David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

O Velho do Saco que não assustava crianças

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A história de um andarilho que se sentia um fazendeiro mesmo morando dentro de um buraco

Seu Nelson ficou conhecido como o "Velho do Saco" a partir da década de 1980 (Foto: Amauri Martineli)

Seu Nelson ficou conhecido como o “Velho do Saco” a partir da década de 1980 (Foto: Amauri Martineli)

Ao longo de décadas, muitas crianças de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, principalmente as que cresceram no Jardim Ouro Branco e em bairros próximos, ficavam intrigadas com a folclórica e enigmática figura de um andarilho. “Quando as crianças aprontavam alguma coisa, os pais diziam: ‘Olha, ali vem o Velho do Saco. Fica quieto senão vou mandar ele te levar”, conta o agricultor Arthur Justino da Silva que mora no Ouro Branco desde o início dos anos 1960.

Mas a verdade é que a fama do homem jamais refletiu a realidade. O “Velho do Saco”, como ficou mais conhecido a partir da década de 1980, se chamava Nelson. Era um senhor de 1,67m de altura e barba branca volumosa que se confundia com os cabelos igualmente alvos. Tinha uma postura inconfundível e um andar pausado e remansoso. Quando pegava algo do chão, surpreendia. Em vez de agachar, flexionava o corpo para a frente. Sem dobrar os joelhos, arqueava as costas e encostava as palmas das mãos no chão. “Chegava a dar inveja”, comenta o comerciante José Ferreira de Lima. De sobrenome desconhecido, assim como o número da casa onde viveu tantos anos na Rua Campo Largo, no Jardim Ouro Branco, o Velho do Saco era um sonhador vitimado por uma misteriosa desilusão.

“A casinha dele era normal, com água e energia elétrica. Tinha tudo. Lembro que antigamente ele vendia perfumes e usava uma roupa bem branquinha. Seguia naquela vidinha, lutando”, lembra José Ferreira que conheceu o “Seu Nelson” há mais de 30 anos, quando o vendedor tinha entre 45 e 50 anos. Também atuava como boticário, fabricando os perfumes que comercializava. De repente, desistiu de tudo e se tornou um andarilho. Começou a recolher papelão e outros materiais que jogava dentro de casa. “Só vendia latinhas e cobre. O restante, inclusive papelão e entulho, ele ia amontoando”, conta o pedreiro e vizinho Nélio Ramos Sabatini.

Aos poucos, a residência do Seu Nelson se tornou a morada do Velho do Saco. Sem água e energia elétrica, restando apenas uma casinha ofuscada por uma mata que cobria a fachada, o homem se transformou em outra pessoa. Anos mais tarde, quando o chão da casa abriu, formando uma cratera, Seu Nelson começou a viver dentro do buraco, cercado por toneladas de materiais, entre papelão, ferro e entulhos. No local, dividia o espaço com ratos, abelhas, escorpiões e outros animais. “Era tanta tranqueira que ele nem tinha mais onde guardar”, testemunha o aposentado Alcides Ramos Sabatini.

De vez em quando o Velho do Saco discutia com outro vizinho, sogro de José Ferreira. O motivo era quase sempre o mesmo. O andarilho queria que todos fossem embora do bairro, a sua “fazenda”. “Falava que tudo ali era dele, que a gente estava se apossando de seus bens”, relata o comerciante, acrescentando que apesar de tudo Seu Nelson sempre “fazia as pazes” com todos.

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O andarilho chamava a si mesmo de garimpeiro (Foto: Amauri Martineli)

Porém, em época de quaresma, os mais supersticiosos diziam que o Velho do Saco virava lobisomem, um mito que surgiu porque o andarilho chegava em casa muito tarde e passava horas no quintal antes de dormir. “Com o barulho, a cachorrada latia muito, então o povo espalhou essa besteira”, explica Alcides Sabatini.

Com um grande saco nas costas e outro sobre a cabeça, Seu Nelson, que tinha o hábito de comer carne crua, principalmente linguiça, circulava pelo Jardim Ouro Branco e evitava ir muito longe. Tinha uma mochilinha em que carregava pedras que recolhia das ruas. Chamava a si mesmo de garimpeiro, um desbravador que não se interessava mais em ir além da rotatória próxima ao Hospital Unimed, na Rua Luiz Spigolon. Quem sabe, porque Seu Nelson talvez acreditasse que sua “fazenda” terminasse naquele local.

Embora aceitasse comida apenas de José Ferreira, da mulher e cunhada do comerciante, o homem era visto com frequência nas imediações do Hipermercado Cidade Canção e da Praça dos Pioneiros, onde coletava e comia restos de lanches e salgados das lixeiras. Ocasionalmente, parava para descansar em bares e lanchonetes de conhecidos. “Ele passava um bom tempo aqui, mesmo sujo e com um odor bem forte. Sei que isso poderia afastar os clientes da minha lanchonete, mas nunca achei certo mandar ele ir embora”, pondera Ferreira que sempre guardava para o andarilho as latinhas descartadas pelos clientes.

