David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

O guarda Clemente

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Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento

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Cruzamento onde Clemente impediu que Beto fosse atropelado (Foto: David Arioch)

Quando eu tinha seis anos, todos os dias um guarda nos aguardava na mesma rua para fazer a nossa travessia. Eu e centenas de outras crianças passávamos por lá pontualmente. Clemente sorria de longe e estendia a mão com tanta devoção que até os raios de sol pareciam mais intensos, iluminando sua fronte e destacando seus dentes nevados.

Levava o apito à boca e emitia um som curto e oxítono, porém eficaz. Era o suficiente para que todos ficassem atentos. Então Clemente segurava minha mão miúda com firmeza e me guiava até a calçada da escola, me protegendo de motos, carros, caminhonetes e caminhões. Cuidadoso, sempre mantinha o próprio corpo mais próximo dos veículos enquanto o meu era velado pelo seu.

A sincronia entre o apito e a instantânea paragem era surreal, como se coreografada. E poucos ousavam encostar sequer um centímetro de pneu na faixa de pedestre. Se alguém o fizesse, Clemente tirava uma trena do bolso, agachava no asfalto por segundos, caminhava até o motorista e o cumprimentava com um caloroso aperto de mão.

“Como vai? Tudo bem? Está quente hoje, não? Imagino que o senhor tenha pressa, claro, quem não tem hoje em dia, não é mesmo, meu amigo? Por isso entendo porque o senhor está com os dois pneus dianteiros sobre a faixa. Acontece. A pressa faz a gente cometer esses pequenos deslizes. Dê uma olhadinha aqui. São apenas 25 centímetros de invasão, o que acredito que o senhor, assim como eu, sabe que não vai garantir que o senhor chegue mais rápido a lugar nenhum. E, claro, agora não temos muitas crianças na rua, mas há horários em que esse espacinho faz uma falta que o senhor nem imagina. Posso contar com sua colaboração?”, disse num início de tarde, retribuindo a concordância do motorista com um aceno de cabeça e um sorriso frugal.

Durante a travessia com Clemente, eu erguia a cabeça, mirando o céu com o nariz, e o observava. Pequeno, eu acreditava que ele podia tocar aquela imensidão azul com o topo do seu quepe. Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento. As nuvens se moviam próximas de sua cabeça, reafirmando a ideia de que pelo menos naquele cruzamento ele era a autoridade suprema, e além dele não havia mais ninguém.

Após às 17h30, quando o sinal da escola era acionado, avisando que as aulas acabaram, fazíamos o mesmo trajeto. Horas se passavam e Clemente continuava sorrindo e estendendo as mãos. Ele jamais demonstrava cansaço, irritação ou enfado. Era tão educado que às vezes os motoristas estacionavam seus veículos e caminhavam até ele para parabenizá-lo pelo trabalho.

E aquilo fazia dele um dos personagens mais admiráveis da minha infância, alguém em quem eu também poderia me espelhar para me tornar um ser humano digno quando crescesse. Não era raro ver pessoas querendo presenteá-lo. Comprometido com sua ética de trabalho, ele agradecia com olhos abrilhantados e recusava, a não ser os presentes feitos a mão, uma comidinha ou doce caseiro.

Criança, eu nunca tinha ouvido falar em racismo, até que no recreio perguntei ao meu coleguinha Beto porque ele e alguns outros garotos não seguravam a mão de Clemente. Inclusive um dia o vi tirando a mão do guarda de cima do seu ombro. “Ué, porque ele é preto! Meu pai falou que não devia existir guarda preto porque essa gente não é de confiança; tem só a palma da mão branca. Fora que tem mau cheiro e cabelo duro”, respondeu com naturalidade.

Assustado, fiquei em silêncio. Durante o recreio, sem saber o que aquilo significava, sentei num canto do pátio e pensei nas palavras de Beto. Me dei conta de que realmente Clemente era um homem negro, o primeiro que vi desde que nasci, mas e daí? Dias depois, Beto me deu um ultimato falando que eu não poderia andar mais com ele e com outros três coleguinhas se eu continuasse segurando a mão de Clemente. Ignorei e ao longo de meses fui excluído das brincadeiras no parquinho da escola. Na hora do futsal, Beto convencia todas as outras crianças a me deixarem de fora.

Um mês se passou e não vi mais clemente no cruzamento, seu local de trabalho. Ele não voltaria mais. Em seu lugar colocaram um rapaz loiro e de olhos claros que dedicava sua atenção às adolescentes que circulavam pelas imediações. Influente, o pai de Beto conseguiu fazer com que Clemente fosse transferido para outra cidade. Inventaram uma desculpa de falta de guardas e o convenceram a partir.

Mais tarde, num sábado, Beto caminhava e chupava um picolé quando foi surpreendido por um carro desgovernado que invadiu a calçada no cruzamento da Rua Pernambuco com a Rua Souza Naves. Aturdido, jogou o palito, fechou os olhos e se encolheu. Não viu Clemente sair do mercado, arremessar as sacolas e se jogar com ele no asfalto.

O guarda ganhou ferimentos superficiais por todo o corpo. Ao ver Beto ileso, sorriu, sem se importar com a roupa rasgada. Constrangido e com olhos esgazeados, o menino se encolheu em posição fetal. Descobriu que a mão rejeitada é aquela que mais deveria ter sido afagada.

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