamais foi visto mendigando”, assegura Ferreira.
Na casa onde o andarilho vivia, um enorme pé de manga a cobria parcialmente. A cena que mais chamava a atenção dos vizinhos era a de alguns ratos subindo, comendo as frutas e descendo. Tudo indica que Seu Nelson tinha um mundo particular, distinto e alheio à realidade da maioria. “Uma vez, o homem ficou muito bravo e começou a me chamar de corno porque eu estava no meu quintal e sem querer o vi tomando banho pelado atrás de um pé de limão. Ele se lavava com duas garrafas pet cheias de água que pegava em um córrego. No lugar da bucha, esfregava o corpo com um pano velho e preto”, revela Alcides Sabatini às gargalhadas. O aposentado foi ignorado quando sugeriu ao Seu Nelson que seria mais cômodo se banhar no próprio córrego.
Nélio Sabatini perdeu as contas de quantas vezes o andarilho o chamou para lhe oferecer pedaços de restos de churrasco que encontrava na rua. “Ele falava assim: ‘Aqui ó, vim trazer pra você um pedaço dessa carne de lobisomem’. Eu aceitava. Nunca fiz desfeita. Só descartava quando ele ia embora’”, confidencia o vizinho. Quando preparava a comida em casa, Seu Nelson ajeitava uma pequena fogueira no quintal e cozinhava dentro de uma grande lata velha de ervilhas. Só entrava na casa para dormir. A maior parte do tempo era visto nas ruas ou no quintal. “Acho que quase não sobrou espaço pra ele lá dentro. Tinha muita coisa guardada”, assinala Nélio Sabatini.
A rotina do Velho do Saco só foi interrompida em 28 de dezembro de 2011. Na manhã daquele dia, Seu Nelson chegou à lanchonete de José Ferreira para conversar um pouco e beber pinga. Às 11h, partiu cambaleando. Mais tarde, preocupado, o comerciante pediu que um rapaz checasse o estado do andarilho. Era 14h e o Velho do Saco foi encontrado deitado, como se estivesse dormindo.
Às 15h, Nélio e Alcides foram verificar porque o homem continuava no quintal. Havia marcas de dedos na terra, de alguém que se esforçou para se levantar, mas não conseguiu e acabou desmaiando. “Fez um calor insuportável naquele dia e o sol bateu diretamente nele. Fizemos de tudo para acordá-lo e não conseguimos. Acho que não aguentou e teve um ataque cardíaco”, enfatiza Nélio Sabatini.
Às 18h, José Ferreira fechou a lanchonete quando a esposa o avisou que o Seu Nelson não acordava de jeito nenhum. Quando chegou lá, era tarde demais. Ninguém imaginava que aquele seria o último dia em que veriam o Velho do Saco com vida. Quem o conhecia ainda sente saudade da sua “mania de fazendeiro”, de seu olhar absorto e seus passos vagarosos e arrastados.
Como não apareceu nenhum familiar para sepultá-lo, o enterro do andarilho foi feito por vizinhos e conhecidos, pessoas que o estimavam. Também organizaram a limpeza da sede da sua fazenda imaginária, a casinha onde viveu por décadas. Do local, retiraram toneladas de materiais e entulhos armazenados desde os anos 1980. “Enchemos sete caminhões só de sujeira e coisas que não se aproveitava”, garante Nélio Sabatini. De luto, o comerciante José Ferreira decidiu nunca mais vender pinga, uma promessa mantida até hoje.
Saiba Mais
Na certidão de óbito consta que o nome do Velho do Saco era supostamente Nelson Francelino de Oliveira. Sem documento, descobriram no dia de sua morte que ele transportava um papel com dados pessoais registrados à caneta. O homem foi sepultado na Gaveta 35 do Conjunto F da Quadra 10 do Cemitério Municipal de Paranavaí.
Vizinhos relatam que o homem virou andarilho porque foi abandonado pela esposa. O Velho do Saco vivia sozinho, mas conhecidos acreditam que ele ainda tem familiares em Paranavaí.
Após o falecimento, a casa do Velho do Saco foi demolida e se tornou moradia de uma pessoa sem vínculo familiar com Seu Nelson.
