David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for March, 2015

Literatura, Paulo Coelho, culinária e Alexandre Dumas

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Há quem acredite que para ser escritor ou leitor é importante desprezar alguns autores

Sempre me pareceu muito clichê desprezar o trabalho do Paulo Coelho (Foto: Divulgação)

Sempre me pareceu muito clichê desprezar o trabalho do Paulo Coelho (Foto: Divulgação)

Em 2014, participei do lançamento do novo livro de um escritor que prefiro não dizer o nome. É um autor relativamente conceituado no cenário da literatura e que me pareceu ser uma pessoa que valia a pena conhecer. Após o lançamento, houve um bate-papo com o escritor e infelizmente percebi mais uma vez que há autores que se preocupam mais em apelar para o senso comum, o que eu chamo de “malhar o Judas”, talvez visando conquistar com mais facilidade a cumplicidade da plateia, do que propor um diferencial, surpreendê-la com alguma ideia menos usual e que instigasse a reflexão.

Nem todo escritor é obrigado a ser bom em lidar com o público, até porque não é sua obrigação, mas é sempre estranho encontrar uma pessoa com uma capacidade tão complexa de raciocínio e criatividade se condicionando a repetir ideias fragilizadas e facilmente questionáveis. Como acontece em qualquer lugar hoje em dia, o referido escritor fez questão de despender uma parte do bate-papo para falar mal do trabalho do escritor Paulo Coelho, ou seja, uma pessoa que não acrescenta nem diminui nada na literatura desse autor. Então por que ele o “criticou”?

A impressão que fica é que para ser “escritor de verdade” ou “leitor de verdade” é importante desprezar alguns ou muitos autores. Parece existir uma lista sistemática com nomes seletos que determinam que você só é escritor ou leitor se ler este ou aquele, o resto não interessa. Sempre me pareceu muito clichê desprezar o trabalho do Paulo Coelho. Acredito até que são justamente as chamadas “críticas” e “desconsiderações” pelas suas obras que o tornam ainda mais popular no Brasil. O homem nem precisa investir em publicidade. Até quem nunca leu seus livros gosta de arremessar uma pedra que reverbera seu nome.

Depois de deixar claro o seu desprezo por Paulo Coelho, o autor declarou que hoje em dia o mercado editorial brasileiro está ruim porque há pessoas que nunca escreveram ocupando o espaço dos verdadeiros escritores. Ora, deveria haver um concurso em que quem for reprovado ou não se enquadrar nos temas e gêneros propostos não tem o direito de escrever? Nessa linha de pensamento, posso inferir que os leitores também não deveriam ter o direito de ler o que querem? Alguns dos maiores nomes da literatura universal se lançaram no mundo de forma independente. Rimbaud que o diga.

Alexandre Dumas já reconhecia a importância da culinária no século XIX (Arte: Reprodução)

Alexandre Dumas já reconhecia a importância da culinária no século XIX (Arte: Reprodução)

Bom, mas continuando. O escritor “criticou” também o trabalho de Laurentino Gomes, defendendo que o que ele faz não é literatura. Pode não ser literatura ficcional, mas não deixa de ser literatura, tanto que ele recebeu prêmios que se enquadram em categorias literárias, o que é mais do que um contraponto ao comentário feito pelo autor. Eu, como fã de culinária e gastronomia, tive que ouvir um escritor com mais tempo de literatura do que eu de idade declarar que outra “porcaria” que estraga o mercado editorial são os livros de culinária. Bom, generalizações à parte, culinária é cultura e sempre vai ser, independente do que quem não gosta ou não entende do assunto pense.

Com a tal “porcaria”, é possível aprender muito sobre as civilizações, e não falo apenas de hábitos e costumes, mas também de história, crenças, valores, capacidade de adaptação às adversidades e preservações ou transformações étnicas. A culinária sempre teve estreita relação com um ou diversos contextos. Ela já foi determinante na sobrevivência e ascensão de muitos povos em períodos de guerra, por exemplo. Em síntese, a culinária pode ter conotação econômica, social e até política. Muitos povos tiveram suas identidades, histórias e legados fortalecidos graças à culinária.

No século XIX, o escritor francês Alexandre Dumas, eternizado por obras como “Os Três Mosqueteiros”, “O Conde de Monte Cristo” e “Os Irmãos Corsos”, já reconhecia isso, tanto que dedicou os últimos anos de vida a escrever “O Grande Dicionário de Culinária”, lançado em 1873, três anos após sua morte. Na minha opinião, dizer que livros de culinária não merecem espaço é simplesmente um preconceito tolo e que revela um ego inflado por um desejo de cerceamento que nasce da incapacidade em lidar com as diferenças.

Written by David Arioch

March 23rd, 2015 at 2:03 pm

Anita Prestes: “Existe muita propaganda mentirosa sobre o que é o socialismo”

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Historiadora afirma que o Brasil vive um momento de pobreza de lideranças e partidos de esquerda

Anita vai lançar uma nova biografia sobre Luiz Carlos Prestes em maio ou junho (Foto: Amauri Martineli)

Anita dedicou a carreira a estudar o legado do pai Luiz Carlos Prestes (Foto: Amauri Martineli)

No início do mês, a professora, pesquisadora e escritora Anita Leocádia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes e Olga Benário, dois dos mais importantes personagens da história brasileira do Século XX, esteve em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ministrando uma palestra sobre os 80 anos da Aliança Nacional Libertadora (ANL), movimento que lutou para tentar mudar os rumos da política brasileira, combatendo o autoritarismo e denunciando a miséria, pobreza e exploração dos menos favorecidos.

Na tarde do dia 3 de março, antes do início do evento que fez parte das atividades de greve do curso de história da Universidade Estadual do Paraná (Unespar) e levou mais de 450 pessoas para o Teatro Municipal Dr. Altino Afonso Costa, tive a oportunidade de entrevistá-la no saguão do Hotel Elite, no centro de Paranavaí. Pontual, Anita já me aguardava para uma longa e proveitosa conversa.

Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Anita Prestes nasceu na prisão feminina do campo de concentração de Barnimstraße, em Berlim, na Alemanha, após ser separada da mãe, a alemã Olga Benário. Judia e comunista, Olga veio ao Brasil para ajudar Prestes, mas foi entregue grávida aos nazistas pelo governo brasileiro e executada aos 34 anos em um campo de concentração de Bernburg em 23 de abril de 1942.

Motivada pelo legado familiar, Anita dedicou a maior parte da vida acadêmica a pesquisar sobre os 70 anos de atuação política do pai Luiz Carlos Prestes, falecido aos 92 anos em 1990. Ao longo da carreira, publicou inúmeros livros. O mais recente, “Luiz Carlos Prestes – O Combate por um Partido Revolucionário”, lançado em 2012, aborda o período de 1958 a 1990. Atualmente a pesquisadora está terminando a biografia mais completa sobre a história de Prestes. O livro que reúne informações coletadas em mais de 30 anos tem previsão de lançamento para maio ou junho pela Boitempo Editorial, de São Paulo.

