Archive for March, 2016
Robin Williams e a geração anos 1980
Sobre cinema norte-americano, não posso falar por outras gerações, mas pelo menos a minha – dos anos 1980, consumiu muito do que foi produzido com a participação do ator estadunidense Robin Williams. Antes dele falecer em 11 de agosto de 2014, aos 63 anos, eu estava acompanhando o seu trabalho como o publicitário Simon Roberts na série de TV The Crazy Ones, da CBS, que estreou em 2013. Não tenho dúvida alguma de que o seu nome no cast ajudou a alavancar a popularidade da sitcom antes do lançamento.
Robin Williams se juntou aos grandes nomes do cinema estadunidense depois do filme Good Morning, Vietnam (Bom dia, Vietnã), de Barry Levinson, lançado em 1987. Como eu era pequeno, só fui saber quem era Adrian Cronauer, um de seus grandes papéis, na minha adolescência, embora eu já tivesse um vinil com a música tema do filme. A princípio, conheci o trabalho desse ator singular através de obras como Dead Poets Society (A Sociedade dos Poetas Mortos), The Fisher King (O Pescador de Ilusões), Hook, Mrs. Doubtfire (Uma Babá Quase Perfeita), Toys (A Revolta dos Brinquedos), Jumanji e Patch Adams, não exatamente nesta ordem.
Na infância, tive a oportunidade de assistir Hook no cinema à moda antiga, com direito a lanterninha e mais de mil poltronas. Claro, depois vieram muitos outros filmes de Williams. Sem favoritismos, destaco como os meus preferidos todos aqueles em que ele manifestou mais do que o seu potencial cênico – a sua própria humanidade e sensibilidade. Ficam as boas lembranças.
Incoerências políticas
Não vou citar nomes nem partidos, mas há alguns anos participei de uma reunião com lideranças políticas regionais, estaduais e nacionais. Tinha muita gente mesmo. Daí durante uma conversa um dos líderes de um partido olhou para o camarada ao lado e disse: “Você tá vendo esse cara aqui? Então, foi nele que tu votou. O que achou? Valeu a pena? Gostou?” Acanhado, o rapaz disse: “Agora eu sei quem é, parece ser boa pessoa sim!” Ou seja, o camarada votou em um candidato que não sabia quem era. E o mais preocupante é que ele não foi o único.
Vale-cultura, um pequeno investimento que pode fazer a diferença
Embora o valor do benefício seja pequeno, um ponto positivo é que ele é cumulativo
Criado em 2012 pelo Ministério da Cultura (Minc), o Vale-Cultura ainda é pouco difundido no interior do Brasil, principalmente em cidades de pequeno e médio porte. O maior obstáculo é que muitos empresários ainda desconhecem o funcionamento do benefício mensal de R$ 50 que pode ser concedido aos trabalhadores, e sem risco de oneração.
Embora o valor do benefício seja pequeno, um ponto positivo é que ele é cumulativo, o que é vantajoso caso o trabalhador opte por não retirar o Vale-Cultura mês a mês, já que o dinheiro pode ser usado não apenas na compra de ingressos para shows e espetáculos, mas também de CDs, DVDs, equipamentos musicais, artesanato e pagamento de cursos de artes, etc. O objetivo é fazer com que os trabalhadores tenham mais acesso à cultura.
Um benefício trabalhista nos moldes do auxílio-alimentação, o Vale-Cultura depende estritamente da adesão das empresas, já que elas são as responsáveis pela oferta. De acordo com o Ministério da Cultura, as empresas tributadas com base no lucro real têm o direito de deduzir do imposto de renda a maior parte do valor destinado ao Vale-Cultura. Sendo assim, cada empresa paga R$ 5 para que seus funcionários tenham direito aos R$ 50, dinheiro que pode ou não ser cobrado na folha de pagamento dos empregados. Os outros R$ 45 são descontados do IR.
Todas as empresas em situação de regularidade fiscal e que tenham empregados com vínculo empregatício formal podem se cadastrar no sistema. Após a adesão, os empresários asseguram o direito de receber incentivos especiais oferecidos pelo Governo Federal. Segundo o Ministério da Cultura, o investimento é uma forma de ajudar a fomentar a produção cultural.
