David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Meu pai e eu, a despedida que não aconteceu

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Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la, mas temia lhe ferir os dedos

Douglas, meu pai e eu dois anos antes de descobrirmos a doença (Foto: Acervo Familiar)

Douglas, meu pai e eu dois anos antes de descobrirmos a doença (Foto: Acervo Familiar)

No dia 21 de setembro de 1997, domingo, uma semana antes do meu aniversário, eu dormia em um colchão no quarto do meu irmão Douglas quando ouvi minha mãe chamando. Olhei para a porta e a vi nos observando naquela manhã que nem a primavera antecipada garantiu o sol aquecendo nossa janela. As luzes estavam apagadas, assim como o sol que costumava invadir nossa casa com um esplendor enternecido e jubiloso.

Cães e gatos, que se engalfinhavam por brincadeira todas as manhãs, também endossavam um silêncio que ecoava um vazio inenarrável. “David, Douglas, preciso muito dizer uma coisa… É muito sério… Seu pai não resistiu e morreu…”, revelou minha mãe com olhos afogueados e um tom de voz aluído que denunciavam ter ensaiado aquele momento por várias horas. Nos calamos por segundos que pareciam minutos. Então ela se afastou, se esforçando para reprimir a emoção.

Levei as mãos ao rosto e esfreguei os olhos que formigavam mais do que lã em eczema. “Poderia ser apenas uma alucinação, vai saber.” Prossegui com a fleuma, me negando a aceitar a gravidade da situação. Afinal, na minha concepção juvenil de finitude ninguém morria até que eu o visse morto. “Não, ele não pode ter morrido. É meu pai e pais não podem viver menos de 100 anos. Como ele tem 56, ainda restam 44. Não sei onde ele tá, mas tenho certeza que vai se levantar.”

Apesar da descrença no passamento, me sentei, aproximei os joelhos do peito e divaguei pelo passado recente. Lembrei das vezes em que fiquei de castigo sentado no chão ao lado da cabeceira enquanto meu pai lia um dos quatro ou cinco livros escolhidos a cada semana; um castigo que não era tão castigo porque me permitia ler junto. Recordei também das noites em que eu tinha de tocar polca no quarto. Com o passar das horas, parecia um martírio e eu só pensava em dormir. Criança que era, não tinha a mínima ideia de que um dia sentiria falta de suas cobranças, castigos, reprimendas, discursos bravios e das vezes em que simulou me bater e judiou da cama.

Algum tempo depois, me levantei, fui até o quintal e observei o céu. Apesar de tudo, ele continuava igual, na sua apatia que prenunciava a aurora primaveril. Até a pequena plantação de hortelã seguia galharda, exalando profuso frescor. Aquilo era uma ofensa pra mim que perdi meu pai na madrugada. “Vou lá fora!”, pensei. Abri o portão, coloquei os pés na calçada e notei que o mundo não mudou porque meu pai partiu. Crianças atravessavam a rua rindo e correndo. Cães de diversos tamanhos latiam e mostravam os dentes entre as grades dos portões, tudo para tentar intimidar os passantes.

Logo ouvi o sino da igreja simulado por um disco de vinil e dezenas de pessoas caminhando até ela, assim como se repetia todo domingo. A padaria a 50 metros de casa estava aberta, recebendo os fregueses. “Por que ninguém se importa?”, me perguntei enraivecido. Quando vi sombras e vozes em frente ao portão de casa, me afastei e retornei a passos rápidos para o quarto do meu irmão.

Deitei no colchão e fiquei por lá, aventando minhas voláteis conclusões: “Claro! Se tá tudo igual é porque meu pai não morreu. Deve ser algum tipo de engano.” Então mirei o teto com a visão ligeiramente difusa e pensei que talvez fosse uma boa ideia ir até o hospital vê-lo. Em poucos minutos, veio um novo choque de realidade. Minha mãe retornou e perguntou se preferíamos ir ao velório ou ficar em casa.

Ilusão desfeita, eu e meu irmão nos entreolhamos e hesitamos por alguns instantes. No entanto, numa situação como essa, a resposta era previsível. “Prefiro ficar…”, respondemos juntos. Ela entendeu e respeitou nossa decisão, pois desde sempre não tínhamos o hábito de ir a velórios nem a enterros. No caso do meu pai em especial, a ideia de jamais vê-lo morto não era simplesmente uma forma de preservar a imagem que tínhamos dele, mas também a esperança de que um dia ele poderia retornar.

Por um momento, fui até o quarto do meu irmão Juninho, contíguo ao da minha mãe, e o observei no berço. Balançava as perninhas rechonchudas com o vigor de uma pedalada. Seus olhos grandes, redondos e castanhos cintilavam como avelãs envernizadas. A agitação hasteava a camisetinha com estampa do “Tico e Teco”, expondo a barriguinha farta. Nascido há um ano, sorria com doçura, mostrando a vivaz gengiva nua e os poucos dentinhos enquanto apontava a mão para um móbile de animaizinhos que giravam sobre sua cabeça.

