Jessé, um homem motivado pela simplicidade
Perambulando pelas ruas de Paranavaí, o andarilho já evitou furtos e roubos
Dias atrás, passando pela Rua Pernambuco no início da noite, vi um rapaz com uma réplica de uma cobra de mais de dois metros enrolada no pescoço. Sorridente, se apresentou como Jessé Piedade, de 39 anos, e explicou que a confeccionou usando apenas um pedaço de pano, espuma, agulha e linha. Intrigado, sugeri marcarmos um dia para que me contasse sua história.
Numa quinta-feira, por volta das 16h, a secretária da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, Elza Pavão, me liga avisando que Jessé está me esperando. Assim que chego lá, o encontro apreensivo e sentado diante de um pé de jaca. Quando tiro o gravador do bolso, ele pergunta: “Ué, mas você vai gravar mesmo? Vai sair uma reportagem comigo?”, questiona com olhos intumescidos.
Após a confirmação, o rapaz dá uma risada expansiva ao mesmo tempo em que as folhas longas e verdes da jaqueira se movem com a chegada de uma brisa pós-chuva. “Sou de São Paulo, capital. Comecei a trabalhar como motorista com 18 anos. Fiquei nesse serviço por 17 anos atendendo a um advogado. Fazia tudo que precisava, até que chegou um momento em que ele não teve mais condições de continuar me pagando. Apesar disso, sempre foi um excelente amigo. Era como um pai pra mim”, conta.
Perdido e desinteressado em continuar em São Paulo, Jessé se mudou para Paranavaí, no Noroeste do Paraná, há três anos, onde esteve várias vezes desde a década de 1990 com o ex-patrão. “Vim pra cá porque gostei daqui. Não tenho do que reclamar da cidade. O povo é muito humano. O que mais tenho aqui são amigos, inimigos não”, garante o paulistano com sotaque curitibano.
Com a carteira nacional de habilitação (CNH) vencida há mais de cinco anos, o rapaz não esconde o saudosismo da época em que dirigia até caminhão. O último emprego antes de vir ao Paraná foi no Hospital Regional de Itapetininga, no interior paulista, onde atuou como motorista, fiscal e vigia por dois anos e oito meses. Mas a vida de Jessé mudou anos antes. “Minha mulher tinha um boteco e virei um ‘chapéu velho’. Comecei a beber dentro do relacionamento e me entreguei ao alcoolismo após a separação em 2005. Ela não bebia. Só eu mesmo que fiquei assim”, confidencia.
Mais tarde, Jessé Piedade recebeu um convite para trabalhar com montagens de palco e de cenário de shows, chegando a coordenar equipes para atender a banda Capital Inicial e sertanejos como Daniel e Rio Negro e Solimões. “Todo mundo muito legal. Eu aparecia no local cinco dias antes do show e contratava pelo menos 15 peões pra realizar o serviço. A gente também fazia compras, decorava o camarim. Trabalhei com muitos artistas. Era freelance, né?”, declara.
Jessé atuou em Avaré, Itapetininga e Lençóis Paulistas, a serviço de grandes produtores de espetáculos como Marcos Mioto e Marcos Savian. “Sempre me pagaram certinho”, assegura o rapaz que não se esquece de quando achou no camarim uma bolsa preta com R$ 72 mil após um show em Avaré. “Estava chovendo muito naquela madrugada. Entrei lá pra fazer a limpeza e recolher as sobras de comida. Vi aquele monte de dinheiro e me deu até tremedeira. Em seguida, avisei a dupla Rio Negro e Solimões e eles passaram lá pra buscar. Meus companheiros queriam me matar. Me deram um valor lá e alguns agasalhos. Até se me dessem R$ 1 eu ficaria feliz. Não sou ganancioso”, revela com tranquilidade.
