Archive for April, 2016
A importância das opiniões contrárias
Pode parecer estranho, mas aprendi a gostar de opiniões contrárias às minhas na adolescência. E acredito que isso faz parte de um processo de constante amadurecimento, principalmente porque acho mais importante ter dúvidas do que certezas. Afinal, sou movido pelas dúvidas. Me provam que pouco sei sobre tantas coisas e isso é estimulante porque me permite evitar ser petulante, recair o mínimo possível em senso comum ou generalizações.
Quem se julga sábio, dificilmente se abre para o conhecimento de forma isenta de pré-conceitos ou preconceitos. Além disso, é através das diferenças que aprendo a ser mais paciente. Se calar para ouvir pode ser um desafio quando as palavras não nos agradam, mas é recompensador porque é a maior prova de que a essência humana não abandonou o ser.
Quem busca semelhanças o tempo todo corre o risco de se inclinar sobre si mesmo e não perceber que o outro na realidade é apenas o seu próprio reflexo imutável e pulverizado, como um ouroboros distorcido. A internet, por exemplo, é um ambiente muito bom para uma avaliação de autocontrole. Nesses mais de seis anos usando o Facebook me agrada o fato de eu jamais ter xingado alguém, mesmo diante de provocações e ofensas.
Sobre Adolf Hitler e Josef Stalin
Há pesquisadores que afirmam que Adolf Hitler foi o responsável pela morte de 17 milhões de pessoas durante o regime nazista. Josef Stalin foi além, sendo responsabilizado pela morte de 23 milhões de pessoas, o que significa claramente que ele superou Hitler. No entanto, Hitler comandou a Alemanha por 11 anos e Stalin liderou a União Soviética por 29 anos. Embora tenham sido dois genocidas, os fatores de comparação não costumam ser os mesmos.
Inclusive historicamente a influência de Stalin no mundo foi muito maior do que a de Hitler, endossada pelos Estados Unidos até o início da década de 1950, quando a Guerra Fria abriu espaço para o surgimento do macartismo, o período de caça às bruxas, permitindo que os EUA investissem maciçamente em propaganda e espionagem com a intenção de desqualificar outras formas de governo. Mas tudo isso não com a intenção de buscar paz ou justiça, mas tão somente desestabilizar economias estrangeiras que pudessem oferecer algum tipo de risco à hegemonia estadunidense.
Seis meses vendendo crack e morando na zona
“Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele”
Dantão conheceu a zona por causa de uma mulher. Ela chegou um dia na sua casa na Vila Alta, na periferia de Paranavaí, e o encontrou dormindo depois de cheirar meio litro de cola de sapateiro. Sem ocupação, sem dinheiro e vivendo na miséria, não pensou duas vezes antes de reunir os “trapos” dentro de uma sacola e partir para uma casa de prostituição que funcionava em uma chácara no Jardim São Jorge.Ainda “noiado”, não tinha certeza de onde estava ou o que faria. Apelidado de Monstrão, foi colocado para trabalhar na portaria do bordel. Ganhava R$ 25 por noite e se tornou o xodó da mulherada com seu jeito remansoso e paradoxalmente enérgico de impedir conflitos entre desordeiros. “Eu não era casado, nem nada. Me sentia em casa morando na zona com aquela mulherada avulsa. Se tivesse striptease, eu chegava junto pra não deixar os folgados tocarem nas moças”, conta.
A dona da casa gostou tanto de Dantão que permitiu que ele trouxesse o que quisesse da velha moradia. Depois da meia-noite “trombava” com advogados, juízes, promotores, políticos, médicos e empresários. “Era tudo da alta sociedade. Até dono de usina, agroindustrial. Eu começava às 19h e ia até 7h, 8h da manhã”, afirma. Em dia de grande movimentação, a casa disponibilizava de 25 a 30 moças com faixa etária de 18 a 30 anos. “A maioria dizia que vivia naquela vida porque não conhecia outra coisa. Uma me falou que não via a hora de arrumar um homem sério pra cuidar dela e dos filhos”, relata.
Algumas moças sofriam de depressão e choravam alegando que não aguentavam mais viver se prostituindo. “Dava dó. E eu entendia isso porque sei o que é não ter oportunidade. Quem vem de baixo normalmente passa a vida vendo os outros virando as costas pra você”, declara. Quando havia discussão por causa de mulher, o rapaz entrava no meio e discursava: “Quem tem mais dinheiro fica com a moça. O nome daqui é zona, então leva quem tem mais.”
