O destino de Dora
Um dia, não suportou a pressão e caiu desmaiada no piso gelado da sala de trabalho
Eu e Dora nos conhecemos no início de 2008, após o falecimento de seus pais em um acidente na BR-376. Ela tinha 23 anos e trabalhava em uma dessas centrais de teleatendimento há três anos. Após a tragédia, em vez de se preocuparem com a moça, todos os familiares se afastaram. Na mesma época, fui demitido de supetão do jornal porque a editoria em que eu trabalhava foi extinta logo após o editor se demitir.
Mas já fazia um bom tempo que eu e Dora nos encontrávamos para conversar, divagar e relatar planos. Inspirado na obra “Dublinenses”, de James Joyce, o meu era usar o dinheiro da demissão para viajar pela Irlanda. Para ser mais preciso, assistir shows da banda de post-rock God Is An Astronaut e anotar em um caderno tudo que eu via de interessante sobre o comportamento humano no Velho Mundo e sua relação com o tempo e o ambiente. Não queria trabalhar, somente vagar até o dinheiro acabar.
“Quero me distanciar para ter a chance de renascer. O ser humano precisa mudar de tempo em tempo senão pode enlouquecer ou se tornar algo até pior – um sujeito resignado”, comentei com Dora que sorriu enquanto batia levemente as pontas das unhas purpúreas sobre a mesa maciça e rústica do bar. Ela se calou por alguns instantes, observou o céu estrelado, apontou a imensa lua com uma de suas delicadas mãos, abaixou os olhos amendoados, os levantou novamente e disse: “Cara, eu tenho leucemia…”
Fiquei sem reação. E acho que nada que saísse de minha boca naquele momento a confortaria. Então simplesmente recobrei minha expressão serena, fixei meus olhos nos olhos dela e dei cinco toquinhos em sua mão esquerda que repousava sobre a mesa. Ela entendeu e sorriu, sem também dizer palavra. Percebi que Dora não queria conversar sobre a doença, somente compartilhar com alguém uma revelação que não teve coragem de contar a mais ninguém.
Mais tarde, a levei até sua casa e fui embora pensando em como sua situação era delicada. Eu que já tinha perdido meu pai para o câncer em 1997, nunca mais consegui encarar a doença como algo menos do que implacável. Ela usurpa do ser humano muito mais do que a própria vida – aniquila sua dignidade. É a reafirmação de nossas fraquezas, do fim, da efemeridade.
Nos encontramos por mais dois meses, até que um dia, conversando pelo celular, ela sugeriu que não nos víssemos mais. Acabei respeitando sua decisão, compreendendo a delicadeza da situação. Ela já não ligava mais a câmera durante as conversas na internet. Também ocultava a foto do perfil. A questionei uma vez sobre isso e me arrependi. Eu já não a via mais nem por acaso. Talvez ela tivesse tomado a decisão de sair de casa somente a trabalho.
Ainda assim, sei que teria me sentido o mais mesquinho dos homens se partisse para minha jornada errante joicyana. Desisti da viagem para a Irlanda e comecei a escrever sobre Dora. Ainda conversávamos com bastante frequência e pedi que me relatasse sua rotina. No trabalho, ela não contou a ninguém sobre o diagnóstico da doença e continuou vivendo como se não tivesse nenhum problema de saúde. Provavelmente eu era a única pessoa que sabia da leucemia. Olhar para mim talvez fosse o atestado da soma de suas fragilidades.
Nunca a questionei se ela se arrependeu de ter me contado sobre a doença, mas comecei a perceber que se sentia mais vulnerável diante de mim. No celular, sua voz doce se amofinava cada vez mais, combalida pela constante contradança de emoções. Às vezes, aflita e aturdida, me ligava de madrugada. Eu mal ouvia sua respiração ofegante e ela desligava arrependida. Sua sensibilidade se acentuava a cada dia – à flor da pele.
No trabalho, não havia trégua e ela não queria de jeito nenhum assumir publicamente a leucemia. Os clientes que ligavam para a central de atendimento se queixando dos serviços oferecidos, pouco se importavam com a vida ou o estado emocional de quem estava do outro lado da linha. “Você é retardada, minha filha? Sua jumenta! Quero o meu dinheiro de volta! Não vou pagar por um serviço que não usei!”, gritou um homem, afirmando que era juiz e prometeu fazer o possível para vê-la demitida, caso seu problema não fosse resolvido.
