Uma manhã em algum lugar da Vila Alta
Um breve relato de histórias e experiências inusitadas na periferia de Paranavaí
Ligo à noite para o artista plástico Luiz Carlos Prates e combinamos de conversar pela manhã na sua casa, na Vila Alta, periferia de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. O papo seria sobre a Oficina do Tio Lú, um projeto de recuperação de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Chego antes das 9h e percebo que o portão está cadeado. Um vizinho acena e grita que o “Seu Luiz” pegou a “magrela” e foi ao centro. Faço outra ligação para o Tio Lú e ele pede que eu o aguarde. Enquanto isso fico em frente à Casa 10 da Rua B observando o movimento de pessoas, veículos e animais. À esquerda, uma estrada de terra que dá acesso à Farinheira Cassava possui o maior fluxo de veículos do bairro. Carros, caminhões, picapes e motos circulam dia e noite pelo local. Do outro lado, é possível ver o Bosque Municipal de Paranavaí, inclusive alguns macacos e pássaros que se aproximam da cerca de arame que separa a mata nativa da rua.
Nos primeiros minutos após a minha chegada, três garotinhas com idade entre 12 e 13 anos me chamam a atenção enquanto percorrem uma estrada de terra. Se esforçam para se defender das cortinas de poeira deixadas por uma sequência de caminhões. Tenho a impressão de ver cada uma carregando uma boneca enquanto conversam. Só percebo o engano quando ouço um choro intervalado. Não eram bonecas, mas sim bebês. Quando as três descem um pouco mais, um rapaz me diz que duas das meninas já têm dois filhos. “Essas novinhas engravidaram dos vizinhos lá da rua de baixo. Isso não é anormal aqui, acontece com frequência”, explica. Quando o rapaz vai embora, a simpática Dona Lindinalva, namorada do Seu Luiz, estaciona a bicicleta, me cumprimenta e faz questão que eu pegue uma cadeira para não precisar esperar em pé.
Assim que ela se despede para cuidar dos afazeres domésticos, chega R.D.S., um garoto de 13 anos que conheci em 2012. “Vi você descendo de carro lá na rua de cima, então vim pra cá”, diz sorridente enquanto segura uma gaiola com um coleirinho chamado Maverick. O passarinho foi capturado por R.D.S. que gosta de domesticá-los. Ocasionalmente os vende pela melhor oferta. Depois de mudar a gaiola de posição três ou quatro vezes, evitando expor a ave ao sol, ele grita para um vizinho. “Ô véi, quer comprar coleirinho?” O rapaz então pergunta o preço e R.D.S. responde que aceita R$ 30. A negociação se estende por um bom tempo, até que o vizinho diz que paga pelo coleirinho o que tiver no bolso. “E aí, topa ou não? É pegar ou largar”, desafia.
R.D.S. fica tentado em aceitar, mas tem receio de que o rapaz não tenha dinheiro algum. Na Vila Alta, quem concorda com esse tipo de transação não pode desfazer o negócio se a surpresa for desagradável. “Sei não, viu? Acho que você tá me ‘zuando’”, desconfia o garoto. O sujeito gargalha e se cala. O silêncio sincronizado parece atrair a atenção de Maverick que começa a cantar e voar de um lado para o outro da gaiola. Ao ver a agitação do coleirinho, pergunto a R.D.S. por que ele prende o passarinho dentro da gaiola. “Pra cuidar dele. Ensino a cantar melhor ainda. Sou bom nisso, tanto que eles andam em cima do meu ombro, braço e cabeça”, argumenta e acrescenta que com o tempo abre a gaiola e deixa o pássaro livre.
R.D.S. tem boas lembranças da época em que passava horas observando as aves numa área conhecida como “barragem”, bastante frequentada pelos jovens do bairro. Para chegar ao local é preciso ir até o final da Vila Alta e atravessar um brejo a pé. “A ‘barragem’ foi abandonada quando começaram a matar gente lá. O pessoal ficava com medo. Depois de muito tempo melhorou de novo”, garante R.D.S. que brincava no lugar quase todos os dias. Em seguida, o garoto assobia para o coleirinho que retribui cantando em um tom ainda mais elevado. R.D.S. confidencia que muita gente também gostava de fumar maconha na “barragem”. Jovens com idade entre 8 e 15 anos recebiam o produto de um mesmo fornecedor. “A gente pagava R$ 5 em três cigarros grandes de maconha. Tinha época que queria fumar toda hora. Não dava vontade de fazer mais nada. Ficava ‘relaxadão’”, revela.
Para sustentar o vício, R.D.S. percorria o lixão da Vila Operária e o da Vila Alta procurando fios de cobre. Com a venda, ia até uma “boca de fumo” e comprava maconha. Por vontade própria e incentivo de bons amigos, o garoto parou de fumar há seis meses e já está se preparando para voltar a estudar. O que motivou o adolescente a passar a maior parte do tempo nas ruas e também a se tornar usuário de drogas ainda na infância foi o mau relacionamento familiar. R.D.S. mora com os avós e desde que aprendeu a andar teve de aceitar a ausência da mãe e a convivência com um avô alcoólatra que o xinga diariamente. “Sempre diz que sou lixo, que atrapalho a vida dele e nunca vou ser ninguém. Pra ele, eu não sirvo pra nada”, reclama em tom de mágoa.