Após dois meses no prostíbulo, Dantão foi abordado por um traficante. A princípio não quis se envolver, até que o homem o convidou para fumar crack e sugeriu que ele vendesse algumas pedras só para “sentir o gosto da coisa”. Depois de uma nova conversa foi convencido a entrar no negócio.
“A cada cinco pedras vendidas [ao custo de R$ 5 por unidade], o lucro de três pode ficar pra você”, prometeu. Empolgado, Dantão pegava 200 e até 300 pedras nos dias de grande demanda. “Eu só vivia lá dentro. Nunca saía pra nada. Rapidinho fiquei famoso entre os frequentadores da zona que buscavam mais do que sexo. Era tudo nego do dinheiro. Numa noite um dono de usina chegou com R$ 5 mil e foi embora liso”, narra.
No entanto, conforme as vendas aumentavam, a parcela de lucro de Dantão seguia na contramão, caindo. “Arrastava até três mil reais numa noite e o patrão ficava com quase tudo. Pra mim sobrava uns R$ 500, R$ 600. Mas é sempre assim. Patrão não se mata, quem se mata são os laranjas e os mulas. Ele só administra e manda. Quem se fode e corre risco é você”, desabafa.
Para piorar, Dantão conheceu uma loira e ex-detenta que veio de outra cidade para trabalhar na zona. Os dois se envolveram e o rapaz acabou viciado em crack. “Comecei a fumar pedra direto com ela, toda noite. Ela sempre queria fumar com os clientes, até que um dia foi embora e nunca mais a vi”, enfatiza.
Ao longo de oito meses morando na zona e seis meses comercializando crack, Dantão perdeu as contas de quantos homens chegaram pedindo 50 a 60 pedras de crack para fumarem nos quartos. “Tinha cara que nem ia na zona pra transar. Só queria a mulherada em volta e fumando com ele, até porque a pedra corta o tesão do homem. Lembro de um magnata aí pra quem servi 100 pedras numa noite. Ele fumou tudo com algumas moças. E elas não podiam recusar porque mulher na zona acaba tendo que se submeter a tudo”, revela o rapaz que se afastou das drogas e hoje trabalha como servente de pedreiro.
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Crítica não existe sem argumento
Crítica não existe sem embasamento ou argumento. Também não privilegia ofensas. E sim, críticas de verdade não são comuns hoje em dia se levarmos em conta o conceito original grego que qualifica a ponderação como imprescindível. Além disso, a partir do momento que você insulta ou xinga alguém há sempre o iminente risco de ter o discurso totalmente desconsiderado, independente de floreios e outras qualidades.
Há diferenças entre viver na época da ditadura e entendê-la enquanto poder político
Analfabetismo no Brasil da década de 1960 chegava a 60 e até 70% em muitos estados
Me sinto deslocado quando encontro pessoas enaltecendo a ditadura como se tivesse sido um período majestoso e edênico. “Meu pai, minha mãe, meu avô, minha avó, meu tio, minha tia e tantos outros contam que só apanhava na época da ditadura quem era bandido”, dizem muitos.
Francamente? Todo mundo tem alguém na família que diz isso e não é algo que me surpreenda porque interpreto de uma forma completamente diferente. Eles não reclamavam e ainda não reclamam da ditadura porque na realidade não se importavam muito com os rumos da política brasileira. Também gozavam de pouco entendimento sobre as responsabilidades de se viver em sociedade.
O individualismo naquela época já era uma coisa aberrante e foi exatamente isso que fez com que a ditadura perdurasse por 21 anos no Brasil. Ademais, tinha uma face sombria e uma néscia. A sombria era encampada por aqueles que se beneficiavam do sistema político vigente, e a néscia era a dos menos instruídos ou incultos que tinham linha de raciocínio azêmola e solene, e por assim dizer até macabra de que “se o governo não me incomoda, tudo está perfeito, mesmo que pessoas morram à minha volta”.
A verdade que vejo pouca gente divulgando nos debates sobre o assunto é que nos tempos da ditadura militar havia uma grande massa de pessoas que não se importavam realmente com a democracia ou a liberdade de expressão. Muitos nem sabiam o significado dessas palavras, o que é aceitável, levando em conta que o analfabetismo no Brasil da década de 1960 chegava a 60 e até 70% em muitos estados, segundo o IBGE.