"Uns endeusam, outros atacam. A verdade é que o Getúlio Vargas foi uma figura muito complexa" (Foto: Amauri Martineli)

“Uns endeusam, outros atacam. A verdade é que o Getúlio Vargas foi uma figura muito complexa” (Foto: Amauri Martineli)

Gentil e eloquente, Anita respondeu com naturalidade questões sobre o passado político da família, Levante Comunista, papel de Getúlio Vargas após a Revolução de 1930, exílio, obras baseadas na vida de Luiz Carlos Prestes e Olga Benário, socialismo, política atual e o novo livro, além de outros assuntos. Confira:

Quando e por que a senhora decidiu pesquisar sobre a história política do seu pai, Luiz Carlos Prestes?

Eu quis ingressar na universidade para estudar história quando voltei do exílio em 1979, o que é até curioso porque a minha primeira formação foi em química. Só que nunca trabalhei na área [risos] devido a perseguição que surgiu com o golpe de 1964. Naquele tempo, meu pai já estava com mais de 80 anos e tinha uma memória extraordinária sobre os acontecimentos da Coluna Prestes. O problema é que ele resistia em escrever. Então segui por esse caminho e defendi a minha tese de doutorado sobre a Coluna Prestes em 1989. Depois disso, continuei trabalhando na universidade. Ainda muito interessada na história do Brasil contemporâneo, pesquisei sobre tenentismo, movimentos militares e me aprofundei na história do PCB [Partido Comunista Brasileiro], até porque a partir de 1930 não tem como estudar a vida do Prestes sem relacioná-la ao PCB e vice-versa.

Como imagina que seria o Brasil se o Levante Comunista de 1935 tivesse sido melhor articulado e bem sucedido?

A realidade é que hoje, após estudar o assunto por tantos anos, posso afirmar que não havia a menor condição para êxito desse movimento. Eram pessoas bem intencionadas que lutaram aguerridamente e muitos morreram, mas não havia reais condições para uma vitória. Os comunistas da época e seus aliados da Aliança Nacional Libertadora [ANL] fizeram uma avaliação equivocada da situação política. Achavam que havia uma situação revolucionária no Brasil, o que não correspondia com a realidade.

Getúlio Vargas é um dos personagens mais controversos da história contemporânea do Brasil, tanto que até hoje divide muitas opiniões. Como a senhora avalia o papel de Vargas antes e depois da Revolução de 1930?

"O Getúlio Vargas e o grupo que ele representava foram os maiores responsáveis pela extradição da minha mãe" (Foto: Amauri Martineli)

“Tenho que levar em conta que o Filinto Müller era apenas um funcionário do governo, um chefe de polícia com algum poder” (Foto: Amauri Martineli)

Uns endeusam, outros atacam. A verdade é que o Getúlio Vargas foi uma figura muito complexa. Ocupou uma posição importante na história do Brasil do século XX e que deve ser avaliada nas suas condições. Ele era representante da elite brasileira. Entrou para a política porque fazia parte da oligarquia agrária do Rio Grande do Sul. Foi muito influenciado na década de 1930 por ideologias de caráter autoritário e fascista que estavam em ascensão no mundo. E, claro, foi o que serviu de base para atingir os objetivos propostos pelo grupo que ele representava. No entanto, a cabeça pensante do grupo era o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro, criador da chamada doutrina Góes Monteiro, hoje pouco conhecida. O objetivo da doutrina era a reconstrução do Brasil a partir de um estado autoritário centralizador e corporativista. E foi o que colocaram em prática com a Revolução de 1930, chegando ao auge com o Estado Novo. Uma das promessas da doutrina era fazer com que o Estado desse um salto no processo de industrialização. Até 1930, tínhamos um país com indústrias leves. A partir dessa política, o Brasil começou a investir em indústrias pesadas, o que era muito importante para a defesa nacional. O Góes Monteiro viu isso também como um instrumento de combate às manifestações. Para criar um cenário favorável à industrialização, o governo estabeleceu um arrocho salarial e uma série de medidas prejudiciais a maior parte da população e benéfica ao desenvolvimento capitalista. Houve resistência dos setores populares e as insatisfações foram combatidas com bastante repressão.

Há quem diga que Filinto Müller apenas recebia ordens quando deportou sua mãe para a Alemanha. Até que ponto ele tem culpa sobre o destino de sua família?

Tenho que levar em conta que o Filinto Müller era apenas um funcionário do governo, um chefe de polícia com algum poder. A verdade é que o Getúlio Vargas e o grupo que ele representava foram os maiores responsáveis pela extradição da minha mãe e de muitos outros presos políticos perseguidos e torturados naquela época. Filinto Müller nunca teria feito o que fez sem o respaldo do Getúlio.

Como era o relacionamento do seu pai com Carlos Marighella e Jorge Amado?

Foram várias fases, né? Quando o Partido Comunista Brasileiro foi legalizado em 1945, com a vitória da União Soviética e seus aliados, os comunistas ganharam espaço. Carlos Marighella e Jorge Amado se tornaram deputados da bancada do PCB, então havia um grande relacionamento de camaradagem entre eles e o meu pai. No decorrer da luta, esses dois comunistas seguiram caminhos diferentes. O Jorge Amado, um escritor renomado, se afastou do partido e se tornou muito amigo de políticos à direita como o Antônio Carlos Magalhães. Também fez amizade com o José Sarney. Eu diria que se tornou alguém que se integrou ao sistema capitalista, deixou de ser um combatente e se afastou do Prestes. O Carlos Marighella preferiu outra direção. Se desesperou com a grave derrota de 1964 e perdeu a perspectiva de um trabalho de longo prazo. Tentou ganhar sem ter condições pra isso e repetiu o erro do PCB em 1935. No fim, acabou derrotado e morto.

"Não tenho nenhuma cerimônia em dizer que o senhor Daniel Aarão Reis é um canalha" (Foto: Amauri Martineli)

“Não tenho nenhuma cerimônia em dizer que o senhor Daniel Aarão Reis é um canalha” (Foto: Amauri Martineli)

O Livro do Fernando Morais sobre a história de sua mãe e o filme de Jayme Monjardim fazem justiça a quem foi Olga Benário?

O meu pai sempre achou o livro muito bom, bastante comprometido com a verdade. Houve um trabalho sério de pesquisa. O Fernando Morais tem uma grande capacidade de emocionar as pessoas, prender a atenção. Já o filme, como todo filme, tem suas limitações. O próprio Monjardim declarou que não estava interessado em política, história do Brasil ou na vida do Prestes, mas sim em retratar uma história de amor que ele achou bonita. Claro, tem coisas ali que poderiam ser melhores, mas ele desempenhou sim um papel importante. Conquistou o público e ajudou a resgatar a história da minha mãe.

Há mais verdades ou factoides na biografia sobre Luiz Carlos Prestes lançada pelo historiador Daniel Aarão Reis?

