David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Todo estuprador é um psicopata?

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Estupradores são naturalmente ególatras, pessoas que não sabem lidar com negativas

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“O Estupro de Tamar”, pintura em óleo feita em 1840 pelo francês Eustache Le Sueur

Li muitos comentários e alguns textos sobre o episódio da jovem de 16 anos que foi estuprada no Rio de Janeiro por mais de 30 homens. Acho impossível não sentir asco, mas também sei que crimes como esse acontecem com mais frequência do que imaginamos. Afinal, quem não se lembra do estupro coletivo em Castelo do Piauí que teve repercussão nacional no ano passado? Quando quatro adolescentes de 15 a 17 anos foram apedrejadas, estupradas, amarradas e jogadas de um penhasco de oito metros de altura.

Não conheço a história da jovem do Rio de Janeiro e acredito também que isso não tenha relevância alguma, já que nada justifica um estupro. Não importa como ela se veste, se tem filhos, se gosta de baladas, se bebe pouco ou muito. Nossas escolhas não existem para pautar a vida dos outros. Somos o que somos, nem por isso temos o direito de decidir como as pessoas devem ser ou agir. Ademais, o fato dela ser menor de idade torna tudo ainda mais aberrante porque ratifica um estado de maior vulnerabilidade.

Há pessoas que podem qualificar o caso de estupro coletivo como um fato isolado por causa da repercussão pontual da mídia. Porém é algo que está bem longe da realidade. No Brasil, pelo menos 15% dos casos de estupros são coletivos e mais de 70% das vítimas são menores de idade. E só para mostrar como a situação é alarmante, pelo menos seis estupros são registrados por hora no Brasil.

Só em 2015, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, podem ter ocorrido 136 mil estupros, numa projeção otimista inspirada na metodologia internacional National Crime Victimization Survey. Imagine então se somarmos esses dados aos casos de violência sexual em que as vítimas ficaram aterrorizadas ou foram coagidas a não denunciar? O total pode chegar a 476 mil.

Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), não mais do que 10% dos casos de violência sexual são denunciados à polícia. Logo não tenho dúvida alguma de que ser mulher no Brasil é muito difícil, já que são obrigadas a viver em estado de alerta, ainda mais levando em conta a impunidade reconhecida pelos abusadores.

Eles zombam das nossas leis brandas que dão margem a muitos recursos por causa do viés da subjetividade. Maior exemplo do descrédito é o fato de que muitos estupradores tiram fotos ou filmam os atos de violência sexual como se fossem souvenirs ou troféus, algo de que se orgulham.

Em 2006 e 2007, fiz um trabalho junto ao Projeto Sentinela, que combate o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes. E o que tirei de lição daquele tempo para a atualidade é que estupradores são naturalmente ególatras, pessoas que não sabem lidar com negativas, seja porque foram mimados demais ou porque não conseguem aceitar o fato de que as pessoas vão continuar existindo e seguindo suas vidas independente deles.

Muitos também tendem a tentar transferir para outra pessoa o desprezo que sentem por si mesmo. Se veem como insignificantes e acabam recorrendo à objetificação sexual de alguém. Querem ferir outra pessoa, marcá-la para sempre. Sentem um prazer mórbido e doentio nisso.

No caso dos mais de 30 rapazes que estupraram a adolescente, como algumas pessoas comentaram, é difícil crer que todos sejam doentes. Mas acredito sim que eles possuem traços de sociopatia e psicopatia. A verdade é que o mundo hipermoderno está imerso em desvios de conduta que ameaçam o bem-estar social.

Nos livros The Sociopath Nextdoor e Snakes in Suits: When Psychopaths Go To Work, os estudiosos do comportamento humano Martha Stout e Paul Babiak estimam que 10% da população mundial sofre de algum tipo de psicopatia, o que me faz crer que a raiz do problema com relação aos estupros já começa nos primeiros indicativos de sociopatia, na ausência de limites e na anuência da permissividade.

Até porque, antes de tudo, todo estuprador é um psicopata, embora nem todo psicopata seja um estuprador. Talvez tenhamos dificuldade em identificar isso porque temos uma tendência obtusa e até romanesca de associar a figura do psicopata com a dos serial killers que encontramos na literatura e no cinema.

De tudo que li até agora sobre o estupro da jovem de 16 anos, só não concordo com as acusações de que todo homem é um estuprador em potencial. Não é verdade e também nem mesmo existe qualquer tipo de estudo que se aproxime de corroborar esse tipo de afirmação baseada na passionalidade.

O crime envolvendo a adolescente do Rio de Janeiro, me lembrou uma história que escrevi há alguns meses sobre uma jovem vítima de estupro

Talvez tivesse caído na rua quando caminhava do boteco para casa. Em seguida, percorreu seu corpo com a língua áspera e fedorenta que a fez sentir-se como se fosse lambida por uma dessas lagartas que invadem pedaços de pau podre em terrenos baldios. Com o rosto virado, Sandra chorava em silêncio, mordendo os lábios e mirando o telhado de fibrocimento (Eternit). Se esforçava para sair do próprio corpo. Não queria enxergar nem sentir nada. A poucos centímetros, observou Isabel à direita – a bonequinha de tecido tinha um vestido encardido, levemente avermelhado.