Por isso grande parcela da população brasileira da atualidade não teve e não tem familiar que foi perseguido nessa época, o que é muito normal, levando em conta que quando a ditadura chegou ao fim o Brasil contava com mais de 136 milhões de pessoas. E tudo isso pode ser usado para reforçar o discurso falseado de que só os “piores cidadãos” eram perseguidos pelos militares. A mim. isso significa algo bem simples. O que veio depois não foi graças ao esforço da maioria, o que na minha modesta opinião endossa mais ainda as histórias de luta de quem seguiu na contramão da obviedade.
Pondero que ter vivido na época da ditadura e tê-la compreendido na essência são coisas completamente diferentes. Conheço muitos idosos que a enaltecem, inclusive da minha família, mas esses não desempenhavam atividades intelectuais, culturais, artísticas ou econômicas que pudessem ser cerceadas. Sendo assim, considero no mínimo incoerente citar um familiar que pouco ou nada contribuiu para os rumos da democracia no Brasil, mesmo que não exercida na sua plena funcionalidade.
Em Paranavaí, no Noroeste do Paraná, tivemos até obras musicais e poemas censurados no Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup), principalmente nas décadas de 1960 e 1970, porque o Dops suspeitou que havia conteúdo subversivo nos trabalhos enviados, o que não era verdade. E são pessoas que qualificam a ditadura militar como revolução que falam mal de ditadores. Ou seja, um entranhado e estrambólico paradoxo.
Além disso, acredito que embora o Golpe de 1964 tenha sido colocado em prática como uma promessa de transformar o Brasil em um país do futuro, o que ele fez foi instituir uma retrógrada forma de colonialismo baseada em relações de trabalho fundamentadas no barateamento e precarização da mão de obra, o que já acontecia na Europa e nos Estados Unidos na década de 1920.
Ou seja, inspirados na velha Doutrina Góes Monteiro, da Era Vargas, os generais fizeram com que o Brasil evoluísse sim em industrialização, não tenho dúvida disso, mas um progresso que a exemplo de outras versões beneficiou a menor parcela de brasileiros.
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Luta de classes no Brasil não é invenção de um espectro da política partidária
Eu tinha 19 anos quando passei dois dias atuando como boia-fria nas lavouras de cana e mandioca
Para quem acha que luta de classes no Brasil é uma invenção de um espectro da política partidária, permita-me relatar duas experiências ao invés de citar exemplos teóricos. Uma vez me perguntaram porque escrevo tanto sobre explorações encampadas por latifundiários, quando isso muitas vezes pouco interessa aos leitores e à imprensa em geral, o que é um paradoxo em essência. “Por que também você escreve sobre pobres, miseráveis e outros tipos de marginalizados e injustiçados?”, indagaram em seguida. Não dei uma resposta direta, contei uma história e permiti que interpretassem à sua maneira. Afinal, sempre preferi produzir dúvidas do que saná-las.
Eu tinha 19 anos quando fui ao Jardim Morumbi, na periferia de Paranavaí, conhecer boias-frias que atuavam nas lavouras de cana-de-açúcar e mandioca. O que eu sabia sobre as mazelas e a estupidez humana nas relações de trabalho estava mais relacionado ao ambiente virtual e à literatura do que qualquer outra coisa. Então por dois dias acompanhei um grupo de boias-frias em sua jornada. Fiz tudo que eles fizeram. Subi em um ônibus velho e com banco tão desconfortável que a cada solavanco sentia algo batendo nas minhas costas com a rigidez de um pedaço de ripa. À minha volta, alegria se misturava à tristeza. Todos pareciam dispersos no tempo e no espaço.
No primeiro dia o ônibus quebrou e tivemos que fazer parte do trajeto a pé, atravessando uma estrada de quilômetros de cascalho quente como pedra de churrasqueira. O sol que admirei na primeira hora da manhã estava me castigando, fazendo o couro da minha cabeça queimar, atravessando o boné como se ali ele já não existisse mais. Carreguei uma mochila com marmita e entendi porque às vezes o termo boia-fria não condiz com a realidade, ainda mais se você deixar a boia sobre uma pedra a céu aberto em dia de mormaço.