Como trabalho de historiador, é algo que se pode rasgar e jogar fora. Ele divulga muitas mentiras e informações que não foram comprovadas. O que percebi foi uma intenção de desmoralizar o Prestes, a família do Prestes e a minha mãe. Ele inventou uma história de que a Olga deixou um filho em Moscou [na Rússia] e não apresentou nenhum documento como prova. Estive em Moscou há dois anos, pesquisando no arquivo da Internacional Comunista. Tirei cópia da pasta integral que existe lá sobre a minha mãe e não há nada disso. Conheci muitos amigos e amigas da minha mãe em Moscou e todos eles afirmaram que ela nunca teve outro filho. Do dia que nasci até o dia em que ela morreu, a Olga se preocupou comigo o tempo todo. Minha mãe é uma pessoa admirada pelo seu heroísmo e coragem. Nunca faria algo assim. Esse sujeito tentou manchar a imagem dos dois. Não tenho nenhuma cerimônia em dizer que o senhor Daniel Aarão Reis é um canalha.

Luiz Carlos Prestes sempre recusou qualquer pensão ou indenização. A senhora também fez o mesmo?

No início da década passada, solicitei que fosse contado o meu tempo de serviço no período em que estive no exílio para que mais tarde eu pudesse me aposentar. O pedido foi atendido com base legal e junto vieram R$ 100 mil de indenização. Me senti incomodada em aceitar o dinheiro porque trabalho, tenho condições de me manter. Então doei para o Instituto do Câncer que é uma entidade séria do Rio de Janeiro. Quanto ao meu pai, ele nunca aceitou voltar para o Exército e nunca quis nenhuma das pensões que lhe ofereceram. No final dos anos 1980, a última tentativa foi do Saturnino Braga, ex-prefeito do Rio de Janeiro. Meu pai recusou e justificou que não poderia receber pensão enquanto o funcionalismo público estava com dificuldades, sem dinheiro para pagar os salários dos servidores. Após meu pai morrer, a viúva [Maria do Carmo Ribeiro] solicitou a integração do meu pai ao Exército [Prestes foi capitão até 1936], mesmo contra a vontade dele em vida. Como forma de desmoralizar ainda mais o Prestes, o Exército o promoveu. Ou seja, o general da Coluna Prestes foi promovido a coronel de pijama do Exército. Achei um desrespeito muito grande à memória dele. Meu pai nunca quis dinheiro do governo. Pelo papel político que desempenhou, por tudo que ele lutou, seria uma grande contradição. Nos anos 1990, me chamaram e me ofereceram a minha parte da pensão, mas recusei.

"Após meu pai morrer, a viúva [Maria do Carmo Ribeiro] solicitou a integração do meu pai ao Exército [Prestes foi capitão até 1936], mesmo contra a vontade dele em vida" (Foto: Amauri Martineli)

“Meu pai nunca quis dinheiro do governo” (Foto: Amauri Martineli)

Como foi a experiência no exílio na União Soviética?

Bom, passei por vários exílios, inclusive nasci no exílio [risos]. Enfim, é sempre melhor você estar na sua terra e viajar para o exterior quando quiser, com boas condições e opções para estudar e conhecer lugares. No caso do exílio, você é forçado a estar fora, então é bem diferente. Mas posso dizer que sempre recebi uma solidariedade muito grande.

Nos últimos anos de vida, seu pai estava satisfeito com os rumos da política brasileira?

Em 1989, no último ano de vida dele, mesmo doente, ele participou das campanhas do Brizola e do Lula. Não tinha como estar satisfeito com a política brasileira, até porque o Collor foi eleito. Inclusive tomou posse alguns dias depois da morte do meu pai.

Antes de falecer, o Prestes ainda tinha algum sonho com relação ao futuro do Brasil?

Sonho, eu não diria, mas ele era um homem que achava que os processos de transformações das sociedades humanas teriam que levar à vitória do socialismo. Quando, como e de que jeito, isso é outra coisa. Sempre acreditou que um dia surgiriam as condições para que se lutasse e realizasse essas transformações. Era uma pessoa extremamente otimista.

Se tratando de política de esquerda, o Brasil hoje tem algum partido realmente representativo?

Olha, acho que não. Há uma pobreza muito grande de lideranças e de partidos. Existe muita propaganda mentirosa sobre o que é o socialismo, além da indiscutível falsificação da história. Muitos se aproveitam disso. O que temos hoje é o PCB, um partido pequeno, pouco representativo e que tem como atual secretário geral o Ivan Pinheiro que faz um bom esforço de organização popular, mas enfrenta muitas dificuldades.

A senhora considera pequena ou grande a parcela de jovens interessados no socialismo e no legado de Luiz Carlos Prestes?

De uma maneira geral, a mídia tem um grande poder de influenciar e desinformar os jovens, mas tenho notado principalmente nas universidades que uma parcela significativa da juventude está estudando de verdade o marxismo, interessada em saber o que ele realmente significa e representa. Tenho ministrado palestras pelo Brasil afora e a recepção tem sido muito boa. Sou recebida por 400, 500 e até mil pessoas em cada evento, o que significa que há sim um grande interesse dos jovens pelas políticas de esquerda.

Por que quando se fala em políticas de esquerda, principalmente na internet, as pessoas trocam agressões com tanta facilidade?

O papel da mídia é muito poderoso. Há um conjunto de meios que influem na mente das pessoas. Mas não há nada como a realidade, né? Na medida em que as próprias contradições do capitalismo se acentuam, as pessoas começam a ver a necessidade de mudança. Com isso, muita gente chega ao marxismo e percebe a necessidade de lutar por transformações mais profundas na sociedade.

"Há sim um grande interesse dos jovens pelas políticas de esquerda" (Foto: Amauri Martineli)

“Há sim um grande interesse dos jovens pelas políticas de esquerda” (Foto: Amauri Martineli)

Na sua opinião, o neoliberalismo se opõe à democracia?

Vejo o neoliberalismo como um eufemismo do capitalismo. Quando o capitalismo surgiu havia um anseio de democracia, mas de democracia voltada para as elites, para a burguesia, não para os trabalhadores. Um exemplo foi o que aconteceu na Revolução Francesa. Hoje vivemos um período em que a burguesia se sente a perigo porque vê que há mais insatisfação e contestação social. A realidade é que nesse ambiente de luta crescem também as probabilidades de haver menos democracia e mais repressão. Sem dúvida, a democracia no Brasil ainda é só para os poderosos.

O socialismo pode reacender no Brasil no futuro?

Mais cedo ou mais tarde, a luta vai ser intensificada. Acredito que as lideranças populares do Brasil têm condições de estudarem mais, se prepararem, se organizarem e conduzirem o país para o verdadeiro caminho do socialismo. Acho que Cuba é uma grande referência porque lá o socialismo ainda sobrevive, apesar de todas as dificuldades. Eles sofrem muito porque é um país pobre, sem recursos naturais, uma pequena ilha perseguida e bloqueada ao lado dos Estados Unidos. Além disso, como diz o próprio Fidel Castro, não existe receita para a construção do socialismo. Logo cometem-se muitos erros que precisam ser corrigidos. Eles reconhecem isso e se empenham em aperfeiçoar o sistema.