Os R$ 50 do Vale-Cultura são entregues aos trabalhadores através de um cartão magnético pré-pago aceito em 40 mil empresas do Brasil, inclusive lojas virtuais. Outra informação interessante e pouco divulgada é que as prefeituras também podem aderir ao Vale-Cultura, usando como referência o modelo do programa e então aprovando uma legislação para regulamentá-lo.
O Minc defende que o Vale-Cultura pode fazer a diferença na vida de muitos trabalhadores que ainda não têm condições de pagar por produtos e serviços culturais. Ampliando esse consumo, todos se beneficiam. A empresa por oferecer novas oportunidades aos seus funcionários, os valorizando mais; o trabalhador por se sentir recompensado no ambiente de trabalho; e os artistas e outros profissionais da área cultural por conquistarem mais público, consumidores e alunos.
É importante lembrar que empresas interessadas em receber o Vale-Cultura como forma de pagamento podem se cadastrar como recebedoras no site do Ministério da Cultura, assim incentivando a produção e a circulação de cultura no Brasil.
Como cadastrar uma empresa no Sistema do Vale-Cultura
Acesse: http://vale.cultura.gov.br, clique no link “Cadastrar Beneficiária” e preencha o formulário.
Vittorio de Sica e o neorrealismo italiano
Me pergunto o que seria do neorrealismo italiano se não tivéssemos artistas como o cineasta Vittorio de Sica. Incrível como o período que antecede uma guerra e outro que marca o seu fim se tornaram emblemáticos de duas das fases mais importantes do cinema mundial. O que o expressionismo alemão fez pelo mundo antes e depois da Primeira Guerra Mundial é tão representativo quanto a beleza e as lições do neorrealismo italiano após a Segunda Guerra Mundial, face a um velho mundo castigado.
Sem dúvida, guerras são trágicas, mas é sempre surpreendente ver o que o homem é capaz de fazer antes e depois delas para referenciar ou reverenciar a vida. A mim, nesse tipo de cinema, parece que há sempre uma revitalização da própria humanidade, uma necessidade de identificação que corrobora velhos e novos preceitos e valores.
A arte fílmica se universaliza toda vez que um ser humano mergulha no universo do autor, extraindo para si nem que seja uma pequena passagem de segundos. É no cinema de arte que o homem dialoga consigo mesmo e com os seus em um nível que transcende axiomas, etnias, línguas e até ideologias.
Está aí uma sequência de fragmentos pictóricos de Ladri di Biciclette (Ladrões de Bibicleta), de Vittorio de Sica, lançado em 1948. Na minha modesta opinião e apreciação, um dos filmes mais belos de todos os tempos:
A vida de Jero ou fado de um jovem ladrão
“O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano”
Na semana passada, fui até a Vila Alta, onde conversei com Jero, garoto alto e magro de 16 anos. Sentado no meio-fio, me convidou para sentar numa cadeira com corda de nylon. Empolgado e sorridente, contou que conseguiu um “bico” que o fez sentir-se útil pela primeira vez em muito tempo. “Tô recebendo pra ajudar na limpeza e organização de uma casa daqui da vila mesmo. Já rodei o centro da cidade em busca de trabalho, mas a resposta é sempre a mesma. Acho que eles têm vagas sim, só que não pra menor de idade”, lamenta.
De bermuda, chinelos e sem camiseta, Jero diz pra esperar um pouco que ele vai buscar “um café”. Logo retorna com uma garrafa térmica e uma caneca plástica. “É pra você! Coloca aí!”, diz naturalmente, sem cerimônia. Não costumo beber café, mas tomo um gole em deferência. Embora muito jovem, Jero tem algumas cicatrizes no corpo que revelam conflitos e violência. É como se sua pele contasse sua própria história. Criado nas ruas, em meio à pobreza, foi preso pela primeira vez há dois anos, depois de roubar um “radinho”, como chama os smartphones.
“Já peguei um lá pelos lados da Praça dos Pioneiros. Era só dar bobeira que eu passava na mão leve”, conta. Por causa de pequenos delitos, Jero ficou preso quatro vezes. Três vezes foi encaminhado para o Centro de Socioeducação (Cense) de Paranavaí. Na quarta, o enviaram para o Cense de Cascavel, no Oeste do Paraná. “Gostei mais de lá porque a galera é mais humilde. Quem tá preso lá é mais de boa. Não tem tanta rivalidade como no Cense daqui. Aqui um fica querendo ferrar o outro. É briga de gangue, mano”, comenta esfregando uma das mãos pelos cabelos descoloridos.