Lucrando R$ 4 mil por mês, Jessé gastava mais de um terço do que ganhava com bebidas. Sozinho, consumia uma garrafa de whisky por noite. Já sofrendo em decorrência de cólicas renais, quase morreu após uma convulsão. “No show do Fernando e Sorocaba tomei uns goles e dormi no ônibus. Como o palco era uma concha, deu um vento forte que quase derrubou tudo. O povo saiu me procurando. No outro dia cedo, achei whisky e continuei bebendo”, relata.
Como os problemas foram se agravando, os produtores avisaram que o rapaz não poderia continuar sendo negligente no trabalho. Então Jessé abandonou a função, já que era impossível se manter sóbrio com tantas bebidas ao alcance das mãos. “Dava pra ganhar bem, o problema era que eu não tinha controle sobre mim e estava perdendo minha filha por causa disso”, justifica.
Depois de dois anos em Paranavaí, onde também trabalhou para um advogado que o ajudou bastante, Jessé começou a ir para o campo colher laranjas e ensacá-las para revender atrás do Posto Panorama, na Rua Maria Anchieta de Morais. “Até hoje faço isso quando surge alguma oportunidade. Tenho um parceiro que me chama, daí dividimos as despesas. Mas, cara, vou te falar uma coisa. No meio dos laranjais é comum encontrar cobra, só que eu não tenho medo. Na verdade, elas que têm que ter medo de mim”, brinca rindo.
Atualmente, Jessé se alimenta apenas uma vez por dia – no horário de almoço. Quando chove acaba passando fome por não ter coragem de pedir esmola. Além de catador e vendedor de laranjas, entrega panfletos e faz capina de terrenos. “Tenho enxada e rastelo. Sou pau pra toda obra. Queria ter um carrinho pra vender frutas como laranja, abacaxi, mexerica e limão. São mais fáceis de se comercializar”, comenta.
Em Paranavaí, Jessé conheceu o casal Dirce e Ailton que o ajudou conseguindo uma vaga em uma clínica para alcoólatras em Nova Aliança do Ivaí, administrada pelo frei Ivani Ribeiro Pinheiro. Após quase um mês de internamento, um dia o rapaz foi enviado a Paranavaí para passar por uma reavaliação médica ao lado da delegacia. “A perua me levou lá, daí o médico disse que eu estava com sérios problemas no fígado e na próstata. Fiquei nervoso e fugi. Saíram atrás de mim e me acharam na rua. Eu disse que não iria voltar porque não consigo ficar confinado. Apesar disso, sou muito grato a dona Dirce, uma pessoa muito boa que me ajudou demais”, admite.
Depois de algum tempo, Jessé tira do bolso várias cartelas de diazepam. Segundo o rapaz, é impossível dormir sem consumir o sedativo. Junto, tomava clonazepam (rivotril), mas interrompeu o uso porque o calmante tarja preta agravou os problemas no seu fígado. “Já perdi 18 quilos. Falam que tenho um tumor que dificulta a digestão, por isso vomito todo dia. Cara, hoje estou numa situação muito difícil”, reconhece levando as mãos à barriga saliente que contrasta com a magreza e o aspecto anêmico.
Durante a entrevista, sinto cheiro intenso de álcool e não resisto em perguntar se Jessé continua bebendo. O rapaz diz que consome apenas um copo cheio de vinho barato após o almoço. Levando em conta que começamos a conversar depois das 16h é difícil acreditar na resposta. “Tá certo! Vou falar a verdade. Quando fico nervoso tomo até um litro brincando. Só que juro que comecei a beber menos tem dois anos”, alega.
Jessé Piedade define a própria vida como complicada. Andando sempre sozinho, muitas vezes sai às ruas sem objetivo ou destino. Quando não consegue nenhum “bico” ou se cansa de perambular, fica na rodoviária sentado em um banco assistindo TV ou conversando com os amigos taxistas. “Sempre vivi sozinho. Eu, Deus e mais ninguém. Só que rodo essa cidade toda numa boa, conheço tudo. Tem dia que vou daqui até o Sumaré pra ver se tem carga pra carregar em algum posto. Agora estou morando na rua, cada dia durmo num lugar diferente”, enfatiza. Com a experiência de quem viveu na chácara de uma tia em São Paulo, o rapaz faz planos: “Ainda quero ter um sítio pra plantar hortaliças e vendê-las na cidade. Também sonho em estudar direito.”
