David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for July, 2016

Eu e as proteínas de origem animal

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Me recordo da última vez em que vi galinhas confinadas (Foto: MDrX)

Nunca fui um verdadeiro fã de carne. Carne nunca foi algo que me fez muita falta. Comia carne branca ocasionalmente porque eu julgava como importante, até porque para onde eu olhasse havia alguma propaganda sobre as proteínas de origem animal. No meio da musculação, por exemplo, de cada cinco palavras ditas, uma costuma ser proteína. Dificilmente alguém toca no assunto sem dizer: “Proteína animal, proteína animal, proteína animal, alto valor biológico – filé de frango, claras de ovos, laticínios…”

Com isso em mente, cheguei a consumir até três gramas de proteínas por quilo corporal em uma fase da minha vida, principalmente proveniente de laticínios e ovos. Pode ter certeza que é muita proteína, e uma quantidade que eu vejo hoje como absurda, desconfortável e desnecessária. Comia até sem querer porque tinha um objetivo a ser alcançado. E isso deveria ser bom? Não creio. Sempre fui saudável, exames perfeitos desde a adolescência, mas com o tempo deixei de absorver a ideia de uma dieta altamente rica em proteínas animais como uma coisa boa.

Sou um ser humano, não uma máquina. E tenho certeza que minhas necessidades são sempre mais modestas do que eu costumava imaginar ou acreditar. E acho que se meu organismo não quer um alimento, não devo ir além. Perdi as contas de quantas pessoas conheci que comiam tanto com a intenção de ganhar massa muscular que chegavam a sentir ânsia de vômito. Se exercitar e se alimentar bem deve ser sempre algo positivo, não impositivo, porque há sempre o risco da reeducação alimentar se tornar um novo tipo de disfunção.

Também cheguei a comprar caixas de filé de frango durante um período da minha vida. E comia sem prazer – porque qualificava isso como importante para a minha saúde, condição física e estética. Mesmo distante dessa realidade há muito tempo, ainda sou a mesma pessoa, sem qualquer prejuízo. E estou empenhado em provar que definitivamente não preciso de alimentos de origem animal.

Além disso, me recordo da última vez em que estive em uma granja e observei as galinhas confinadas, privadas de liberdade, almejando pelo menos um espaço maior de circulação. Elas não pareciam felizes, e foi então que tomei a decisão de não consumir mais ovos – último alimento de origem animal que comi. Muito tempo antes, comecei a refletir sobre a forma como sempre defendi a igualdade, o respeito e a tolerância entre os seres humanos.

E por que não estender isso aos animais? Já tinha abandonado a carne há um bom tempo, mas enquanto consumia ovos e laticínios não conseguia me ver como um ser humano em posição de falar de forma justa sobre a igualdade e a importância da vida.

O leitãozinho da vitrine

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A verdade é que ninguém se importou com a sua presença até que o vidro começou a vibrar

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O leitãozinho passava despercebido pelos fregueses (Foto: Reprodução)

A fila do açougue parecia não ter fim, quase encostando em uma distante parede branca, onde centenas de pacotes de cereais preenchiam os expositores. Pessoas e mais pessoas compravam imensas quantidades de carne. “Me vê vinte quilos de costela!”, “Quero dez quilos de costelinha de porco!” Ah! E também sete quilos de linguiça toscana!”, “Não! Pedi quinze quilos de cupim!”, “Isso! Isso! Dezoito quilos de miolo de paleta!”

Carne moída, asinhas de frango, coxas e sobrecoxas, coxão mole, alcatra, fraldinha, maminha, bacon. A demanda era tão grande que um dos açougueiros teve de checar na sala de corte se ainda havia carne o suficiente para atender toda aquela gente. Alguns fregueses se desesperaram com a possibilidade de faltar um ou outro corte. “Pelo Amor de Deus! Se eu não conseguir um bom pedaço de picanha, sei nem o que fazer. É pra acabar com o feriado da família!”, reclamou um homem que empurrava um carrinho repleto de bandejas de carne congelada e resfriada.