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Violência, psicopatia, justiça e individualismo
Ontem à noite, em Maringá, no Norte do Paraná, um motociclista atingiu o retrovisor de um Volkswagen Golf próximo ao Parque do Japão. Irritado, o motorista de 24 anos perseguiu o motociclista, atingiu a moto e a arrastou por metros. O rapaz de 18 anos que estava na garupa da moto faleceu no hospital e o condutor de 21 anos segue em estado grave. É mais um caso que revela claramente a falta de empatia das pessoas, a incapacidade de se colocar no lugar do outro, reconhecer falhas e ser tolerante com as vicissitudes do mundo atual.
Há estudos afirmando que 1% da população mundial possui transtorno de personalidade antissocial. Ou seja, 70 milhões de pessoas. Será mesmo que esses dados são precisos? Se levarmos em conta os fatos do cotidiano, não é difícil inferir que nos deparamos todos os dias com os mais distintos casos de manifestações de sociopatia e psicopatia. Sendo assim, é difícil crer que há somente 70 milhões de pessoas com tal transtorno em meio a uma população de sete bilhões. Livros como “The Sociopath Nextdoor”, lançado por Martha Stout em 2006, e “Snakes in Suits: When Psychopaths Go To Work”, de Paul Babiak, de 2007, reforçam o meu raciocínio e fazem refletir sobre a possibilidade do número de psicopatas chegar a pelo menos 10%.
Há mais de 20 anos, muitos pensadores da chamada hipermodernidade preconizaram que isso aconteceria hoje em dia. O mundo está se tornando um semeadouro de impaciência e todos os dias pessoas perdem um pouco mais de sensibilidade e plasticidade. A cada ano que passa a vida vale um pouco menos. Muitos se consideram aptos a decidir quem merece viver e quem merece morrer.
Mas o problema maior subsiste no fato de que com o crescimento dessa linha de pensamento é inevitável pensar na possibilidade de que o mundo pode se tornar um lugar muito pior. Vejo isso como um retorno ao primitivismo. Já não é mais velado o desejo do retorno da Lei de Talião, do Código de Hamurabi.
A violência insufla as pessoas de um tipo peculiar de medo que faz com que elas matem ou desejem a morte de outrem não porque acham que é a única forma de sobreviver, mas sim porque são alimentadas diariamente pela ideia de que a vida tem pesos diferentes e valores estimáveis.
No início dos anos 2000, me recordo que em âmbito acadêmico ainda se falava muito em disfunção narcotizante que é a incapacidade de se sensibilizar com a violência a partir do momento que ela se torna fato recorrente do cotidiano. Por exemplo, é o caso de uma criança que convive com assassinatos e por isso em certo ponto da vida os considera normais.
Mais de dez anos depois, o problema se tornou um pouco mais grave. Há muitas pessoas que não apenas consideram a violência como algo intrínseco à realidade, como acham justo tomar parte dela. É aquela consciência de que se as leis não funcionam corretamente, posso criar as minhas próprias. Ou seja, serei o senhor de meus atos e ninguém terá o direito de me deter, já que rejeito e condeno os mecanismos de justiça da atualidade.
Outro agravante é o fato de que se todos alimentarem um senso de justiça individualista, não há de tardar para as pessoas menosprezarem um pouco mais a vida. Sendo assim, um indivíduo pode achar justo matar alguém porque invadiu sua casa. Outro pode considerar plausível assassinar uma pessoa porque lhe deve dinheiro ou porque arranhou a pintura do seu carro em um acidente. O justo seria um criminoso aos olhos do injusto e vice-versa. Sendo assim, não seria tão obtuso acreditar no futuro como o prólogo do fim da humanidade.
Desigualdade, empatia, descomedimento e humanidade
A Organização Não Governamental Oxfam International divulgou esta semana uma pesquisa revelando que há grande probabilidade de que até o ano que vem 1% da população mundial assuma o controle de 50% das riquezas do mundo.
Acredito que a ideia da Oxfam seja propor um debate sobre o assunto, claro que já deixando transparecer uma crítica prenunciando os desdobramentos mais severos do que chamam hoje em dia na Europa de bancarrota social, só para ser o mais objetivo possível na minha análise superficial. Daí em redes sociais surgem pessoas com comentários de campina envolvendo meritocracia ou indo um pouco mais além e declarando:
“É isso aí, também quero fazer parte desse 1%”, “Fala mal, mas queria estar no lugar deles” ou “Se não consegue se juntar a eles é porque não tem capacidade pra isso.” São comentários que poderiam simplesmente ser qualificados como individualistas, triunfalistas, egocêntricos, mas não é só isso. Está além disso.