As vitórias do Syriza na Grécia e do Podemos na Espanha representam mais proximidade com os ideais socialistas?

Independente das vitórias desses partidos, não acredito que Grécia nem Espanha estão a caminho de um governo socialista. Os próprios partidos não têm posições socialistas. São dois países vivendo um renascimento da social-democracia, com políticas que no fundo mascaram a exploração capitalista, o que não contribui efetivamente para a emancipação dos trabalhadores.

Como a senhora qualifica o papel da mídia brasileira nas mudanças políticas das últimas décadas?

"Mais cedo ou mais tarde, a luta vai ser intensificada" (Foto: Amauri Martineli)

“Mais cedo ou mais tarde, a luta vai ser intensificada” (Foto: Amauri Martineli)

A mídia continua nas mãos das classes dominantes, favorecendo os interesses da burguesia. No Brasil, há uma grande resistência do Congresso Nacional que não quer a democratização da mídia porque defende os interesses das elites reacionárias, de direita. A TeleSUR, emissora de televisão da Venezuela, tem um convênio assinado com o Brasil desde 2005 para transmitir os seus programas pela TV Brasil. O acordo não sai do papel por causa da resistência da diretoria da emissora e do congresso. Eles não querem que os brasileiros conheçam a versão venezuelana dos fatos. A Argentina já transmite programações de emissoras da Venezuela e da Rússia. A RT, por exemplo, que é uma TV russa, faz oposição ao Ocidente. É importante ter a oportunidade de comparar apresentações antagônicas sobre um mesmo acontecimento. Essa infeliz unilateralidade das informações também se aplica ao que acontece na Ucrânia.

O trabalho da Comissão da Verdade e as revisões sobre os acontecimentos do período da ditadura militar significam avanços?

Acho que foi um avanço pequeno e atrasado, diferente do que aconteceu na Argentina, Uruguai e Chile. Nesses países, generais e torturadores foram condenados e presos. Aqui no Brasil houve uma anistia muito problemática, tanto para a esquerda quanto para os torturadores, o que é uma coisa absurda. Afinal, a tortura é um crime inafiançável. Infelizmente o Supremo Tribunal Federal declarou há dois ou três anos que não se pode mexer na lei da Anistia. Reconheço que a Comissão da Verdade esclareceu alguns casos e movimentou o assunto, mas ainda precisamos de uma revisão da Lei da Anistia e o julgamento dos torturadores que estão vivos. Falta também um posicionamento da Anistia Internacional e da ONU.

"Para a nova biografia, tive que reavaliar todo o material de pesquisa acumulado em mais de 30 anos (Foto: Amauri Martineli)

Historiadora vai lançar uma nova biografia sobre Luiz Carlos Prestes em maio ou junho (Foto: Amauri Martineli)

O PCB antigamente mantinha bastante contato com partidos internacionais. Ele ainda mantém a tradição?

Ele mantém sim. O PCB tem bastante contato com partidos comunistas internacionais. No geral, com partidos de esquerda da América Latina e da Europa.

Existe a possibilidade de haver uma unificação dos partidos de esquerda, seguindo o exemplo da Internacional Comunista?

Já foi levantada essa questão e está ainda em discussão. Realmente não é uma coisa fácil de se colocar em prática.

O que o Instituto Luiz Carlos Prestes realizou em comemoração aos 90 anos da Coluna Prestes?

Realizamos muitas atividades desde o ano passado. Tenho viajado bastante pelo Brasil, passando por universidades. Celebramos este mês os 80 anos da criação da Aliança Nacional Libertadora e estamos abordando todos os desdobramentos de suas ações, incluindo o levante antifascista de novembro de 1935. Para falar sobre o assunto, já percorremos o Paraná, Rio de Janeiro e alguns estados do Nordeste.

Como estão os preparativos para o lançamento da nova biografia sobre o Luiz Carlos Prestes?

A previsão é de que saia em maio ou junho, pela Boitempo Editorial, de São Paulo. Tive que reavaliar todo o material de pesquisa acumulado em mais de 30 anos. Fui para Brasília em setembro do ano passado e recebi uma grande ajuda da presidente do Superior Tribunal Militar que me disponibilizou DVDs com muitas informações sobre os acontecimentos de 1935. A biografia já tem mais de mil notas de rodapé citando fontes. Não tinha como ser diferente porque a trajetória do meu pai começou no tenentismo e foi até 1990. Ele participou de diferentes movimentos políticos no Brasil e no cenário mundial. Era um importante membro da comissão executiva da Internacional Comunista, assim como minha mãe.

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O mundo seria um lugar melhor sem religiões?

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Não há como afirmar que o homem não encontraria outros meios de segregação que compensassem a ausência religiosa

Segregação cresce a cada ano e reforça sua posição multifacetada (Imagem: Irdeb)

Conversando sobre dialética com um amigo, ele me fez uma pergunta interessante. “Você acha que o mundo seria um lugar melhor sem religiões?” Respondi que acho que seria diferente, não sei se seria melhor. Então pediu que eu explanasse o que penso. Bom, o ser humano é segregacionista por natureza. A partir do momento que nasce, ele é instantaneamente inserido em um contexto social, logo se torna parte de um meio. Sendo assim, tudo que ele faz, de algum modo, tende a incluir e ao mesmo tempo excluir pessoas. Na realidade, todos nós somos segregacionistas.

Há um equívoco muito grande quando se fala em segregação e logo se pensa em preconceito racial ou mesmo racialismo. Vai muito além disso. Até mesmo quando defendemos boas causas somos segregacionistas, pois levamos em conta nossas preferências, conhecimento e experiências de vida para definir o que merece e o que não merece a nossa luta e o nosso tempo. Claro que isso não deve minimizar o esforço de ninguém, mas obviamente merece uma reflexão.

No fundo, o que fazemos é isso, segregar pessoas, sob os mais diferentes aspectos. Temos uma tendência nada equitativa de uni-las e ao mesmo tempo separá-las. Vou citar um exemplo bem simples. Em algum momento da vida, quando alguém convida uma pessoa para fazer parte de um grupo, é possível que se perceba somente o lado positivo, a integração. Na contramão, você também pode estar trazendo a pessoa para um grupo com a intenção de privá-la de fazer parte de outro. Ou talvez algo assim aconteça até involuntariamente.

A verdade é que a partir de suas ações ao longo da vida, mesmo que indiretamente, você define quem vai conhecer, quem merece e quem não merece estar próximo de você. É comum as pessoas optarem por evitar alguém com quem nunca conversaram. No mundo que vivemos a segregação surge de muitas formas. Até mesmo no olhar. Todos os dias nos deparamos com pessoas sendo segregadas pelo gosto musical, visão política, religião, nível cultural, fisionomia, roupas, tipo de cabelo e postura, além de outras dezenas de exemplos que poderiam ser citados.