Em meio ao ranger de dentes e roer de unhas, os mais discretos chutavam sutilmente as rodinhas do carrinho enquanto aguardavam a resposta do açougueiro, a quem foi dada a missão mais importante do dia. “Quero bife, mãe! Quero bacon, mãe!”, gritava uma criança chorosa de menos de oito anos. O carnólatra mirim abria tanto a boca para reclamar que não era difícil ver fiapos de carne entre seus dentes.

E quanto mais o açougueiro demorava, mais a tensão aumentava. Notei mãos trêmulas, gente coçando o próprio corpo, como se tomada por comichão. Enfim, olhares inquietos, expressões de desalento, raiva e reprovação engrossavam o baluarte da inquietação. Quando o açougueiro retornou, acenou com a cabeça e sorriu, uma multidão de clientes o aplaudiu.

Rapidamente as vozes e as palmas foram abafadas pelo som das serras elétricas fatiando colossais pedaços de costela. E ninguém se importava com a névoa de farelos de ossos que caíam sobre suas cabeças. Diante do álgido e sortido cheiro de carne, um leitãozinho era mantido sob a vitrine. Ele passava despercebido com uma maçã na boca. A verdade é que ninguém se importou com a sua presença até que o vidro começou a vibrar.

Os fregueses se entreolharam e não viram nenhuma mão ou perna humana tocando a vitrine. E do lado de dentro, o leitãozinho tentava quebrar o vidro com a maçã na boca. Fazia um esforço descomunal para se livrar da fruta. Quando conseguiu, grunhiu como nunca. Assustados, adultos gritaram e crianças choraram. Mas ninguém se emocionou mais do que o porquinho que escorregou sobre as próprias lágrimas.

“Meu Deus! Que isso! Que nojo! Que sacanagem! Um porco vivo! Que brincadeira de mau gosto! Misericórdia! Que maldade! Onde o mundo vai parar!”, diziam. A imagem do leitãozinho vivo fez os clientes abandonarem a fila do açougue, e se não por horror, por constrangimento. A exceção foi o homem que estava na fila para comprar picanha:

— O que o senhor quer?

— Quero o leitão.

— Mas, meu senhor, ele ainda está vivo!

— É assim mesmo que eu quero.

— Vou ver o que posso fazer.

— Então?

— Tá tudo certo! Pode levar o porco. O senhor paga isso aqui lá no caixa.

— Muito bem! Obrigado, amigo.

Naquele dia, o último cliente do açougue abandonou o carrinho onde transportava muitas bandejas de carne resfriada e congelada. Com o leitãozinho nos braços, atravessou o mercado e ignorou dezenas de olhares. No caixa, pagou por algo que não considerava mais um produto e caminhou até a saída como se embalasse um bebê. Lá fora, a noite não parecia escura e fria. Então o leitãozinho da vitrine encostou o focinho no ombro do homem e não chorou, somente cochilou.

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Written by David Arioch

July 17th, 2016 at 2:47 pm

O gato atropelado

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“Ele agarrou meu pé com as duas patas, agonizando e resfolegando com os olhos em minha direção” (Foto: Reprodução)

Saí há pouco de casa e não desci mais do que cinco quarteirões, quando vi uma grande poça de sangue no meio do asfalto e um animal aparentemente morto. Parei no meio da rua para tentar identificar alguma reação. De repente, o gato mesclado começou a se debater no asfalto. Desci, me aproximei e quando encostei a mão em seu pelo, ele agarrou meu pé com as duas patas, agonizando e resfolegando com os olhos em minha direção. A cena me surpreendeu porque normalmente quando encontro animais caídos no asfalto, eles estão mortos, mas não aquele que lutava pela vida com todas as forças.