Enquanto os desejos não se realizam, Jessé se orgulha de ações em benefício dos vizinhos, quando vivia em um barraco improvisado em um terreno baldio na Rua Miljutin Cogej, perto do Clube dos Bancários. “Teve um rapaz que invadiu a casa de uma vizinha e levou a bicicleta. Corri atrás dele e o derrubei. Ele fugiu sem a ‘magrela’. Também impedi o furto de materiais de construção na casa de outro vizinho que estava fazendo uma reforma”, narra e sorri quando as histórias são confirmadas pelo guarda do clube.
Quem vê Jessé na rua, sempre comunicativo e brincalhão, dificilmente percebe que ele sofre de depressão. Lidando com a doença há mais de cinco anos, o rapaz confessa que às vezes sente muita raiva. “Lembro de bastante gente que se aproximou de mim quando eu estava bem. Aí desapareceram quando fiquei mal. Tem dia que só penso em dar um tiro na minha própria cabeça”, desabafa.
Casal ajudou Jessé a enfrentar o alcoolismo
Dirce e o marido Ailton conheceram Jessé Piedade na Rodoviária de Paranavaí, na Avenida Heitor de Alencar Furtado, enquanto aguardavam o ônibus. À época, o rapaz explicou seu desejo de se livrar do alcoolismo.
“Ele estava em um estado de desamparo total. Então nos responsabilizamos em ajudar, inclusive conseguimos um lar temporário para o Billy, seu cachorro. Internamos o Jessé em Nova Aliança do Ivaí. Quando saiu, vimos que ele precisava de um lugar decente pra ficar e o colocamos em uma pensão. Só não ajudamos mais porque não tínhamos condições”, relata Dirce que qualifica Jessé como uma pessoa inteligente, educada e tranquila.
O rapaz só não ficou mais tempo internado porque a necessidade de liberdade “falou mais alto” do que a vontade de se tratar. “Até hoje acompanhamos a realidade do Jessé. Torcemos muito por ele”, garante Dirce que não vela as esperanças de vê-lo saudável.
Um artesão por acaso
Um dia, Jessé Piedade teve um sonho com uma cobra e quando acordou decidiu comprar linha de crochê, agulha e tecido pra criar uma, mesmo sem jamais ter costurado coisa alguma. “Encanei, mas a Sogra [nome da cobra] não ficou muito boa. Agora vou dar uma caprichada e fazer uma Anaconda”, relata rindo, acrescentando que a cabeça do animal foi pintada para proporcionar mais realismo. A princípio, a intenção era fazer uma cobra de 12 metros.
No entanto, Jessé achou que seria impossível circular com uma réplica tão grande. “Muita gente ficou com medo quando viu de longe essa que fiz. Teve criança correndo, chorando e pedindo pra tirar foto. Quando saio sem a cobra, até os mais velhos perguntam o que fiz com ela”, conta. Depois da primeira criação, o rapaz já recebeu um pedido para confeccionar uma cascavel. “Ela vai ter um guizo de verdade, de sete anos. A senhora que encomendou quer que eu o coloque. Ela perguntou quanto cobro pelo serviço e eu disse que faço de graça”, confidencia.
“Hoje eu tô com saudade do Billy”
“Hoje eu tô com saudade do Billy. Não acho mais ele”, diz o andarilho Jessé com um olhar baixo e uma expressão de tristeza, se referindo ao seu melhor amigo, um cãozinho mestiço de dois anos que ele tirou da sarjeta da Rodoviária de Paranavaí quando o animalzinho tinha dois meses. “Um guarda lá deu dois choques na boca do bichinho com um arma. Ele quase morreu. Então cuidei dele e a gente se apegou um ao outro”, narra.