Como resultado de um meio, começamos a fazer isso logo na infância, quando excluímos uma criança por algum motivo banal. Parece que passamos a vida em busca de aceitação e de aliados, o que não deixa de ser uma forma de guerra social. É inerente ao ser humano encontrar meios de se sentir especial e diferente. Em um nível mais crônico, há ainda a ânsia por fazer parte de um grupo que o faça sentir-se “superior”. Existe um grande desejo de ser observado, de existir socialmente, mesmo em grupos considerados antissociais e até religiosos.

Temos mais de 10 mil religiões no mundo todo, segundo o Boletim Internacional de Pesquisa Missionária (Arte: Kal)

Temos mais de 10 mil religiões no mundo todo, segundo o Boletim Internacional de Pesquisa Missionária (Arte: Kal)

É exatamente o que acontece hoje em dia em mídias sociais. No Facebook, todos os dias vemos pessoas criando grupos, páginas, se empenhando em aumentar o seu círculo virtual de amizades e também em conquistar o maior número possível de “curtidas”. Por outro lado, vemos muita gente desprezando, insultando e banindo quem pensa diferente. Mas aí alguém pode perguntar. “Ok, mas qual é a relação disso com um mundo ser melhor ou não sem religiões?” Bom, na minha opinião, tem tudo a ver. Religiões unem e segregam pessoas há milhares de anos, mas elas não são as únicas a fazerem isso.

Claro, hoje temos mais de 10 mil religiões no mundo todo, segundo o Boletim Internacional de Pesquisa Missionária, publicado em 2012, o que é um indicativo de que a segregação cresce a cada ano e reforça sua posição multifacetada. Então o amigo em questão me perguntou se eu acredito que há alguma razão específica para um número tão alto. Muitas religiões e igrejas surgiram a partir de um viés curioso, a dissidência. Ou seja, novas formas de segregação que nasceram dentro das próprias instituições religiosas fizeram com que por incompatibilidade de ideias e condutas muitos optassem por criar suas próprias igrejas e religiões.

Vivemos uma época em que principalmente na internet muita gente critica todas ou algumas religiões, qualificando-as como os grandes males da humanidade. Há uma crença de que o mundo seria muito melhor sem igrejas e sem religiões. Supõe-se que as pessoas realmente viveriam em harmonia e se respeitariam, pois as diferenças diminuiriam ao ponto de renascer um mundo de paz. Em teoria, parece algo bonito, e que sem dúvida lembra a canção “Imagine”, de John Lennon.

No entanto, distante de uma visão romanceada e mais realista do mundo, acredito que isso seja não apenas utopia, mas também a simplificação e superficialização dos problemas do mundo. Na ausência das religiões, não há como afirmar que o homem não encontraria outros meios de segregação que compensassem essa ausência, até porque surgiria um embate com a questão existencialista humana que é a inerência à fé e à crença, mesmo quando não direcionada a Deus.

Em síntese, admito que as religiões também têm peso negativo sobre a vida em sociedade, mas não podem ser responsabilizadas por todos os males da humanidade, até porque desde o início da civilização vemos nossos ancestrais distorcendo bons preceitos coletivos para benefício individualista. Infelizmente, é algo que acontece em todas as esferas da vida em sociedade e não apenas na religião. Ao longo dos séculos, quantas teorias e ideologias que nasceram de boas intenções perderam o seu valor pela distorção conceitual ou popularização da sua pobreza prática?

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Written by David Arioch

March 16th, 2015 at 10:45 am

O centenário de nascimento de Sebastião Bem Bem

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Roza de Oliveira: “Nunca vi outro político assim, que não quer usar dinheiro público”

Sebastião Bem Bem foi vereador na época em que não se ganhava nada para exercer a função (Foto: Acervo Familiar)

Sebastião Bem Bem foi vereador na época em que não se ganhava nada para exercer a função (Foto: Acervo Familiar)

Nascido em 11 de março de 1915, o lavrador Sebastião Bem Bem de Oliveira deixou Monte Alegre, distrito de Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro, em novembro de 1948. Se mudou com a família para o Noroeste do Paraná após ser convencido pela irmã de que Paranavaí era a terra do café. Com experiência nas mais diversas lavouras, Bem Bem se arriscou e perseverou. Mais tarde, trocou o campo pela cidade e se tornou um político exemplar numa época em que vereadores não ganhavam nada para exercer a função. Depois de superar muitos obstáculos e ajudar tantas pessoas, o pioneiro faleceu aos 77 anos em 4 de maio de 1992.

“O café estava em evidência e meu pai sempre gostou de trabalhar como lavrador. Quando chegamos a Paranavaí, ficamos na casa da tia Taninha até arrumar um cantinho para morar. Enfrentamos dificuldades e perdemos uma irmãzinha, Ruth, que passou muito mal nos quatro dias de viagem e faleceu dez dias após a chegada”, diz a filha Roza de Oliveira, acrescentando que o trajeto tortuoso foi percorrido de trem e de ônibus.

Quando deixou a residência da irmã, Sebastião Bem Bem hospedou a família em uma humilde casinha construída onde é hoje a Unimed, na Rua Antônio Felipe. “O Paulo [Cesar de Oliveira, fundador do Grupo Gralha Azul e presidente da Fundação Cultural de Paranavaí] nasceu naquele ranchinho de tabuinhas, parede de lascas e chão de terra batida”, relata Roza sorrindo, como se estivesse revivendo o passado.

Bem Bem de Oliveira também trabalhou em Paranavaí como funcionário da Prefeitura de Mandaguari até que se mudaram para a famosa Chácara Progresso. O local era o preferido dos filhos, mas infelizmente o pioneiro teve de vender o imóvel e se mudar para um sítio. “Papai começou a lidar com café na propriedade do seu Antonio José da Silva. Depois fomos colher algodão. A família toda ajudava na lavoura”, lembra a filha.

Durante as colheitas, Bem Bem, que ainda criança aprendeu a manejar enxada, foice e machado, sempre explicava aos filhos a importância de estudar. Não queria que enfrentassem as mesmas dificuldades que ele. “Deixou claro para todos nós que é estudando que se vence. Tinha uma tristeza muito grande por não ter estudado”, confidencia Roza, lembrando que pais como Sebastião Bem Bem eram raros nos anos 1950 e 1960. Os filhos se recordam da alegria do patriarca ao vê-los diante de uma lamparina folheando um livro ou caderno à noite, mesmo que isso custasse acordar com o rosto sujo de tanta fuligem.

Quando Roza completou 15 anos e recebeu uma nomeação do prefeito José Vaz de Carvalho para trabalhar como professora na Casa da Criança, onde é atualmente Colégio Estadual Dr. Marins Alves de Camargo, Bem Bem ficou preocupado porque a filha precisaria percorrer quilômetros a pé para lecionar. Então decidiu se mudar.

Bem Bem sendo homenageado pelo prefeito Benedito Pinto Dias nos anos 1980 (Foto: Acervo Familiar)

Bem Bem sendo homenageado pelo prefeito Benedito Pinto Dias nos anos 1980 (Foto: Acervo Familiar)

Na área urbana, novamente se sentiu perdido porque tinha pouca experiência trabalhando longe do campo. Esperto e inteligente, não se abateu. Ao perceber a chegada de tantas famílias a Paranavaí, Sebastião Bem Bem começou a atuar como corretor de imóveis. Entre altos e baixos, o pioneiro fluminense estava sempre disposto a encarar desafios, tanto que trabalhou até na derrubada de mata em Loanda. Saía de Paranavaí na segunda e retornava apenas no sábado.