É possível fazer uma observação usando a empatia como exemplo. Sim, ela parece cada vez mais fortuita como mostra a internet, principalmente em mídias sociais como Facebook. Chega a ser digna de abjeção em muitos casos. Diuturnamente, sofre por ser extirpada e privada da própria semântica.
Hoje em dia, na chamada hipermodernidade, é grande o número de pessoas que se colocam numa posição de figura proeminente do digitalismo. Há opinião para tudo e sobre tudo, mesmo sobre aquilo que sequer dedicou alguns minutos de pesquisa. É preciso cultivar um mínimo de senso laborial.
Mídia social se tornou território fértil dos tribunais online. Tudo há de ser julgado com embasamento em senso particularista, “moral” que se confunde muitas vezes com amoral e imoral, e principalmente empirismo inconsistente. Na ausência do confronto físico, é comum o pensamento de que não há motivo para ser educado ou respeitoso. Na realidade, o descomedimento é atroz, “natural” em conceito distorcido e pluralizado.
Quem age de maneira inquisitória ou negligente costuma não ter dúvidas porque nunca teve perguntas. Se contenta com meias certezas, meias verdades de um mundo talvez até plano, como defendia Ptolomeu nos tempos do Renascimento. É alguém que refuta a complexidade, se nega a aceitar o poder da subjetividade, as nuanças que podem travestir mentira de verdade e vice-versa. Esses mesmos indivíduos não acreditam na possibilidade das divergências complementares das forças que regem o pensamento humano.
O Facebook nos prova que há quem prefira o anacronismo de um mundo paralelo e falsamente simplificado. Muitos não permitem discussões construtivas nem críticas. Aprendi na adolescência que crítica se fundamenta em argumento, desde então tomo isso como um referencial do que fazer, mas principalmente do que não fazer.
Numa sociedade tão desnivelada, e ainda fortemente influenciada pelo fatalismo e determinismo, acredito que o ser humano há de continuar perseverando como grande exemplo e símbolo do que eu acho adequado chamar de paradoxo existencial. No entanto, o que mais preocupa é que hoje em dia muita gente ensaia a própria humanidade, pois optou por se despir dela. Sendo assim, cresce a incapacidade humana de verdadeiramente sentir-se humano.
14 anos sem Vittorio Gassman
Faz 14 anos que o ator italiano Vittorio Gassman se foi. O grande Il Mattatore que atuou em mais de 120 filmes, entre os quais C’eravamo Tanto Amati, Profumo di Donna, L’Armata Brancaleone, I Mostri, La Grande Guerra e Il Sorpasso.
Fez ótimas parcerias com o mestre do neorrealismo italiano Luchino Visconti e alguns dos maiores expoentes da Commedia all’italiana: Mario Monicelli, Dino Risi e Ettore Scola. Gassman está entre os melhores atores italianos de todos os tempos.
“Em cada real ator há uma necessidade de se sentir como o centro do mundo durante algumas horas. Egocentrismo, é o que dizemos em italiano.”
Vittorio Gassman.
Charlie Hebdo, Siné e liberdade de expressão
Dizem que o jornal francês Charlie Hebdo defende a liberdade de expressão acima de tudo. Tudo bem. Então por que demitiram o cartunista Siné em 2009? O demitiram porque ele fazia críticas ao semitismo. Ou seja, assim como muitos veículos de comunicação, o Charlie Hebdo também tem seus interesses bem definidos, e não se trata apenas de liberdade de imprensa.
É algo mais subjetivo, embora muita gente prefira encarar a situação sob uma perspectiva simplista e radicalmente maniqueísta. Há pessoas até divagando e comparando os cartunistas ao Carlos Martel, o tal herói que livrou a Europa da expansão islâmica na Idade Média. O que chama atenção também é que o jornal lançou três milhões de exemplares em 16 idiomas na edição seguinte ao atentado em Paris, no dia 7 de janeiro de 2015. Uma enorme discrepância com a edição anterior, limitada a 60 mil cópias.
Mesmo sediado em Paris, o Charlie Hebdo sempre foi considerado um veículo com um orçamento modesto, tanto que enfrentou inúmeras crises financeiras para não fechar as suas portas. Sendo assim, quem financiou isso tudo? E com qual interesse?