O facão que peguei emprestado do Seu José Alexandre, boia-fria aposentado, fazia a cana deitar pesada e chorosa, emitindo um barulho tão abafado quanto a estiagem. Me senti como se estivesse derretendo e minhas mãos pinicavam, mesmo dentro das luvas que ficaram malcheirosas no decorrer do dia. Quando eu parava para descansar, com o rosto já coberto de fuligem, via meu rosto refletido no display do celular. Sentado sobre a garrafa térmica eu pensava. “Será que é assim que se despersonaliza um ser humano? Fazendo ele trabalhar tanto que se perde de si mesmo, mal tendo tempo para pensar?”
Ao meu redor eu via desde jovens a idosos labutando. Alguns respiravam com dificuldade conforme a impressão do sol baixo se intensificava. Parecíamos reféns de um deserto prestes a nos engolir. “A terra chora sempre que a cana cai, chega a rachar de raiva. E a gente só chupando a água. Isso aqui tá virando o Saara”, disse Manoel com um sorriso amarelo.
No meio do eito ouvi algumas moças falando sobre o desejo de viver com mais dignidade. Sonhavam com uma oportunidade de deixar o trabalho no campo. “Acho que isso nunca vai acontecer porque o serviço só termina quando o corpo padece. Tem dia que a gente mal tem força pra limpar a casa. Esse trabalho parece que foi feito pra prender a gente, não dar esperança”, reclamou uma moça chamada Júlia, de 18 anos. Naquele dia partimos com o pôr do sol. Sentindo meus braços e ombros doloridos, cumprimentei o motorista e sentei no fundo do ônibus, observando semblantes à minha frente.
Notei expressões gerais de cansaço, queixos inclinados sobre o peito, cabeças arqueadas mirando o teto, um silêncio geral. E muita sujeira em nossos corpos avariados pelo trabalho. Júlia sentou ao meu lado e contou que conversou com o patrão no dia anterior para saber se seria possível diminuir a jornada de trabalho para que ela e mais cinco meninas pudessem estudar. “Ou come ou estuda. Você decide”, respondeu o homem sem dar mais explicações.
No dia seguinte, acordei de madrugada novamente e subi em outro ônibus no Jardim Morumbi, com destino a uma lavoura de mandioca. E lá fomos nós. Eu ainda sentia o cheiro de cana em meu corpo sovado, prurido pelas folhas cortantes que na tarde anterior roçaram meu pescoço e parte dos braços.
Seu João, o mais velho da turma e que atuava no ramo desde a adolescência, foi quem me ensinou a extrair a mandioca da terra com mais facilidade. “Se aprender o trejeito de primeira, não pega vício depois”, garantiu rindo. À tarde comecei a sentir dores nos quadríceps e na coluna lombar. Um rapaz de nome Genival afirmou que escolhi um dia ruim para acompanhar eles porque a “terra seca” deixa a mandioca mais “teimosa”. “Você vai sofrer, piá. O negócio tá ruim até pra nós, só não pro patrão”, comentou às gargalhadas.
Para minha surpresa, um homem bem vestido se aproximou de mim por volta das 16h. “Você que é o tal jornalista? E por que se dar o trabalho de fazer tudo isso para escrever sobre essa gente? Perde tempo não, rapaz! Tanta coisa boa pra você contar por aí. O que acha de conhecer minha fecularia? Aquilo lá sim é uma novidade que pode trazer algo de bom pra você”, declarou o fazendeiro.
Agradeci a oportunidade de me deixar passar o dia na propriedade e argumentei que estava apenas fazendo uma pesquisa sobre a realidade dos trabalhadores do campo. “Entendi. Mas não tem nada de ruim pra você falar daqui, né? Esse povo hoje em dia tá comendo carne que nem a gente já, uma coisa incrível de se ver. Melhor é impossível”, replicou.
Eduardo Cunha, o “deus de ocasião”
A expressão no rosto do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, surpreende pela imutabilidade. E ela é invariável porque ele propriamente vê a si mesmo como um tipo de deus de ocasião que enxerga a todos como inferiores, súditos ou não.
Quando vi sua fisionomia débil há pouco na TV, na sessão de votação do impeachment, não pude deixar de associá-la à debilidade do nosso próprio sistema político, tão corrompido que bandoleiros e indoutos ganharam a oportunidade de figurarem como arautos da justiça, com direito a discursos apoteóticos.