Durante a conversa, em cada frase de Jero há sempre alguma palavra que nunca ouvi. O seu vocabulário é tão incomum que até mesmo quem é da Vila Alta tem dificuldade de entender – a não ser os mais jovens que passam o dia nas ruas. A linguagem de Jero é uma mixórdia de referências popularizadas na periferia, onde neologismos e regionalismos se misturam o tempo todo. Nas vezes em que foi preso por furto e roubo, o garoto não chegou a confrontar a vítima ou agredi-la no ato do crime. Não tem o costume de usar armas. “Só que é sujo isso aí. Não vale a pena. E lá na cadeia você sempre encontra um inimigo. É ruim demais ficar preso”, afirma enquanto acende um cigarro paraguaio e dá uma tragada, assoprando fumaça com o esmero de uma criança desenhando paisagem com o dedo no chão de terra.
Além do “careta”, Jero também gosta de fumar maconha. Não todos os dias, mas ainda assim com certa regularidade. Relata que conhece todo tipo de droga, só que nunca se interessou em usar nada mais “pesado”. “Crack é pra quem quer virar escravo ou zumbi. Você cai numa noia tão zuada que esquece até quem você é. Deixa o cara louco. Quem vende crack também se lasca porque tem que aguentar gente colando no seu barraco até de madrugada mendigando pedra. Mano, tu acaba com a vida de muita gente e não ganha quase nada. O dinheiro é dos graúdos”, comenta.
Na terceira vez em que foi preso, Jero ficou sabendo que outro adolescente com quem tinha uma querela de longa data também estava no Cense. “O maluco me colocou na mira de um traficante, falando que eu estava de olho na boca de fumo do mano. Armou pra mim. Queria me ferrar. Inventou mais umas histórias”, garante. Crente de que mais cedo ou mais tarde algo aconteceria, Jero se antecipou.
Um dia pegou a própria escova de dente, quebrou a cabeça e começou a afiná-la, deixando-a pontiaguda. A escondeu dentro da bermuda, até que numa ocasião, após a aula, caminhou a passos leves até o seu desafeto. Enraivecido, gritou o nome do inimigo e ocultou sob os dedos o estoque feito com a escova de dentes. Quando o garoto se aproximou, ele o golpeou quatro vezes na barriga. “Ou eu dava nele ou ele dava em mim. Preferi sair na frente. A intenção não era matar. Fiz isso pra mostrar que não tenho medo dele. O papo é um só – se vier, vai levar!”, justifica, baseando-se em um senso de justiça particularista.
O sangue descia e Jero só assistia, até que a vítima foi socorrida e encaminhada à Santa Casa de Paranavaí com vários ferimentos, embora nenhum grave. Depois do ataque, Jero foi transferido para o Cense de Cascavel, onde cumpriu pena. Quando o soltaram, retornou a Paranavaí e decidiu se afastar do crime, opção que pouco pesou na consciência de seus inimigos. “Tem gente querendo me matar ainda. Sei disso”, admite com sorriso dúbio e plangente. De temperamento volátil, Jero foi convencido por alguns “amigos” a participar do furto de um “radinho” e de uma bicicleta.
Na última segunda-feira, fiquei sabendo que ele foi preso novamente. Minha intenção era fazer mais uma entrevista e tirar algumas fotos, mesmo que velando seu rosto. Não deu tempo. Há quem acredite que há males que vêm para o bem. No dia em que Jero retornou à prisão, um detento ganhou a liberdade – um traficante que jurou que o mataria no dia em que fosse solto. Na Vila Alta dizem que Jero se envolveu com a ex-namorada do sujeito. Por enquanto sua salvação está assegurada no ambiente que até então mais desprezava – a cadeia.
Saiba Mais
Jero é um apelido fictício para preservar a identidade do entrevistado.
A Vila Alta fica na periferia de Paranavaí, Noroeste do Paraná.
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The Lost Boys e Cry Little Sister
Tenho certeza que o filme The Lost Boys (Os Garotos Perdidos), de 1987, do cineasta Joel Schumacher, fez parte da infância e adolescência de muita gente. Me recordo quando conheci o clássico na minha infância, por volta de 1992, trazendo um elenco composto por Corey Feldman, Jami Gertz, Corey Haim, Edward Herrmann, Barnard Hughes, Jason Patric, Kiefer Sutherland e Dianne Wiest.