“Sempre teve uma capacidade muito grande de auto-superação. Não se entregava de jeito nenhum”, assegura Roza. Enquanto Bem Bem trabalhava como peão, a esposa Elazir Azevedo de Oliveira prestava serviços como lavadeira de roupas para muitas famílias de Paranavaí.

De acordo com o filho Paulo Cesar de Oliveira, com o incentivo dos amigos, Bem Bem de Oliveira concorreu ao cargo de vereador nas eleições de 1952 e ficou como suplente. À época, trabalhou para o candidato a prefeito Herculano Rubim Toledo, vencido pelo médico José Vaz de Carvalho. Logo que assumiu a administração municipal, José Vaz o convidou para uma conversa. “Ele disse que queria meu pai trabalhando com ele, ajudando a administrar Paranavaí. O convite foi aceito e os dois nunca desfizeram a parceria”, garante Paulo Cesar.

Naquele tempo, Bem Bem já realizava trabalhos sociais, contribuía com solicitações de encaminhamento para internações. Nos quatro primeiros anos que viveu em Paranavaí, não teve nenhuma pretensão política, só agia por amor ao próximo. “Ele se tornou um famoso voluntário da ação social e da área de saúde. Não sossegava enquanto não conseguia internar quem o procurava pedindo auxílio”, frisa Roza.

A partir de 1965, com a popularidade alta e o crescente reconhecimento de suas ações, o pioneiro conseguiu se eleger vereador. O desempenho agradou tanto a população que Bem Bem foi reeleito em 1969, 1973, 1977 e 1983. “Foram cinco mandatos consecutivos. De 1975 a 1976, ele foi presidente da Câmara Municipal. Atuou também como secretário da assistência social”, lembra Paulo Cesar de Oliveira.

Quando era vereador, não tinha hora para chegar em casa e recebia os eleitores até de madrugada. Tarde da noite, não era raro os filhos ouvirem vozes vindo da entrada da residência. A visita tinha quase sempre a mesma motivação: “Ô seu Bem Bem, meu pai tá doente. Precisamos da sua ajuda”, clamavam. O vereador se apressava e ia para a Santa Casa de Paranavaí, de onde não saía até garantir que o enfermo fosse internado.

Paulo Cesar se recorda de um episódio cômico em que até o prefeito José Vaz de Carvalho se rendeu aos esforços de Sebastião Bem Bem. “Um dia, o José Vaz, que era médico, estava atendendo na Santa Casa e uma recepcionista chegou falando que o Bem Bem estava nervoso. Então o prefeito disse: ‘Ah, manda ele pra lá”, narra o filho.

Elazir Azevedo de Oliveira e Bem Bem de Oliveira se casaram em 1938 em Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro (Foto: Acervo Familiar)

Elazir Azevedo de Oliveira e Bem Bem de Oliveira se casaram em 1938 em Santo Antônio de Pádua, no Rio de Janeiro (Foto: Acervo Familiar)

Se voltando para um paciente, Carvalho justificou que Bem Bem era uma pessoa muito boa, mas que exigia muita atenção. “Ninguém aguenta alguém que quer ser atendido toda hora”, criticou. Quando percebeu que Sebastião Bem Bem já estava entrando, José Vaz mudou o rumo da conversa. “Estou falando. Não tem homem igual o Bem Bem em Paranavaí. Atende ele, menina!”, ponderou.

Respeitado até por adversários políticos, o vereador tinha o hábito de fazer tudo sem usufruir de recursos públicos. Quando conseguia o encaminhamento de pacientes para Curitiba e outras cidades do Paraná, fazia questão de ir junto e ainda dormia ao lado da cama do paciente. “Sempre procurava a hospedaria mais barata. Chegava a ser ridicularizado pelos colegas. Nunca vi outro político assim, que não quer usar dinheiro público. Uma vez, papai dormiu em uma pensão e roubaram a mala dele”, confidencia Roza de Oliveira, evidenciando a bondade e azar do vereador.

O respeito e consideração de Sebastião Bem Bem pela população era tão grande que muitas vezes o pioneiro chegou ao Hospital das Clínicas de Curitiba carregando enfermos nos braços. Como vereador não tinha salário, trabalhou cerca de 16 anos sem ganhar nada. “Sabe o que ele fez na primeira ocasião em que recebeu como vereador? Dividiu mais da metade com os menos favorecidos”, conta rindo o genro Augustinho Borges.

Quem conheceu Sebastião Bem Bem de Oliveira sempre o considerou um guerreiro. Se sobressaía pelo interesse em fazer a diferença quando ainda não existiam políticas específicas para a área da saúde. “Era firme no que acreditava e um comentário só o atingia se tivesse argumentos consistentes, não vaidades”, avalia Rosa. Até hoje, Bem Bem é lembrado pela defesa de leis que garantiram à população o direito de acompanharem os familiares internados na Santa Casa de Paranavaí.

Em ato de coragem, durante uma sessão na Câmara Municipal, o vereador manifestou indignação contra a bancada ruralista no Congresso Nacional e ainda fez questão de chamar a atenção dos que representavam os interesses dos latifundiários na região. Mesmo depois de dedicar 25 anos de vida à população de Paranavaí, Sebastião Bem Bem de Oliveira não conseguiu obter a aposentadoria. “Não se aposentou nem como trabalhador rural, atividade que exerceu por décadas. Também foi guarda do aeroporto, secretário de assistência social e corretor de imóveis. Nada disso garantiu que ele recebesse nem mesmo um salário mínimo na terceira idade”, lamenta Paulo Cesar.

Antes de falecer em 4 de maio de 1992 em decorrência de falência múltipla de órgãos, Bem Bem teve um acidente vascular cerebral (AVC) e passou os dois últimos anos de vida em uma cadeira de rodas. Segundo Roza de Oliveira, o pai sofreu bastante. Teve de fazer hemodiálise e frequentemente precisava ser internado. “Ele era diabético e hipertenso. Um dia, o José Vaz entrou no quarto e falou que o Bem Bem não merecia passar por isso”, testemunha Paulo Cesar de Oliveira.

Família Bem Bem reunida em Paranavaí em 1967 (Foto: Acervo Familiar)

Família Bem Bem reunida em Paranavaí em 1967 (Foto: Acervo Familiar)

Pouco antes de morrer, Sebastião Bem Bem de Oliveira lamentou o arrependimento de não ter se dedicado mais aos filhos. Também questionou se realmente foi um bom pai. “Deixamos claro que ele foi o melhor pai do mundo, que nos ensinou com rigor a importância de sermos honestos e trabalhadores. Apesar de todas as dificuldades, nos ensinou muito sobre Deus, um presente eterno que todo pai deveria dar aos filhos. Foi um momento de emoção, choro e conforto”, assinala Roza.