Hoje minha maior preocupação são as manifestações recheadas de paroxismo daqueles que creem em salvadores da pátria, verdadeiros oportunistas que sabem muito bem como aproveitar o culto à personalidade explorado por tipos como Hitler, Mussolini, Stalin, Mao Tsé, Saddam Hussein, Trujillo, Ceauşescu e muitos outros. Sinceramente, não sei se vivemos a democracia ou se apenas a ensaiamos.
É tudo tão nefasto que chega a ser torpe e angustiante. E a saída parece inexistente, substituída por um caleidoscópio de um conto sem fim digno de Borges.
Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos
Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas
Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.
Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.
Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.
Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.
Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.
Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.
Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.
A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.
Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.
Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”
Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.
“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.
“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.
Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.
Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.
Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.
Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.
“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.
Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.
“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:
“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.
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Parque de Exposições, alegria e pesadelo para jovens famintos
“Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado”
Dos 10 aos 15 anos, mesmo sem dinheiro, I.O. e mais 10 a 15 amigos, moradores da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, percorriam mais de cinco quilômetros para chegarem ao Parque de Exposições Arthur da Costa e Silva em época de ExpoParanavaí, tradicionalmente realizada no mês de março na entrada da cidade. Sem pagar, entravam pelos fundos, pelas cocheiras, pelas baias, como ele mesmo diz. Iam a pé ou de bicicleta. Quem ia de bike, levava mais dois amigos. Chegavam lá às 15h e ficavam até as 10h do dia seguinte. Jamais se ausentavam à tarde e à noite.
Tentando invadir o Parque de Exposições, uma vez I.O. ficou pendurado de ponta cabeça, preso pelo tênis, até que conseguiu tirar o calçado e entrar correndo descalço. Na fuga, recebeu uma relhada que deixou um vergão enorme nas costas. Não era fácil. Jogavam óleo queimado na área de travessia preferida dos não-pagantes. “Se chegasse com calça branca, logo ficava toda marcada. Dava pra saber quem pulava e quem não pulava. Tinha uns peões bravos que queriam tirar a gente, daí começava a guerra porque ninguém queria sair. Eu era o mais velho e o resto era tudo piazada”, relata I.O.
O jovem conhecia um segurança “gente boa” que liberava a entrada dele e dos amigos. Lá dentro, atravessavam o parque e ouviam o próprio estômago roncando quando sentiam o aroma de comida e viam os visitantes se fartando diante das barracas. “Tinha dia que malemá alguém dava uma dentada num lanche, cachorro-quente, e deixava de lado. Você ia lá, catava e comia, não queria saber de nada. Queria encher a barriga – beber e comer”, informa I.O que não se esquece do dia que um cara abriu uma latinha de refrigerante e saiu de perto para falar com alguém.
Malandro, seu primo foi lá, tomou um gole e se mandou. I.O. também ficou com vontade, desceu no embalo e “colou”. “Encostei o bico na lata e tomei um surdão. Aquele dia eu apanhei, hein? O cara vinha e meu primo não falou nada. Rodei na ‘pista’ e saí de lá que nem mendigo – descalço, sem camisa, todo estropiado”, reclama. Há 12 anos sem entrar no Parque de Exposições, I.O. lembra das vezes em que encostava nos cantos das barracas e falava: “Faz um lanche aí, irmão!” Os barraqueiros pensavam que ele iria pagar. Quando enchia de gente, I.O. e sua turma sumiam no meio da multidão. “Comia lanche de todo jeito, servido com toda aquela qualidade”, afirma às gargalhadas.
Também “batia um rango” com as sobras das barracas dos restaurantes. Eram motivados pela coragem – só o que tinham naquele momento. Se algo saísse mal, voltavam com o “couro ardendo”. Um dia uma comerciante flagrou o primo de I.O. de olho em uma batata recheada. Percebendo a expressão de desejo no rosto do adolescente, a mulher disse: “Você quer? Espera que vou te dar!” Todo feliz o garoto pensou que a noite era sua. “Achou que tava fácil. De repente, chegou uns caras, nossa galera ficou encurralada e o ‘couro comeu pra todo mundo’. Era cilada, irmão!”, garante I.O que viu a turma partindo, gente correndo por todos os lados e barraqueiro gritando: “É pra matar, não é pra aleijar não!”