À época, não fiquei impressionado apenas com a história e com o impacto que ela teve sobre mim, mas também com a trilha sonora. Muita gente começou a se interessar pelo gothic rock, que surgiu na Inglaterra no final dos anos 1970, só após o lançamento mundial de The Lost Boys. A música mais icônica do filme e que ajudou a popularizar o gênero é a atemporal Cry Little Sister, de Gerard McMann e Michael Mainieri, hoje dois desconhecidos das novas gerações.
Para quem curte a chamada literatura maldita de Poe, Rimbaud, Baudelaire e Verlaine, não há gênero mais representativo. Se bem que na década passada a temática renasceu na França com ex-integrantes de bandas de black metal em uma fusão de shoegaze, dark music e post-metal. É interessante ver como tudo ressurge com o tempo, independente de roupagens e transformações. Outro exemplo é o tema vampirismo abordado em The Lost Boys. Após 20 anos, vimos novamente essa efervescência. Taí um filme que merece ser assistido e um clássico que deve ser ouvido até o fim dos tempos.
Visita aos mortos
Como o cemitério poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos?
Na infância, eu gostava de ir ao cemitério. Não o visitava com tanta frequência, mas a experiência me agradava bastante porque me dava a impressão de que eu estava entrando em outro mundo, onde os vivos reencontram os mortos. Não o considerava um lugar sombrio. Muito pelo contrário. Como poderia ser nefasto se plantas cresciam ao redor dos túmulos? Se cães e gatos frequentavam o lugar?
Não era difícil entender o motivo. A calmaria, o silêncio preeminente na maior parte dos dias, permitia que os seres mais atentos ouvissem os sons da terra, a harmonia e a dissonância das espécies em suas criteriosas relações com a natureza. Ainda me lembro de um casal de sabiá-do-campo que cantava à curta distância do túmulo da minha bisavó, a poucos passos da entrada da necrópole.
O gorjeio suave acompanhava a brisa solene que chegava como um alento. Se projetava do alto de uma árvore, onde algodão, grama e gravetos secos constituíam um ninho em forma de cesta. “Hum…ali vai nascer alguém”, pensei. De repente, um sabiá encostou ao lado do muro branco, renovado com cal, e começou a esgravatar o solo a procura de alimentos. Me observava e ciscava sem pressa, talvez confiante em sua argúcia, já que estava em casa, onde o estranho era eu.
Me afastei e caminhei à esquerda para ler as inscrições e os epitáfios escritos de improviso no concreto ou gravados nas placas de bronze. “Por que os túmulos são tão diferentes? Não poderiam ser iguais?”, perguntei aos meus pais. Me explicaram que os maiores normalmente pertencem aos ricos. Há quem acredite que quanto maior o jazigo, maior o nível de importância do falecido. E baseado nessa crença faraônica supõe-se que até mesmo os estranhos serão atraídos pelos mausoléus. A imponência sempre ajudou a destacá-los dentre os demais, como num floreio que ingenuamente romantiza o inevitável destino de todos os seres.
Em minhas reflexões, túmulos, por mais distintos que fossem, lembravam embalagens de produtos ou pacotes de presentes. Quero dizer, por mais suntuosa que fosse uma sepultura, a verdade é que resguardava a mesma matéria de qualquer outra. Alguns mausoléus eu via como fortalezas, criadas para proteger ou velar a frágil efemeridade humana. Portas, janelas e grandes argolas me faziam suspeitar que talvez os familiares acreditassem na possibilidade de um retorno do querido ente falecido. “Será que eles pensam que o morto um dia vai levantar e sair pela porta?”, questionei.
Observando, aprendi também que às vezes um sepulcro homérico pode revelar uma forma de carinho, tornada material, ou tardia compensação ao morto por algum desentendimento ou parca participação em sua vida. Ouvi histórias de pessoas que movidas por remorso flagelante gastaram pequenas fortunas nas construções de túmulos. Algumas obras custaram mais caro do que uma casa. Os materiais foram trazidos de outras regiões do Brasil e de outros países, assim garantindo à catacumba um privilégio sui generis.