A vida me parecia um jogo de chegadas e partidas. “Mas por que a partida tinha de ser do meu pai?”, reclamava. E assim minha mãe assumia total responsabilidade sobre três crianças que sabiam nada ou quase nada da vida, do mundo e dos seres humanos. Apesar de tudo, eu e Douglas não choramos, não gritamos, não brigamos com ninguém. Seguimos nossas vidas em silêncio. Nem mesmo na escola tocamos no assunto. Entre nós a reticência também era imperativa. Por que deveríamos dizer algo a alguém? Era um mundo distorcido, tanto quanto uma pintura do Otto Dix.

Com o tempo a consternação se intensificou, despertada num rompante insólito. A ausência tinha consequências progressivas – fustigava e dava lições de vida e morte. Crescia aos poucos, abrindo espaços entre o coração e o cérebro, como se formasse raízes no cerne da existência. O vácuo deixado pelo meu pai amplificava a impressão de um mundo oco em que não é dado aos bons seres a oportunidade de corrigirem suas falhas e renascerem. Com 13 anos, concluí e amarguei no coração diminuto, como uma noz prestes a ser esmagada, a ideia de que o mundo nunca foi justo porque não cabe a ele fazer qualquer tipo de justiça. Apenas segue de acordo com o curso das nossas ações, independente do nosso estado de consciência ou passionalidade.

Tardiamente, me via na esteira da dualidade, interpelando: “Que seja! Por que a vida não poderia imitar um jogo de videogame? Continuar de onde paramos. A morte deveria ser sinônimo da vida, um reinício e não um fim.” Era impossível esquecer que durante um ano e oito meses vi meu pai definhando aos poucos. Ele se esforçou para tentar levar uma vida normal. Quando recebeu a notícia de que estava com câncer de pulmão, deu um sorriso e, com um olhar sereno, comentou: “Vai dar tudo certo. É só um probleminha passageiro.”

Em Maringá, acompanhei meus pais até o Hospital Paraná em muitas sessões de quimioterapia e radioterapia. No começo, tudo ia bem. Meu pai continuava se alimentando normalmente e fazia brincadeiras enquanto aguardava atendimento. Em meses, perdeu os cabelos, mais de 20 quilos e sua pele que era rosácea se tornou translúcida e esquálida. As maçãs do rosto se afundaram a ponto de abrir fendas nas laterais que raleiam o maxilar.

Ele continuava acreditando na própria recuperação, assim como nós. Após um ano recebemos a melhor notícia de nossas vidas. Meu pai estava curado! Saímos até para festejar. Era incrível! Então a doença voltou… Depois de buscar métodos alternativos que não funcionaram, ele começou um novo tratamento no Hospital Beneficência Portuguesa de São Paulo. O resultado foi ainda mais agressivo e o seu peso caiu pela metade.

Era difícil reconhecê-lo, e eu já não o via tanto porque precisava ir para a escola. Em casa, meu pai repousava em um quarto adaptado à sua situação. Quando segurava sua mão, eu a sentia fria e frágil. Queria apertá-la calorosamente, mas temia lhe ferir os dedos. Seus olhos estavam mais baixos do que nunca. Quebrantado, fazia poucos movimentos com a boca e seus lábios tinham de ser umedecidos constantemente para não ficarem ressequidos e sangrarem.

Seu corpo escanzelado ocupava pouco espaço em um colchão d’água que evitava escoriações na pele delgada. Era azul como o mar e o céu que contemplou tantas vezes com uma expressão enlevada. Um dia, quando eu estava ao lado da cama sentado em uma cadeira, me pediu, com a voz embargada e paulatina, para ler um trecho de “O Andarilho das Estrelas”, do Jack London.

“…Sorri para mim mesmo um imenso sorriso cósmico e mergulhei na imensidão da pequena morte que fazia de mim o herdeiro de todas as eras e o cavaleiro de reluzente armadura a cavalgar o tempo.” Meu pai me olhou, fechou os olhos e dormiu sem desfazer o terno sorriso. Foi a última vez que conversamos.

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  1. No Rio da Vida, é possível a navegação, a recreação e o expurgo de ideias equivocadas. Enquanto navegamos nesse rio, somos a criança em recreação; mas também somos as entidades psicoemocionais que precisam passar pelo “sabão do lavandeiro”. As dolorosas experiências no leito constituem o processo necessário para a superação de arcaicos cabedais de maneiras de ser e de agir que precisam ser superados. Muito embora a Medicina reduza o sofrimento carnal, sem a “poda” que a Vida impõem em certas ocasiões, não seria possível a ascensão para as mais elevadas formas de pensar e sentir.

    antoniopneto

    7 Sep 15 at 2:55 am

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