Vendo que o “couro ia estalar”, I.O. conseguiu sumir. Em outra ocasião, escapou de ser espancado por dois brutamontes que correram no seu encalço. “Se pegasse, eles me destruiriam. Agora tudo mudou e nunca mais fui lá. Foi assim durante uns quatro anos da minha adolescência, quando não tinha muita segurança”, argumenta. Hoje o jovem sorri ao se recordar da quantidade de comida e bebida que achavam nas arquibancadas. Até garrafinha de suco que o namorado dava para a namorada e ela não queria. Largavam no canto e a garotada chegava antes do pessoal da limpeza recolher tudo. No último dia de exposição a alegria de I.O. e sua turma era imensa. O motivo era a distribuição de alimentos feita pelos comerciantes que precisavam se desfazer das sobras.
“A primeira vez que nós achamos o caminho não perdemos mais o carreador, era só não esquecer da cara do dono da barraca. A nossa turma era de moleques que passavam o dia sem comer, né? Não era fácil. Minha avó e meu tio me tocavam de casa e eu ficava morrendo de fome. Lá na exposição, você achava carne, pão, cachorro-quente, outros tipos de lanche, um monte de coisa, irmão. Comia com vontade mesmo. Não é mentira não! Sobrava resto de maionese, aquelas coisas, e trazia tudo embora”, enfatiza.
Espertos, os garotos conheciam muito bem o sistema de distribuição de energia elétrica do Parque de Exposições, tanto é que ocasionalmente davam um jeito de desligar a chave geral. Enquanto a energia não voltava, comiam cocada que pegavam direto das barracas. “Tinha moleque que passava a mão em pingente, cordinha. O que der tempo no escuro é a hora [risos]. Quem iria ver alguma coisa naquele breu?“, declara I.O. rindo.
Jovem precisa de ajuda para publicar livro de fantasia épica
Há guerreiros, magos, bruxos, dragões e outras criaturas místicas em “A Cruzada dos Cegos”
De Paranavaí, no Noroeste do Paraná, o jovem Grégori Gabriel, de 21 anos, recentemente terminou de escrever o livro “A Cruzada dos Cegos”, da saga “Dragonium”, uma história de fantasia épica inspirada na mitologia nórdica e que soma 55 capítulos na sua obra de estreia.
“Há guerreiros, magos, bruxos, dragões e outras criaturas místicas no livro que tem a mecânica dos jogos de RPG. Ele pode ser definido como uma fusão de ‘O Senhor dos Anéis’ [do escritor britânico J.R.R. Tolkien] com ‘Game of Thrones’ [do estadunidense George R.R. Martin]”, explica Grégori que indica o livro principalmente para quem gosta de aventura, ação, suspense e mistério.
De acordo com o autor, quem lê “A Cruzada dos Cegos” percebe que se trata de uma obra em continuidade. “Estou apenas começando. A minha intenção é publicar sete volumes. Enviei o primeiro para algumas editoras e duas o aprovaram e elogiaram. Porém, existe um valor a ser pago pela publicação. Ou seja, preciso de R$ 6.215 para realizar esse sonho. O dinheiro vai ser usado para custear revisão e ilustração, entre outras coisas”, informa.
Como Grégori Gabriel não possui o valor cobrado pela editora, ele decidiu criar uma campanha no site de financiamento coletivo Catarse. E agora o jovem tem até o dia 13 de junho para angariar os recursos necessários para a realização do seu sonho. “Por isso decidi pedir ajuda. É o único jeito. Toda e qualquer contribuição é muito bem-vinda, até mesmo na divulgação da campanha, caso a pessoa não tenha condições de fazer uma doação a partir de R$ 35”, justifica. Em contrapartida, Grégori se compromete a recompensar os patrocinadores com exemplares autografados e marcadores de páginas.
Com o lançamento do livro, Gabriel tem esperança de provar que os autores brasileiros também têm potencial para produzir boas obras de fantasia épica. “Um baixo rugido saiu de sua boca, alertando que ele não tinha boas intenções. Ouviu-se então o barulho de algo pousando no chão e de asas batendo. Olharam para os lados e notaram que estavam cercados por cinco dragões nativos que formavam o perímetro de um triângulo”, escreveu Grégori Gabriel em “A Cruzada dos Cegos”.
Para ajudar o autor de “A Cruzada dos Cegos”, acesse o link: https://www.catarse.me/dragonium_a_cruzada_dos_cegos