“Você ficou sabendo que a família do Orlando contratou um especialista em arte maneirista para criar o projeto da sepultura?”, ouvi numa manhã. Talvez houvesse uma intrínseca relação com o memorial, o destempero humano diante da finitude, num exercício de perpetuação simbólica. “Vamos criar algo para que ele nunca seja esquecido. Para que séculos após sua morte ainda seja lembrado. Mesmo que não reste nenhum de nós, outros, mesmo que desconhecidos, estarão aqui para visitá-lo”, talvez pensem alguns, se negando a crer que a morte dos nossos sempre muda algo dentro de nós, mas o mundo há de continuar seguindo seu curso natural, ratificando nossa pequenez, independente da nossa dor.
Olhando ao meu redor no cemitério, e vendo tanto sortimento em cores, tipos, tamanhos e adornos, lembrei de uma aula do professor Babeto em que ele nos mostrou fotos de uma necrópole na França, onde a morte reafirma a indistinção dos seres humanos. Sobre o gramado verdejante havia apenas cruzes brancas de concreto. Tudo parecia tão uniforme, harmonioso, justo e coerente. Afinal, não há mais nada a ser provado quando a vida se esvai, já que somos o que fazemos em vida.
Talvez alguns sejam passionais demais para aceitar que os seus também foram vencidos pelo passamento, como tantos outros. Assim, não duvido que para alguns o jazigo passa a ser encarado como uma morada, onde o fim há de ser postergado até o momento que o último pedaço de tijolo ou de mármore estiver envolvendo o ataúde.
De qualquer modo, nunca me senti tão intrigado por mausoléus como me senti por túmulos velhos, desamparados, relegados ao ostracismo – que raramente recebem visitas de familiares e amigos. Curioso e inquiridor, descobri jazigos abandonados há décadas, de famílias que já não existem mais, com histórias e sobrenomes perdidos no tempo – obsoletos e extintos como raros espécimes. Conheci sepulturas que desapareceram porque não eram perpétuas, principalmente de pessoas humildes, lavradores.
Nos anos 1990, por exemplo, eu visitava o túmulo de duas garotinhas com não mais de dez anos, amigas de infância de minha mãe. Num dia chuvoso da década de 1960, elas foram atingidas por um raio enquanto lavavam louça no fundo de casa. Morreram agonizando num chão de terra batida que escureceu-lhes os cabelos claros que cobriam os rostos.
A tragédia comoveu muitos sitiantes que caminharam a pé por longas distâncias para orar pelas crianças, desfalecidas na mais alegórica das fragilidades, rodeadas por cafezais que em pouco tempo deixariam de florescer e frutificar. Dona Maria visitou a filha e a sobrinha até o dia que o túmulo não perpétuo foi destruído para dar lugar à outra criança falecida, que não corria o risco de ter seus restos mortais remanejados porque pagaram o suficiente por tal privilégio. Recebi a notícia há três anos, depois de procurar o jazigo em vão.
Tenho recordações de como eram pequenos os dois túmulos. Sem placas de bronze, fotos, nomes ou qualquer informação. Com o tempo, e sem alarde, continuaram existindo para poucos até o completo e figurado desvanecimento material. “Eram boas meninas. Só que o ciclo delas nesse lugar acabou. Talvez tenha sido melhor assim. A mãe sofria demais”, comentou uma velhinha com sorriso plangente.
Caminhei até outro jazigo, acompanhando essa senhorinha que se apresentou como Tazinha. Seus olhos rutilantes e primaveris contrastavam com a pele do rosto delgado e achacado pela ação do tempo. Tinha voz dulcificada, de quem aceitava da vida aquilo que ela oferecia e por menor que fosse ainda agradecia. Ela visitava o marido uma vez por mês desde 1957, quando ele morreu em decorrência da maleita.
Trabalhava abrindo estradas em Paranavaí, até que um dia adoeceu e não levantou mais. Não chegou nem a receber pelos últimos dois meses de trabalho. “Fui até a casa do patrão cobrar os atrasados. Daí o homem berrou: ‘Tenho nada com a senhora, meu negócio era com seu marido. Vá daqui!’ Sem me irritar, fui embora”, narrou. Anos mais tarde, Tazinha ficou sabendo que o sujeito foi assassinado a tiros. Ele vendeu um sítio com duas casas e tentou derrubar uma delas para revender a madeira.
Após a morte do marido, Tazinha nunca mais se relacionou com outro homem. Ainda carrega no dedo a aliança de casamento comprada em 1951. Quando perguntei se ela não se sentia muito sozinha, argumentou que a solidão não habita um coração em comunhão com a própria vida. Também questionei o motivo dela continuar visitando o marido depois de tanto tempo.