O Velho do Saco também era um antigo freguês do comerciante Arthur Justino. “Ele começou a frequentar o meu bar em 1979. Estava sempre com dinheiro no bolso e pagava tudo certinho. Gostava de conversar. Era um homem com boa cultura”, avalia Justino. O problema era que às vezes exagerava na cachaça.

Um dia, Seu Nelson resistiu quando tentaram levá-lo para casa, achando que iriam matá-lo. O único que conseguiu se aproximar para carregá-lo foi José Ferreira. “Deu tudo certo. Chegando em casa, deitou e dormiu. Apesar disso, ele nunca atrapalhou ninguém. Muita gente gostava dele. Mesmo sem aposentadoria, jamais foi visto mendigando”, assegura Ferreira.

Após a morte do Velho do Saco, a casa foi demolida e todos os materiais foram recolhidos (Fotos: Nélio Sabatini)

Após a morte do Velho do Saco, a casa foi demolida e todos os materiais foram recolhidos (Fotos: Nélio Sabatini)

Na casa onde o andarilho vivia, um enorme pé de manga a cobria parcialmente. A cena que mais chamava a atenção dos vizinhos era a de alguns ratos subindo, comendo as frutas e descendo. Tudo indica que Seu Nelson tinha um mundo particular, distinto e alheio à realidade da maioria. “Uma vez, o homem ficou muito bravo e começou a me chamar de corno porque eu estava no meu quintal e sem querer o vi tomando banho pelado atrás de um pé de limão. Ele se lavava com duas garrafas pet cheias de água que pegava em um córrego. No lugar da bucha, esfregava o corpo com um pano velho e preto”, revela Alcides Sabatini às gargalhadas. O aposentado foi ignorado quando sugeriu ao Seu Nelson que seria mais cômodo se banhar no próprio córrego.

Nélio Sabatini perdeu as contas de quantas vezes o andarilho o chamou para lhe oferecer pedaços de restos de churrasco que encontrava na rua. “Ele falava assim: ‘Aqui ó, vim trazer pra você um pedaço dessa carne de lobisomem’. Eu aceitava. Nunca fiz desfeita. Só descartava quando ele ia embora’”, confidencia o vizinho. Quando preparava a comida em casa, Seu Nelson ajeitava uma pequena fogueira no quintal e cozinhava dentro de uma grande lata velha de ervilhas. Só entrava na casa para dormir. A maior parte do tempo era visto nas ruas ou no quintal. “Acho que quase não sobrou espaço pra ele lá dentro. Tinha muita coisa guardada”, assinala Nélio Sabatini.

A rotina do Velho do Saco só foi interrompida em 28 de dezembro de 2011. Na manhã daquele dia, Seu Nelson chegou à lanchonete de José Ferreira para conversar um pouco e beber pinga. Às 11h, partiu cambaleando. Mais tarde, preocupado, o comerciante pediu que um rapaz checasse o estado do andarilho. Era 14h e o Velho do Saco foi encontrado deitado, como se estivesse dormindo.

Às 15h, Nélio e Alcides foram verificar porque o homem continuava no quintal. Havia marcas de dedos na terra, de alguém que se esforçou para se levantar, mas não conseguiu e acabou desmaiando. “Fez um calor insuportável naquele dia e o sol bateu diretamente nele. Fizemos de tudo para acordá-lo e não conseguimos. Acho que não aguentou e teve um ataque cardíaco”, enfatiza Nélio Sabatini.

Intervenção dos vizinhos impediu que Seu Nelson fosse enterrado como indigente (Foto: David Arioch)

Intervenção dos vizinhos impediu que Seu Nelson fosse enterrado como indigente (Foto: David Arioch)

Às 18h, José Ferreira fechou a lanchonete quando a esposa o avisou que o Seu Nelson não acordava de jeito nenhum. Quando chegou lá, era tarde demais. Ninguém imaginava que aquele seria o último dia em que veriam o Velho do Saco com vida. Quem o conhecia ainda sente saudade da sua “mania de fazendeiro”, de seu olhar absorto e seus passos vagarosos e arrastados.

Como não apareceu nenhum familiar para sepultá-lo, o enterro do andarilho foi feito por vizinhos e conhecidos, pessoas que o estimavam. Também organizaram a limpeza da sede da sua fazenda imaginária, a casinha onde viveu por décadas. Do local, retiraram toneladas de materiais e entulhos armazenados desde os anos 1980. “Enchemos sete caminhões só de sujeira e coisas que não se aproveitava”, garante Nélio Sabatini. De luto, o comerciante José Ferreira decidiu nunca mais vender pinga, uma promessa mantida até hoje.

Saiba Mais

Na certidão de óbito consta que o nome do Velho do Saco era supostamente Nelson Francelino de Oliveira. Sem documento, descobriram no dia de sua morte que ele transportava um papel com dados pessoais registrados à caneta. O homem foi sepultado na Gaveta 35 do Conjunto F da Quadra 10 do Cemitério Municipal de Paranavaí.

Vizinhos relatam que o homem virou andarilho porque foi abandonado pela esposa. O Velho do Saco vivia sozinho, mas conhecidos acreditam que ele ainda tem familiares em Paranavaí.

Após o falecimento, a casa do Velho do Saco foi demolida e se tornou moradia de uma pessoa sem vínculo familiar com Seu Nelson.

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