As ofensas diárias dos queixosos se intensificavam cada vez mais. Num período de três horas, Dora era agredida verbalmente por até 20 clientes. Insatisfeitos, descontavam na moça a cólera em decorrência de problemas pessoais, profissionais e falhas que estavam muito além de sua função. “Escute aqui, querida! Sou médica, está me ouvindo? Estudei muito pra chegar onde estou e não vai ser uma qualquerzinha do teleatendimento, um trabalhinho sujo desse, pra gente burra e desqualificada, que vai tirar vantagem de mim!”, esbravejou uma mulher que disse ser parente de um deputado.
Um dia, Dora não suportou a pressão e caiu desmaiada no piso gelado da sala de trabalho. Estava pálida, com os lábios arroxeados e suava frio. Tirou a tarde de folga e foi para casa. Entrou no quarto, sentou na cama e observou o próprio reflexo no espelho oblongo. Não conseguia sentir-se bonita como antes e começou a chorar, assistindo as lágrimas percorrendo as covinhas transformadas em fendas após a perda acentuada de peso. Lá se foram dez quilos, seus cabelos perdiam volume rapidamente, e quase ninguém sabia o que estava acontecendo com Dora – embora corressem boatos, muito maldosos.
“Ela era tão linda! Que corpo que ela tinha, hein? Lembra das covinhas? Um charme! Será que sofre de anorexia nervosa? Um desperdício! Não tem mais coxas, bunda…nada!”, comentou seu chefe com um colega de trabalho, sem notar a presença de Dora que ouviu tudo quando estava indo ao banheiro. Sentada sobre o vaso, Dora levou as mãos ao rosto. Se esforçou para chorar, só que não restavam lágrimas. Estava esgotada e sentia-se constantemente desidratada, mesmo se empenhando em beber bastante água.
Inclinou o corpo para frente e pediu, com voz diminuta e vacilante, que Deus a levasse o mais rápido possível se o seu destino fosse a morte. Para ela, nada superava a dor causada pela ignorância e insensibilidade humana. Sair de casa se tornou um exercício tortuoso de enfrentamento das piores adversidades.
Até mesmo na rua, desconhecidos a olhavam como se não estivessem diante de um ser humano, mas sim de algo diferente, inominado. “Mãe, por que aquela moça é tão magra?”, perguntou uma garotinha de dez anos. “Sei lá, filha! Pela cara dela, deve tá com Aids”, respondeu a mulher instantaneamente, crente de que a distância era o suficiente para impedir que ela ouvisse a resposta.
Dora pediu demissão do trabalho como operadora de teleatendimento antes de começar o tratamento de quimioterapia. Se fechou dentro de casa, sobrevivendo de economias e se comunicando com o mundo e as pessoas somente através da internet e do celular. Também abandonou o tratamento. Não saía mais nem para ir ao mercado.
Não conseguia distinguir dia e noite, principalmente quando passava muitas horas deitada na cama, dormindo ou olhando para o teto branco que ganhava formas incertas de acordo com o sentimento predominante. “Não vou mentir, Dora. A verdade é que você tem de seis meses a um ano de vida”, revelou o médico oncologista com subitânea naturalidade.
Se recusando a receber qualquer tipo de visita há meses, Dora decidiu aliviar a própria dor cometendo suicídio com chumbinho. Comprou o produto pela internet para não precisar sair de casa. Pagou frete por sedex e aguardou a chegada. Ouviu alguém batendo palmas, abriu a porta e pela primeira vez em mais de 50 dias sentiu o sol tocando seu rosto níveo. Era morno e lhe afagava as finas maçãs. O céu estava tão claro que ela observou com atenção uma revoada ruidosa e amorável de bem-te-vis.
Caminhou até o portão, pegou o pacote da mão do carteiro e antes de entrar em casa observou um cãozinho preto e silencioso, com poucos dias de vida e o umbiguinho pardo virado para cima. Foi abandonado ao lado do vaso bege de íris, o preferido de sua mãe. Dora se surpreendeu com a resistência do espécime que crescia vistoso e fúlgido apesar do abandono.
Assim que abriu o pacote, quebrou o lacre do chumbinho e foi até a cozinha buscar um copo de água, o telefone tocou. “É a senhora Dora? É aqui do laboratório. Estamos ligando para avisar que precisamos que venha aqui com urgência. Descobrimos erros graves nos seus exames. A senhora nunca teve leucemia, apenas anemia.”
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