A convivência entre os dois era tão harmoniosa que Billy acordava Jessé todos os dias às 5h30 para trabalhar. “Ele tomava o café dele numa padaria do Jardim Simone e voltava pra ver se eu tinha me levantado. Se eu não estivesse em pé, ele latia até eu pular do colchão”, lembra. Bem querido pela população do bairro, Billy ganhava café da manhã todos os dias e atendimento quinzenal em um pet shop. “Um dia eu fui lá e falei: ‘Engraçado, né? Vocês dão tudo pro cachorro, mas ninguém faz nada pro pai dele aqui’”, revela Jessé às gargalhadas.
O andarilho e o cãozinho não se afastavam nem quando o andarilho precisava ir ao mercado. Billy sempre esperava Jessé do lado de fora, deitado em um tapete. “Um dia ele sumiu e fiquei tão nervoso que me deu um febrão. Algum tempo depois, fui ao Ginásio Lacerdinha ver um jogo e de longe vi o Billy. Daí gritei: ‘Billy, Billy! Filho da puta!’ E ele se esticou todo e veio correndo pra cima de mim, berrando e rolando no chão”, destaca.
O reencontro durou pouco tempo. Billy sumiu no mesmo dia e reapareceu num domingo na feira livre da Rua Pará. Enquanto caminhava próximo a uma banca de alface, Jessé foi surpreendido por um salto de Billy. “No dia seguinte, saí pra vender laranja e ele sumiu outra vez. Me contaram que um motorista de um Corsa sedan prata pegou ele. Mas tenho certeza que quando eu sair pra entregar panfleto ele vai voltar na hora quando sentir meu cheiro”, acredita.
“Fiquei 20 dias sozinho no mato quando meu pai morreu”
Ao falar do passado, as melhores lembranças de Jessé Piedade remetem à infância, principalmente o relacionamento com o pai e o avô. “Meu avô era uma pessoa fantástica. Fiz datilografia com 11 anos e ele me deu uma máquina. Era daquela Olivetti pequena. Depois me deu bicicleta, mobilete. O dia mais feliz da minha vida foi quando pedi pra ir ao Play Center. Eles disseram não e fiquei chateado, mas depois me levaram. Isso foi em 1987. Só que infelizmente meu avô morreu por causa de um [acidente vascular cerebral] AVC”, informa.
Hoje, de todos os familiares, Jessé tem contato esporádico apenas com a filha e a irmã. Seu pai, que era pastor, faleceu minutos após um culto, quando estava dirigindo um automóvel, aguardando o sinal verde do semáforo. “Teve um infarto fulminante. Foi tão impactante que não me deixaram ver. Cara, tenho uma saudade do meu pai que você nem imagina”, confessa com olhos marejados. Quando recebeu a notícia, o rapaz sumiu de casa e ficou 20 dias sozinho, dormindo em barraca numa área de mata fechada.
“Mais tarde, minha mãe casou com uma pessoa que não gostava de mim e não tenho notícias dela há mais de dez anos”, assinala e acrescenta que apesar da distância tem um bom relacionamento com a filha Raíne Vitória, que mora em São Paulo, e com a ex-mulher. “Nos damos muito bem, só que minha filha briga muito comigo. Quer que eu mude de vida o mais rápido possível. Ela fez 15 anos no último dia 15 de novembro”, pontua sorridente.
Atire a primeira pedra quem nunca cambaleou ao peso dos segundos que se acumulam sobre as nossas costas!
antoniopneto
23 Nov 15 at 4:51 pm
[…] Leiam a história de Jessé no link abaixo: https://davidarioch.com/2015/11/23/jesse-um-homem-motivado-pela-simplicidade […]
Jessé Piedade recupera seu cão Billy | David Arioch - Jornalismo Cultural
25 Nov 15 at 9:39 pm
[…] https://davidarioch.com/2015/11/23/jesse-um-homem-motivado-pela-simplicidade […]
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30 Dec 15 at 7:00 pm