Enquanto ela asseava o túmulo com um pedaço de flanela, um dos mais singelos do cemitério, o desempoando como se estivesse fazendo carícias, me observou com um sorriso cândido e respondeu: “O ser humano que não é fiel às suas promessas não é capaz de ser fiel a si mesmo. Assim como faço todo mês, estou aqui cumprindo a minha, não por obrigação, mas porque revigora o meu coração. A vida está em todos os lugares, nas entranhas da terra e nas incertezas do céu, e no cemitério não é diferente. Daqui também se vê o nascente, assim como o poente.”
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15 anos sem Vittorio Gassman
Faz 15 anos que o ator italiano Vittorio Gassman se foi. O grande Il Mattatore que atuou em mais de 120 filmes, entre os quais C’eravamo Tanto Amati, Profumo di Donna, L’Armata Brancaleone, I Mostri, La Grande Guerra e Il Sorpasso.
Fez ótimas parcerias com o mestre do neorrealismo italiano Luchino Visconti e alguns dos maiores expoentes da Commedia all’italiana: Mario Monicelli, Dino Risi e Ettore Scola. Gassman está entre os melhores atores italianos de todos os tempos.
“Em cada real ator há uma necessidade de se sentir como o centro do mundo durante algumas horas. Egocentrismo, é o que dizemos em italiano.”
Vittorio Gassman.
The Outsiders
The Outsiders – Filme interessante como o livro que Susan E. Hinton escreveu ainda na adolescência, obra que li há muito tempo. Na versão cinematográfica, Francis Ford Coppola criou um clássico sobre jovens marginalizados que em alguns aspectos me lembra o inesquecível “Los Olvidados”, de Luis Buñuel.
Coppola provou que nem sempre a adaptação de uma obra literária está fadada ao fracasso, superficialidade ou desvirtuação. Além da história e da abordagem, a fotografia é outro destaque. É vivaz, intensa e incandescente, assim como os arroubos da adolescência. Recomendo o filme e o livro para quem gosta de obras que envolvem temas como juventude, segregação social, crise existencial e falta de estrutura familiar.
Saiba Mais
O filme The Outsiders foi lançado em 1983, inspirado no livro publicado em 1967.
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Manoel de Oliveira, 83 anos dedicados ao cinema
O cineasta português lançou o primeiro filme em 1931 e o último em 2014
Falecido aos 106 anos, o cineasta português Manoel de Oliveira não teve tempo de produzir seus próximos três filmes – “A Igreja do Diabo”, “A Ronda da Noite” e uma obra sem nome sobre o papel das mulheres no cultivo das videiras portuguesas. O seu último trabalho que assisti foi “O Velho do Restelo”, um média-metragem lançado em 2014 sobre um hipotético encontro de Camões, criador do personagem que empresta nome ao filme, Dom Quixote de La Mancha, Pascoaes e Castelo Branco. Em síntese, uma viagem por reflexões sobre o passado, presente e futuro.
Foram 83 anos trabalhando como cineasta. Passeava por gêneros, tanto que nem mesmo a idade avançada o impedia de se lançar no cinema como um aventureiro redescobrindo a sétima arte em tempos de cinema digital. Gostava muito de trabalhar com atores como Miguel Cintra, Diogo Dória e Leonor Silveira. Ao mesmo tempo, intrigou e atraiu estrangeiros de renome internacional como Marcello Mastroianni, John Malkovich, Catherine Deneuve e muitos outros artistas que surpreendeu pela versatilidade e amor ao que fazia, independente de imposições e limitações.
Oliveira, que nasceu em 11 de dezembro de 1908 e faleceu em 2 de abril de 2015, sempre me intrigou por ser menos conservador do que cineastas com menos da metade de sua idade e não mais do que 1/5 de sua longeva experiência profissional. Impossível e injusto listar as suas melhores obras, assim como é inadequado dissociá-las de sua própria natureza.
O cinema português, e não somente ele, não seria o que é hoje se não fosse Manoel de Oliveira, um artista livre de amarras que passeava por formatos e se dedicou a fazer com que refletíssemos sobre as nossas incertezas e a nossa condição humana, mesmo quando estas pareçam perpetuadas por décadas e séculos.