“Lembrei da virgindade que aquele velho pedófilo tirou de mim. Ele ainda comemorou quando viu o meu sangue escorrendo pelo lençol. Falou desse jeito: ‘É assim, filhinha, a primeira vez de vocês têm que ser com o papai’”, comentou. Turvo se levantou e desapareceu na escuridão, carregando uma garrafa de pinga e arrastando os pés no chão.

Nada a fazia esquecer o cheiro nauseante do pai. As palavras do homem continuaram ecoando pela mente de Sandra. Era como se por um artifício fantástico tivessem-lhe anexado ao ouvido um gravador que reproduzia copiosamente as frases do criminoso. Ela não conseguia expor ao mundo o sentimento inimaginável que a dominou desde a noite do estupro.

Em seu interior, o desespero incessante consumia a voz e a capacidade de se comunicar. “Os gritos e o choro não eram ouvidos e vistos por ninguém. Existiam apenas dentro de mim. E minha mãe [primeira esposa de Turvo] sabia de tudo e aceitava”, narra chorando. As lágrimas pareciam banhar o interior de cada um dos órgãos – do coração ao útero. A voz perdida, apenas ela ouvia. A vontade de viver se esvaía com o sangue maculado, arbitrariamente dilacerado do seu corpo em desenvolvimento.

Lá fora, no quintal sujo, Sandra tentava, sem sucesso, chorar, observando um pneu que balançava preso à corda amarrada em uma árvore. Para ela, tudo continuava desfocado e diluído. “Eu queria morrer e, em vários momentos da vida, sei que minhas irmãs também. Ele abusou da gente não só uma ou poucas vezes, mas muitas. Ele estuprou todas as filhas e mesmo depois de tantos anos algumas ainda recebem suas visitas noturnas”, garante Sandra que se arrepia, apontando com o dedo indicador os pelos eriçados do braço.

3 Responses to 'Todo estuprador é um psicopata?'

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  1. Boa tarde, David. Meu nome é Francine Figueiredo, sou de Brasília e passei a acompanhar suas publicações devido aos comentários que você faz no grupo do Facebook “Cinema Europeu”. Acerca desse seu texto, não descarto a possibilidade de um estuprador apresentar sinais de pscicopatia ou sociopatia como você afirma, mas acho problemático colocar a questão do estupro simplesmente como uma “doença”, inclusive porque o Código Penal prevê isenção e diminuição de pena para os doentes mentais (arts. 26 a 28 do CP). E o perigo da sua colocação é justamente o de sermos mais condescendentes com o crime de estupro porque ele é cometido por um “doente”. Há um componente de misoginia que não pode ser descartado. Creio que o machismo como crença arraigada de que as mulheres são seres inferiores, desprovidos de vontade própria ou que sua vontade deve sempre ceder à vontade do “macho” constitui a tônica desse tipo de crime, assim como a violência doméstica que, felizmente, já está recebendo um tratamento legal mais digno do que antes da existência da Lei Maria da Penha. Vale lembrar que historicamente e até hoje o estupro é usado como estratégia de guerra e submissão dos povos a que se quer dominar. Penso que a conduta desses trinta homens deve ser enquadrada no estupro de vulnerável, que está previsto no art. 215 do Código Penal, mas se trata de uma menina pobre, negra e do morro. Ficamos sabendo do crime porque ele foi filmado e compartilhado nas redes sociais. Quantas meninas negras, pobres e que vivem no morro sofreram esse mesmo tipo de agressão e sequer denunciaram? Também não basta transformar esses 33 homens em “monstros”. É preciso combater a “cultura do estupro”, que objetifica o corpo da mulher, que a culpa por ser vítima desse tipo de crime e de tantos outros. Considero que é bem provável que a educação machista que muitos homens recebem podem contribuir para acentuar a personalidade “psicopata” ou “sociopata”, mas há várias aspectos na questão do estupro que precisam ser consideradas. Abraço.

    Francine Figueiredo

    27 May 16 at 6:40 pm

  2. Boa tarde, Francine. Entendo seu ponto, mas sobre o fato de eu qualificar estupradores como psicopatas é porque há vários níveis de psicopatia. Inclusive citei duas obras que destacam exatamente isso – o fato de que sociopatia e a psicopatia estão muito próximas de nós e em níveis diversos. Minha intenção não é desqualificar outros elementos que envolvem a cultura do estupro e nem mesmo transformar agressores em vítimas. Muito pelo contrário. Eu apenas enveredei por esse caminho porque é aquele do qual tenho um melhor entendimento, até por ter estudado sobre o tema. Além disso, encontrei vários textos com abordagens bem diferentes da minha e acho que cada um acaba cumprindo um papel à sua maneira. Por fim, acabei por incluir um ponto de interrogação no título, acho que favorece mais a reflexão. Obrigado pela contribuição. Abraço!

    David Arioch

    27 May 16 at 8:43 pm

  3. Francine, achei muito interessante suas colocações. Mas cabe lembrar que a psicopatia não é uma doença e sim um transtorno de personalidade. Logo, o psicopata não pode ser considerado “doente” nem lhe é atribuído diminuição de pena por isso. Ele é consciente da maldade de fez e sabe as consequências disso, portanto, respondem na justiça pela monstrusidade que cometeu. Acrescento que você foi excelente no que pontuou sobre as demais questões. Abraço!

    Saraha

    11 Dec 23 at 5:20 pm

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