No dia 6 de maio de 1992, o editorial do Diário do Noroeste expressou pesar pela morte de um dos políticos mais importantes da história de Paranavaí. “Bem Bem de Oliveira entrou pobre na política e assim saiu dela, quando sua saúde já não permitia mais desenvolver as atividades legislativas. Fez um grande trabalho na área social – fato reconhecido até por adversários políticos. E a grande virtude do ex-vereador é que ele realizou este trabalho antes de entrar para a Câmara Municipal e continuou depois de se despedir do legislativo. Foi a política que entrou na vida de Bem Bem e não ele que entrou para a política.”

Bem Bem amava poesia e adorava noticiários

Obrigado a trabalhar desde criança, Sebastião Bem Bem de Oliveira só estudou até o segundo ano do primário, atual ensino fundamental. Ainda assim, gostava muito de ler e era bom em cálculos. “Ele tinha aquele complexo de achar que não possuía cultura por ter estudado pouco. Apesar disso, gozava de uma capacidade invejável para discursar e evangelizar. Era um homem inteligentíssimo e entendia tudo sobre a bíblia, o seu livro preferido que leu tantas vezes”, diz a filha Roza de Oliveira.

O amor pela poesia e pela declamação, Roza herdou do pai aos cinco anos. A influência foi tão significativa que os filhos cresceram afeiçoados à literatura. Paulo Cesar de Oliveira, fundador do Grupo Gralha Azul, atribui ao pai o seu grande envolvimento com arte e cultura ao longo da vida. Além de leitor inveterado, Sebastião Bem Bem adorava noticiários, tanto que quando comprou a primeira TV “foi como se o paraíso chegasse até ele”, define a família.

Bem Bem também sabia ser bravo e intransigente, principalmente quando ficava com ciúmes. Roza de Oliveira jamais esqueceu o episódio em que estava estudando química em casa com a ajuda do amigo e engenheiro Luís Beletti. “De repente, passa o papai com um cabo de vassoura pra bater no rapaz. Ele achou que estávamos muito perto um do outro. Tinha o coração bom demais, mas um temperamento difícil”, admite Roza às gargalhadas. No dia, a filha chorou a noite toda de vergonha. Ficou tão constrangida que passou um bom tempo sem se aproximar de rapazes. Mais tarde, Bem Bem se arrependeu e convidou o jovem para um almoço.

Um mito em Santo Antônio de Pádua

Nos anos 1970, Sebastião Bem Bem de Oliveira já convivia com o diabetes. Teimoso, se recusava a seguir a dieta. “Ia pra casa do amigo Salomão e comia tudo que não podia. Ele não gostava de se cuidar. Lá pelo início dos anos 1980, só abriu uma exceção e deu uma caprichada quando prometi levar ele e a mamãe para visitar os parentes no Rio de Janeiro”, lembra a filha Roza de Oliveira.

Dona Elazir: “Eu e o Bem Bem enchemos Paranavaí de gente. Tivemos 14 filhos, 17 netos e 22 bisnetos” (Foto: Acervo Familiar)

Dona Elazir: “Eu e o Bem Bem enchemos Paranavaí de gente. Tivemos 14 filhos, 17 netos e 22 bisnetos” (Foto: Acervo Familiar)

Cumprindo o combinado, o levaram para Santo Antônio de Pádua. Apesar de ter deixado a cidade natal ainda muito jovem, a fama de Bem Bem como um homem bondoso e admirável era tão grande que na casa do irmão, onde ficou hospedado, recebeu visitas o dia todo, até de pessoas que não conhecia.

“Chegou muita gente de carro de boi e também a cavalo. Foi aí que percebi o quanto ele era querido em Pádua. De lá, fomos para o Rio [de Janeiro, capital], onde visitamos Jorge de Sá, um de seus melhores amigos. Na volta, passamos ainda em São Paulo para ele rever o ‘Seu Olivier’, outro grande amigo”, descreve Roza, acrescentando que fizeram todas as vontades de Bem Bem durante a viagem.

O que também chamava a atenção no pioneiro era a grande sensibilidade. Era acostumado a chorar com facilidade, principalmente quando reencontrava algum parente ou amigo. Se emocionava até mesmo com figuras públicas que admirava. “Eu tinha 13 anos quando o presidente Getúlio Vargas cometeu suicídio e lembro como se fosse hoje. Morávamos em um ranchinho e o ‘radião’ ficou ligado dia e noite. Papai chorava sem parar”, pontua Roza.

Um traço de personalidade que virou nome

De acordo com a esposa Elazir Azevedo de Oliveira, o pioneiro fluminense Sebastião de Oliveira ficou conhecido como Bem Bem muito cedo pelo jeito afável e querido de ser. “Quando ele era criança o chamavam de benzinho. Mais tarde, começaram a falar Bem Bem”, conta. O genro Augustinho Borges explica que o apelido que depois virou nome ganhou força com o altruísmo do pioneiro fluminense. “Ele era a pessoa que mais se encaixava no ditado ‘faça o bem sem olhar a quem’. Fazia o melhor por qualquer pessoa e tentava sempre ver o lado bom de tudo”, comenta Borges.

Em 1980, Sebastião de Oliveira decidiu fazer uma retificação de nome porque nas últimas eleições perdeu muitos votos quando concorreu a vereador. O problema era que bastante gente o conhecia apenas como Bem Bem. “O sujeito votava, mas os votos não eram considerados porque o que valia era o nome no registro de identidade”, comenta Augustinho Borges.

Com o auxílio do advogado Fuad Esper Cheida, o pioneiro conseguiu fazer a alteração. À época, Augustinho Borges viajou até o Rio de Janeiro para formalizar a mudança e buscar a nova certidão de nascimento do sogro. Na última eleição municipal em que concorreu, Bem Bem superou de longe a quantidade de votos das eleições anteriores, provando que era um dos políticos favoritos da época. Em reconhecimento a tudo que fez por Paranavaí, Sebastião Bem Bem de Oliveira recebeu em 14 de dezembro de 1981 o título de cidadão benemérito de Paranavaí.

Em 2 de setembro de 1987, o pioneiro foi presenteado pela Associação Comercial e Industrial de Paranavaí com uma placa de prata entregue pelo então prefeito Benedito Pinto Dias. A solenidade o reconheceu como o homem público do ano pela Comissão Organizadora das Solenidades da Semana da Pátria. Bem Bem também foi prestigiado com um nome de rua. Uma das vias mais importantes do Jardim Ibirapuera e Jardim Santos Dumont, a Rua Catete recebeu o nome de Rua Sebastião Bem Bem de Oliveira.

Saiba Mais

Sebastião Bem Bem de Oliveira era do Rio de Janeiro, cujo padroeiro é São Sebastião e se mudou para Paranavaí, cidade que também tem o santo como padroeiro. Casou-se com Elazir Azevedo de Oliveira que nasceu em 20 de janeiro, Dia de São Sebastião. Além disso, por pouco “Dona Elazir” não recebeu o nome de Sebastiana.