A mídia tradicional não funciona sem geração de lucros e muito menos com dívidas. Visibilidade e comunicação se constituem em formas de poder, logo é difícil crer que o foco do semanário satírico seja apenas a liberdade de expressão. Torço apenas para que a tragédia do ano passado não tenha sido usada para alimentar interesses escusos.
Desinformação, incompreensão, desinteresse e paranoia
Literatura, Marina Colasanti, Paulo Venturelli e cultura em geral
No sábado, a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista interessante com a escritora Marina Colasanti defendendo que livros de histórias infantis não precisam ser educativos. Acho que quem conhece o trabalho dela entende que essa posição é defendida há muito tempo, não apenas agora. Ela inclusive viaja o Brasil discutindo sobre o assunto.
Como a própria autora diz, a literatura em si já vem embutida de formação. Hoje de manhã, quando abri o Facebook, a primeira matéria que apareceu no meu feed de notícias foi essa. Então decidi olhar brevemente os comentários. Talvez por ingenuidade, achei que encontraria apenas opiniões interessantes e construtivas.
Em meio a tantos bons comentários, alguns extremamente negativos, erráticos e vazios em sentido me chamaram a atenção. Uma professora de Apucarana, no Paraná, funcionária da rede estadual de ensino, comentou o seguinte sobre a declaração de Marina Colasanti: “Da onde vem esses completos idiotas, querendo ferrar com uma nação toda!”
Outro sujeito disse que o vermelho ao fundo da foto revela a origem ideológica de Marina Colasanti (acredite, não foi uma piada). Sem dúvida, faz muito sentido, ainda mais se levarmos em conta o fato de que a escritora declarou apoio ao Aécio Neves durante as eleições. Na mesma postagem, um rapaz “vociferou” que com tal comentário Marina Colasanti está defendendo a desconstrução do Brasil.
Esses exemplos me lembraram dois episódios. O primeiro foi há poucos meses, quando o escritor Paulo Venturelli, radicado em Curitiba, ministrou uma palestra e ao final o questionaram sobre o que os professores poderiam fazer para estimular nos mais jovens o interesse pela leitura. Muita gente não gostou da resposta do autor, mas provavelmente ele se valeu de sua experiência de décadas trabalhando com literatura. “Comece lendo. Leia de verdade. Um professor não pode cobrar leitura de um aluno se ele mesmo não lê”, respondeu Venturelli que também é professor.
Com esse comentário, o escritor deixou subentendido que quanto mais você lê, mais ideias você tem de como estimular a leitura. Do contrário, há de se sentir sempre anuviado. O segundo episódio não tem relação direta com literatura, mas sim com a cultura em geral.
Em 2008 ou 2009, não tenho mais certeza do ano, um grupo de professores da rede estadual de ensino entrou em contato comigo pedindo para eu apresentar voluntariamente uma sessão especial do projeto Mais Cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná. Eles queriam que eu exibisse um filme sobre os mais diversos aspectos da exploração infantil. Gostei da ideia e me comprometi também em fazer a análise do filme e discutir o assunto com dezenas de alunos e alguns professores.
Pois bem, durante a exibição do excelente filme All The Invisible Children, de 2005, dividido em sete curtas realizados em várias partes do mundo, alunos e professores ficaram boa parte do tempo falando ao celular e enviando sms. Alguns saíam do ambiente para conversar e depois retornavam. Era como se estivessem em casa assistindo TV. Imitavam sons de animais, deitavam e pulavam sobre as poltronas com a conivência dos professores.
Naquele dia, curiosamente, havia sete ou oito professores na Casa da Cultura. Desse total, três ou quatro foram embora antes do filme terminar. Me recordo que uma professora que resistiu para ficar até o final manteve-se recostada contra a porta, ansiosa para ir embora. Quando acabou a sessão, acredito que não havia mais do que 40% do público inicial. No fim, não houve avaliação nem discussão alguma, claro, por desinteresse dos que ficaram.
Não estou dizendo que são casos que se aplicam a muitos professores, até porque não é minha intenção quantificar nada. Só acredito que se você não está disposto a desempenhar um bom trabalho, fazer alguma diferença, talvez seja mais viável trilhar outro caminho. Quem sabe, mudar de área. Há incongruências que atingem todas as profissões. Ainda assim, acredito que o relato vale a reflexão. Há uma relação curiosa entre as três situações e deixo a cada um a livre interpretação.