Um dia o garoto teve uma intoxicação alimentar e precisou ser socorrido pelo artista plástico Luiz Carlos Prates. No Pronto Atendimento Municipal explicaram que o caso era grave e se tivessem demorado um pouco mais o adolescente poderia ter morrido. “Meu pai é legal. Gosta de me dar presentes. A gente mora na mesma cidade, mas ele só vem me buscar uma vez a cada dois meses”, explica. O relacionamento com a mãe sempre foi tenso. Por isso, apesar dos conflitos, R.D.S. ainda prefere morar com os avós.
Enquanto conversamos, uma senhora com pelo menos 60 anos desce a rua da Farinheira Cassava equilibrando um botijão de gás sobre a cabeça. Ao lado, um cãozinho mestiço de pelagem escura a acompanha como se fosse um guarda-costas. Minutos mais tarde, Seu Luiz chega de bicicleta e quatro jovens se aproximam. Depois de sentar em uma cadeira sobre a calçada, o artista plástico mostra uma mulher caminhando ao lado do Bosque Municipal. Aparentando ter no máximo 30 anos, a jovem já teve mais de 15 filhos. “É uma moça que poderia ter se esforçado e seguido por um caminho diferente. Ela comandava uma casa de prostituição em São João do Caiuá [a menos de 30 quilômetros de Paranavaí]. Veio pra cá porque a expulsaram de lá. Teve uma época em que o trabalho dela era aliciar as meninas do bairro para se tornarem prostitutas”, confidencia Seu Luiz.
Pela mesma rua percorrida pela moça chega à esquina um senhor com cerca de 70 anos conhecido como Didi. Espancado na noite anterior, o idoso perdeu quase todos os dentes. Restaram apenas dois ou três e algumas lascas ainda presas à gengiva. Visivelmente bêbado e com as pernas trêmulas, Didi tenta articular algumas frases confusas enquanto sorri e levanta os braços em direção ao céu. Parece viver o seu momento em um mundo tão pequeno que fica alegre ao perceber que é observado por algumas pessoas. “Meu nome é Didi Mocó Sonrisal Colesterol Novalgina Mufumbbo. Isso mesmo! Mufumbbo com b duplo e Mocó com acento no segundo o!”, comenta aparentemente “anestesiado” pela embriaguez. Quando falam com ele, o homem fica eufórico, sente-se importante por receber um pouquinho de atenção.
Com a partida de Didi, Seu Luiz relata a história do dia em que pediu a um dos seus alunos para lhe arrumar um cachorro preto. “Expliquei que queria um animalzinho com essa descrição para me fazer companhia”, enfatiza. Uma semana depois do pedido atendido, o artista plástico estranhou que o cachorro estava com a pelagem opaca e ficando esbranquiçado. Foi quando se deu conta que como o garoto não conseguiu encontrar nenhum cachorro preto, ele pegou um cão branco e o pintou. “A tinta foi desaparecendo. Nem acreditei no que tinham feito”, lembra rindo.
Antes de eu ir embora, dois adolescentes começam a falar baixo durante a passagem de um homem de não mais que 20 anos. O rapaz de sorriso enviesado, estatura mediana, magro e cabeça raspada só anda pelo bairro em horários estratégicos. Marcado para morrer por uma facção criminosa, o jovem segue a vida enquanto pode. “Não chama o doido aqui não. Se os caras ‘emparelharem’ ele aqui, todo mundo vai levar bala junto”, reclama um rapaz alto e corpulento que abandonou o crime há alguns anos. Sem demora, o jovem dobra a esquina e não o vemos mais. No chão por onde passou, ficam apenas as marcas irregulares da sola do par de chinelos. Ninguém sabe se ele vai sobreviver a mais um dia ou se vai ser encontrado assassinado em algum lugar da periferia de Paranavaí.
Por volta das 11h30, uma picape Ford F-350 preta cruza a Rua B. Mais adiante, uma moça desce do veículo e rapidamente entra dentro de casa. “Aqui é assim. Muitos homens ricos, principalmente de meia-idade, vêm aqui pra iludir e se aproveitar dessas meninas. São sujeitos casados, com filhos e que ‘vendem mentiras’. Sonhadoras, elas acreditam que eles gostam delas, que vão mudar de vida, mas quase sempre são descartadas como se fossem lixo”, critica Tio Lú, acrescentando que não são poucos os homens de alto poder aquisitivo que procuram garotas menores de idade no bairro.
Pouco antes das 12h, dou uma carona para o Seu Luiz até o centro de Paranavaí. Deixamos a Rua B e subimos em direção à Vila Operária. Faltando 200 metros para sair da Vila Alta, vemos um senhor aparentando ter entre 55 e 65 anos abrindo a porta de uma picape Hilux branca para uma adolescente entrar. “Essa menina tem 15 ou 16 anos”, revela o artista plástico. Alguns segundos depois o homem acelera e a picape desaparece em uma curva a 100 metros do Centro da Juventude de Paranavaí.
Esse texto dá voz aos que não têm como fazê-lo. Triste realidade, revelando como o homem continua sendo o lobo do próprio homem… Texto importante. Continue combatendo o bom combate, David Arioch.
Antonio Neto
28 May 15 at 10:47 pm
Muito obrigado, Antonio Neto. Minha intenção é continuar sim. Abraço!
David Arioch
29 May 15 at 10:48 am