Sebastião Bem Bem se apaixonou por Elazir quando ela tinha apenas 14 anos. Tentou pedir a mão da jovem em casamento, mas o pai dela recusou alegando que não tinha filha em idade de se casar. Apaixonado, Bem Bem ficou tão abalado que chegou a ser internado em um sanatório. Sebastião de Oliveira não desistiu, tanto que se casaram quatro anos depois.

Em Santo Antônio de Pádua, Sebastião Bem Bem trabalhava cultivando arroz na serra. Apesar das dificuldades, todos os dias ‘Dona Elazir’ percorria longas distâncias e subia morros levando uma cesta de comida para o marido e os companheiros de trabalho.

Paulo Cesar de Oliveira se recorda do episódio em que o pai, Sebastião Bem Bem, estava acompanhando um homem com problemas psicológicos para receber tratamento médico em outra cidade. Na ocasião, o sujeito abriu a porta do carro, desceu e fugiu em direção a um matagal. Bem Bem teve de correr atrás do homem para trazê-lo de volta.

Frase da filha Roza de Oliveira, de 73 anos.

“Um dia, ali perto do Grande Hotel teve um tiroteio e o papai mandou todo mundo deitar no chão. Ficou com medo que alguma bala acertasse a gente. A confusão foi armada por causa de grilagem de terras.”

Frase da esposa Elazir Azevedo de Oliveira, de 94 anos.

“Eu e o Bem Bem enchemos Paranavaí de gente. Tivemos 14 filhos, 17 netos e 22 bisnetos. Fico triste por ter perdido sete filhos, mas também fico feliz de ter uma família tão grande, boa e bonita. Todos me tratam bem, querem o melhor pra mim. São muito queridos. Me sinto uma ilha cercada por netos por todos os lados. Tem hora que fico perdida no meio da turma, né?”

O Garganta de Ouro que deixou Terra Rica para conquistar o Brasil

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Antes do estrelato, quando vivia em Terra Rica, José Rico cantava em troca de doces 

José Rico não passava mais de seis meses sem visitar Terra Rica (Foto: Divulgação)

José Rico não passava mais de seis meses sem visitar Terra Rica (Foto: Divulgação)

Na infância, o pequeno José Alves dos Santos começou a se destacar em Terra Rica, no Noroeste do Paraná, ao cantar em troca de doces. Quando cresceu, a necessidade o obrigou a exercer serviços braçais para sobreviver. Porém, como profetizara um padre, José ainda seria rico. Após mais de 40 anos de sucesso, infelizmente, José Rico, que tocaria na 44ª ExpoParanavaí no dia 13 de março, faleceu hoje em Americana, interior de São Paulo, em decorrência de complicações envolvendo coração e rins.

O músico José Alves dos Santos, conhecido como José Rico, o Garganta de Ouro do Brasil, nasceu em São José do Belmonte, Pernambuco, em 1946, mas em 1948 se mudou com a família para Terra Rica, onde viveu até os 19 anos. De acordo com Wilson Alonso, amigo de infância do cantor, José Rico sempre foi um grande personagem da cidade. “Ele nunca foi como aqueles artistas que esquecem da própria origem. Não ficava mais de seis meses sem aparecer aqui”, explicou em tom de orgulho em entrevista que me foi concedida em 2006.

Ao se mudar para o extremo Noroeste do Paraná, no início, o pai de José Rico conseguiu manter a família com o ofício de barbeiro. No entanto, logo surgiram dificuldades e ainda criança José Alves dos Santos teve de trocar a chupeta por uma enxada. “Ele trabalhou muito na lavoura. Também atuou como pintor, sorveteiro, engraxate e servente de pedreiro. Lembro como se fosse hoje”, contou Alonso, se calando por alguns segundos, disperso em pensamentos.

Quando não estava trabalhando, o pequeno José gostava de cantar. A boa voz foi determinante para ser convidado a participar de eventos locais em que o cachê se resumia a paçoquinha e sorvete. “Era uma figurinha carimbada nas quermesses e festas juninas. Quem tinha muito dinheiro na época, sempre o chamava para se apresentar”, relatou Alonso, sem velar o sorriso nostálgico.

Com milionário, o cantor formou uma das maiores duplas de música sertaneja do Brasil (Foto: Reprodução)

Com Milionário, o cantor formou uma das maiores duplas de música sertaneja do Brasil (Foto: Reprodução)

O interesse pela música sertaneja foi precoce, mas naquele tempo o desconhecido José dos Santos embalava o público com canções românticas e boêmias. “Eram composições de Altemar Dutra e Nelson Gonçalves. O pessoal gostava mais desses cantores que estavam no auge”, revelou Alonso. No fim da adolescência, José Alves dos Santos começou a participar de programas de rádio. Alonso citou um episódio em que o cantor veio a Paranavaí para participar de um programa de auditório. “Ele conseguiu chegar a tempo de se apresentar na Rádio Paranavaí, graças ao sargento Vieira”, reitera.

Quando ainda sequer cogitava a possibilidade de gravar um disco, o jovem José conheceu o pároco Eduardo Bassil que o incentivou. “O padre falou que ele seria um José Rico, ficaria realmente rico, e isso aconteceu. Foi merecido porque ele lutou muito por isso, não caiu do céu”, avaliou Wilson Alonso.

José Rico gostava de comer arroz, feijão e ovo

Na adolescência, as mãos do cantor sertanejo José Rico não se sentiam atraídas apenas pelas cordas do violão. “Briga era com ele. Lembro que antigamente tinha luta em circo, então normalmente no segundo dia ele já estava lá na arena lutando. O Zé gostava muito disso”, informou o amigo Wilson Alonso.

Emocionado, Alonso destacou a simplicidade como a principal característica do cantor. “O Zé chegava aqui em casa e dizia que queria comer arroz, feijão, ovo frito e quiabo. Além disso, adorava sair na rua de bermuda, camiseta e tênis”, enfatizou o amigo.

Apesar de não tocar nenhum instrumento, Wilson Alonso guardava com esmero um violão cuidadosamente envernizado e sempre brilhante. O instrumento sempre ficava à espera do amigo José Rico. Por muito tempo, ao toque do primeiro acorde sempre levava à tona a nostalgia e graça da época em que usava o talento para ganhar um pedaço de doce.

Saiba Mais

O texto acima é resultado de uma entrevista que fiz com Wilson Alonso em 2006. Infelizmente, Alonso faleceu em 10 de setembro de 2011, três anos e cinco meses antes da partida de José Rico, a quem ele considerava um de seus melhores amigos.

Curiosidades

Além da música sertaneja, José Rico apreciava música gaúcha, mexicana, paraguaia e cigana. Tais influências são perceptíveis nas composições do artista.

A música “Estrada da Vida”, de autoria de José Rico, garantiu a venda de mais de dois milhões de discos.

A dupla Milionário e José Rico surgiu em 1973. Desde então, lançaram 29 discos e dois filmes: “Na Estrada da Vida” e “Sonhei com Você”.

O filme “Na Estrada da Vida” foi dirigido por Nelson Pereira dos Santos, expoente do cinema novo brasileiro.