David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

O sonho de Baruddin e o lamento de um pai

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Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda era vivo (Foto: Bogor Heritage)

Bogor quando Baruddin Jalisu ainda estava vivo (Foto: Bogor Heritage)

Em uma das pacíficas manifestações pela independência da Indonésia, Ahman Jalisu foi entregar arroz em um pequeno armazém de Bogor, na Província de Java. Quando ouviu sons de tiros e gritos, abandonou a bicicleta com a carretinha de madeira onde transportava quase cem quilos do produto e correu a pé, abespinhado, gritando o nome do filho.

Percorreu 500 metros e caiu de joelhos ao ver dezenas de pessoas fechando portas e janelas enquanto homens fardados empilhavam cadáveres sobre uma pira. Ao olhar para o outro lado da rua, Jalisu viu o filho deitado sobre uma poça de sangue, com os lábios ao chão.

Os olhos de Ahman fumegaram. O sofrimento o sobrepujou de forma tão truculenta que pensou que o tempo tivesse regelado, transfigurando o efêmero em infinito. Sem se importar com a própria vida, correu até Baruddin. Os cabelos de azeviche do rapaz ocultavam-lhe o rosto de traços singelos.

Ahman o tomou nos braços e correu sem olhar para os lados, pensando apenas em levar o filho escanifrado embora. Parou para resfolegar no armazém onde abandonou a bicicleta. Despejou o arroz no chão, ao alcance de uma turba de famintos, colocou o filho dentro da carretinha e pedalou 15 quilômetros até chegar em casa.

Levou Baruddin ao banheiro e deu-lhe banho. Enquanto o asseava, exigiu que nunca mais agisse de forma tão passional. Jalisu deslizou a mão direita pelos projéteis das submetralhadoras que, abrigados no corpo do rapaz, deixaram três orifícios no tórax, dois na nuca e um nas costas. Ahman observou os furos como se fossem ferimentos provocados por mamonas; comum quando o filho não tinha mais de 10 anos.

Naquele tempo era a principal munição das brincadeiras de estilingue. Com os cabelos de azeviche tapando parcialmente os olhos, Baruddin relatava ao pai que estava treinando para lutar pela independência dos indonésios quando se tornasse adulto. Descalço, corria quilômetros até a residência do amigo Segu.

Juntos, confeccionavam estilingues com forquilhas de ferro. As reminiscências deixaram Jalisu em prantos. Quando percebeu a água da banheira rubicunda, advertiu o filho sobre a importância dele não entrar sujo na banheira. “Não faça assim, ujang [filhinho]… Você bem poderia ter se limpado no poço. É tão pertinho. É claro que depois eu deixaria você entrar dentro de casa e faria o seu jantar. Só quero seu bem. Sempre foi assim”, declarou Ahman balbuciando, sem notar as próprias lágrimas formando pequena poça em seu colo.

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Baruddin foi assassinado lutando pela independência da Indonésia (Foto: Bogor Heritage)

Após o banho, Jalisu vestiu o filho com as melhores roupas do pequeno roupeiro de teca seca. Pegou uma camisa e uma calça de cores claras que estavam dentro de um saco plástico transparente, o vestiu e o levou até a cozinha. Enquanto preparava rujak e bananas assadas ao molho de soja, fez carícias no rosto acobreado do caçula desacordado – com a nuca inclinada sobre o espaldar.

Ahman pediu para o filho sentar-se corretamente. “Por favor, Baruddin, se ajeite. Não quero que tenha graves problemas na coluna”, justificou. Jalisu passou a maior parte da tarde dizendo a Baruddin que o ajudaria a realizar seu sonho – construir um ônibus. O rapaz se dedicava às pequenas invenções. Nem as dificuldades econômicas o impeliam a desistir. Era comum vê-lo nas ruas de Bogor comercializando os pequenos inventos que carregava na carretinha puxada pela bicicleta.

Após sete dias convivendo com o filho morto, Jalisu inebriou-se em recordações, já impossibilitado de distinguir pretérito e presente. Para ele, Baruddin era a criança que escalava árvores até o topo, na tentativa de mensurar o tamanho de seu mundo diminuto, que o fazia se sentir como formiga-faraó. Ahman era o único que não se incomodava com o odor do filho.

O mau cheiro exalado pelo corpo foi percebido pelos vizinhos. Recomendaram que desfizesse do cadáver, enterrando-o. “Você vai acabar chamando a atenção da polícia. Pense bem!”, sugeriu um amigo. Ainda assim discutiu com todos e os expulsou de sua propriedade. Só restabeleceu a sanidade no entardecer do décimo dia.

Enleado, pegou o filho escanzelado nos braços com o mesmo cuidado de quando era um bebê. O embalou e cantou “Rasa Sayang”, a canção preferida de Baruddin na infância. Depois o levou até o fundo da residência e sentou sobre uma cadeira de balanço acoplada com um sistema de ventilação movido à casca de batata-doce – invenção do filho.

Pressionando a cabeça de Baruddin contra o peito, Jalisu chorou, umedecendo os cabelos do rapaz. Quando sentiu a fragilidade do corpo sem vida recostado ao seu, berrou até ficar sem voz. Perguntou a Deus se seria possível transferir todos os seus órgãos vitais para o filho. A resposta não veio – não da forma esperada, somente uma alígera brisa com olência de crisântemo e um silêncio ensurdecedor que dilatou seus sentidos à exaustão.

Uma hora mais tarde, Ahman buscou uma faca na cozinha e extraiu com diligência todas as balas alojadas no corpo do filho. Aparou as pontas dos cabelos, cortou as unhas, fez a barba do rapaz e o enterrou nu a 900 metros da casa, sobre folhas de erva-cidreira – a preferida do jovem Jalisu. Preocupado em ter uma recaída e, quem sabe, resolver exumar o filho, não construiu lápide nem deixou qualquer identificação de que no local o corpo de Baruddin repousava.

Temia que pelo fato do rapaz ter sido um insurgente poderiam levar seus restos mortais para serem incinerados em uma fornalha na Província de Jambi. Com o passar dos anos, esqueceu o número de passos até o local onde Baruddin foi enterrado. Apesar disso, os restos mortais continuaram na chácara em que Ahman Jalisu sempre morou.

Para se sentir mais próximo do filho, estudou o projeto criado por Baruddin e construiu em dezembro de 1941 um ônibus de proporções homéricas que até hoje circula pelas ruas de Bogor, transportando sem qualquer custo famílias pobres que vivem nas vilas nas imediações da chácara da família.

“Esses dias, quando eu estava dirigindo, vi Baruddin sentado no último banco, onde o sol deitava candente por trás do vidro traseiro. Não havia mais ninguém além de nós dois. Ele não chorava, não sentia dor nem falava. Apenas sorria, trazendo ao meu coração uma fagulha de alegria. Naquela noite, dormi bem pela primeira vez em mais de 20 anos. Meu filho tinha voltado pra casa”, escreveu Ahman Jalisu em um diário em 25 de novembro de 1963.

Curiosidade

Rujak ou rojak é um prato típico à base de abacaxi, batata-doce, manga, carambola, jicama, jambo, goiaba e tofu. Os ingredientes também podem variar dependendo da região e da tradição familiar.

Written by David Arioch

February 16th, 2016 at 12:52 am

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