Os Olhos de Ivad
Quando dormia, sentia-se sempre nos confins de sonhos ilógicos, estáticos e inalterados
Por muito tempo, Ivad foi um ser nostálgico, embriagado em um lago de devaneios impessoais que canibalizavam sua pessoalidade. Pueril, demorou a perceber sua capacidade de observar o mundo com seus próprios olhos. Quando dormia, sentia-se sempre nos confins de sonhos ilógicos, estáticos e inalterados. Pela manhã, acordava questionando-se sobre o motivo pelo qual os seres humanos adotavam para si a ideologia de outrem, mesmo sem a certeza da crença em algo.
Questionava se apenas rememoravam a insipidez da crise existencial ou também mercantilizavam a própria imagem. Divagava tanto que logo surgia uma súbita dificuldade de enxergar. Seria o primeiro sinal de catarata ou glaucoma? Nada disso, era Ivad emocionado. Sentado sobre o galho de uma árvore, banhava-se em lágrimas e, apático, logo sucumbia diante das agruras da realidade humana. Vivia assim, caindo e levantando; monologando e refletindo sobre a condição existencial dos humanos.
Quando completou 24 anos, Ivad, insatisfeito e repleto de dúvidas sobre o comportamento humano, resolveu fazer sua primeira viagem longe do clã dos Choira. Conscientes de que o jovem Ivad deveria conhecer vários mundos, diferente daquele com o qual se acostumara, os anciãos o apoiaram em sua jornada, mas exigiram que ele aceitasse a companhia de Ainos, uma jovem da mesma idade. Os dois partiram em uma madrugada de lua nova, quando o entristecer das pradarias foi reconfortado, mais adiante, pelo despontar de girassóis em tons tão purificados que pareciam envoltos por nimbos.
Ivad, de aspecto sorumbático e olhos acinzentados, caminhava calado. Ainos, o contraponto de feições gentis e olhar vivificado, o observava constantemente, tentando encontrar em alguma expressão singela a informação que pudesse cristalizar uma ponte de comunicação entre eles. Ivad temia dividir suas dúvidas e curiosidades com a companheira de viagem. Para ele, mesmo que pertencessem a um mesmo mundo material, ela ainda era-lhe como alguém de outra espécie. Ainos o percebia distante, mas sentia-se impelida a saber o que tanto Ivad procurava e por que era-lhe tão importante.
No terceiro dia da jornada, Ainos, estarrecida pelo silêncio de Ivad, decidiu questioná-lo. “O que procura em outros mundos que não existe no seu? Não temes o ardil de seus olhos? Somos reféns deles, podem tanto clarear quanto obscurecer nossas vidas e nossos sonhos. Se abri-los demais, pode se ferir com o argueiro de outra realidade. Mas, também, se não abri-lo, há de enxergar apenas o mundo semeado em seu interior.”
Ivad, então, dialogou pela primeira vez durante a viagem. “Na minha busca não há certezas, apenas incertezas. Mas preciso ir além do meu universo simbólico para conhecer a verdade dos relatos que me fizeram sobre os humanos. Realmente dividem características de deuses e demônios? A mais pura metáfora da incoerência mundana? “, perguntou com expressão tímida. Ivad quis observá-la melhor tanto quanto quis desviar a profundidade de seus olhos – anseios paradoxais.
No oitavo dia da jornada, Ainos fez um comentário que surpreendeu Ivad: “Percebes que o interesse de alguém por algo pode torná-lo parte do que procura, do seu próprio interesse? Tudo depende da intensidade, e não do seu valor positivo ou negativo. Um ser confunde-se com outro quando a curiosidade chega a torná-lo avesso à sua própria natureza.” Ivad, acostumado ao ostracismo, decidiu não refugiar-se em seus receios.
“Talvez tenha razão. Quem sabe minha preocupação com os humanos tenha nascido de um tácito anseio de tornar-me um. Ou melhor, uma razão desconhecida para existir; algo que me fizesse crer que sou real, e ao mesmo tempo destribalizado, diferente de meus semelhantes. Para ser sincero, não dá para afirmar que essa foi minha única intenção. Isso porque também sou ilusão; uma oferenda a mim mesmo quando faço uso do açoite psicológico”, disse Ivad, sentindo-se vulnerável.
A natureza de Ivad intrigava Ainos que jamais encontrara alguém tão peculiar. Tais existências antagônicas eram como peças que dão sustentabilidade a uma ponte que liga dois universos esculpidos dentro de um. No décimo dia de viagem, quando chegaram à entrada do mundo dos humanos, Ivad olhou para Ainos e hesitou. Deu três passos para trás e ela o acompanhou com olhos marejados. Aproximou-se dele, encostou sutilmente a mão em seu ombro e perguntou com voz trêmula: “Vai desistir de sanar suas dúvidas? Encontrar respostas para as questões que o incomodam? Vai abandonar o sonho de adentrar a realidade dos humanos?”
Ivad não desviou os olhos de Ainos. Deu o seu primeiro sorriso sincero, embora acanhado, e explicou:
— Agora percebo por que a designaram para me acompanhar. Não foi coincidência ou receio de que eu pudesse não retornar, muito pelo contrário. Vejo agora o quão confuso estive; não procurava ninguém, a não ser a mim mesmo. Por um artifício de ingenuidade, decidi vagar para encontrar meu espaço entre os mundos. Tolice de minha parte acreditar que precisaria ir tão longe para sentir-me vivo. Agora ouço a minha respiração. Ela acompanha a sua voz. Não preciso existir em um lugar, mas junto de alguém; uma existência que complementa a minha e para a qual eu também sirva de extensão. Algo como o encontro das águas de dois rios que antes do poente entrelaçam-se dignificando uma existência-mor. É assim que todos os seres sensíveis e pensantes sobrevivem, não enaltecendo a grandiosidade da própria sapiência, mas encontrando-a e ampliando-a na experiência partilhada com o outro.
Naquele dia, Ivad desistiu de continuar a viagem, mas descobriu, no cerne de sua existência, curiosamente despertada por uma pessoa que não a si mesmo, motivo para iniciar uma nova jornada, sem hesitações ou receios. “Não preciso mais conhecer o mundo dos humanos, pois sei que dentro de mim não habita apenas uma espécie, mas o sincretismo de todas aquelas que, embora imperfeitas, resplandecem sob o manto da Terra”, afirmou.
Os Olhos de Ivad foi escrito e publicado pela primeira vez em 2008.
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