Peguei ele nos braços, enquanto ele agonizava e o sangue escorria espesso de sua boca, e o levei até o senhor Ailton Salvador, excelente profissional e ser humano que prontamente me recebeu, medicou o bichano e se recusou a receber pelos cuidados. Hoje, o gato de quem não sei o nome e também não sei onde mora, vai ficar em observação na clínica. Agora resta ter fé na sobrevivência do gato, porque em bons seres humanos como o senhor Ailton eu continuo tendo com toda certeza, mesmo diante de exemplos desalentadores como do motorista que se recusou a parar para reparar o próprio erro.

Written by David Arioch

July 16th, 2016 at 2:05 am

O que aprendi frequentando a periferia

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É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida

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Alguns dos jovens com quem aprendi muito na Vila Alta (Foto: David Arioch)

Por meio de um amigo, o artista plástico Jesus Soares, comecei a conhecer melhor a periferia em 2009. Desde então, devo dizer que aprendi muito. Tem sido uma grande oportunidade de entendimento, sabedoria e desenvolvimento moral e ético. Gostei tanto da experiência que em 2014 produzi um documentário sobre a história da Vila Alta, um dos bairros mais pobres e marginalizados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.

Ao longo dos anos, conheci muitas crianças e adolescentes naquele lugar. E logo que comecei a observar seus hábitos e registrar suas experiências de vida, reconheci o balaio cultural que é a periferia. Na Vila Alta, os jovens têm linguagem própria, uma mistura curiosa de sotaques e gírias do Sul e do Sudeste do Brasil, além de neologismos tipicamente locais, o que renderia um bom trabalho de pesquisa em linguística.

Lá, os moradores buscam meios de se destacarem. Se não através da educação formal e do trabalho, pelo menos esteticamente. Crianças, adolescentes e jovens adultos pintam os cabelos com cores chamativas, fabricam brinquedos e maquininhas de tatuagem – se tatuam à sua maneira, personalizam os próprios tênis e roupas, e criam adereços jamais vistos em qualquer outro lugar, como anéis, pulseiras e colares baseados em matérias-primas inimagináveis. Também fazem arte com barbante para colocarem nos quadros das bicicletas e cantam músicas próprias sobre a realidade da periferia, só para citar alguns exemplos.

Interpreto tudo isso como consequência de um anseio. Eles não querem apenas viver, mas existir. Desejam respeito e reconhecimento, e acreditam que isso só pode ser alcançado se fizerem algo que a maioria não faz ou tiverem algo que a maioria não tem. Há muito tempo tenho notado adolescentes da periferia que sonham com roupas e calçados caros, mesmo que isso signifique gastar a maior parte do salário. E sem dúvida é uma meta normalmente depreciada por quem não faz parte daquele contexto.

Eu, por exemplo, venho de uma realidade diferente, onde roupas e calçados nunca significaram nada – cresci sem me importar com marcas. E só depois de adulto comecei a entender melhor porque jovens da periferia pagam tão caro em alguns bens. E quando penso nisso, sempre me recordo de uma situação que vivi na infância. Um dia, notei que um dos colaboradores da minha mãe, morador da periferia, usava um tênis recém-lançado que vi num comercial de TV, e aquilo me surpreendeu:

“Nossa! Que caro! Ele deve gostar muito de tênis”, pensei. Descobri mais tarde que o rapaz usava um caro par de tênis não apenas por gostar de tênis, mas porque era um meio de se destacar, de destoar da maioria. No universo dele, o tênis representava o mesmo que um carro para alguém de outro contexto social. E isso ajudava a elevar a sua autoestima.

Ponderando sobre o assunto, vejo como somos falhos ao julgar escolhas alheias, principalmente de quem vive na periferia. Afinal, todo mundo já ouviu uma pessoa criticando alguém por ter pagado tão “caro” em algo. Acho que se de algum modo aquilo proporciona algum bem-estar, que assim seja, é isso que importa, até porque não sabemos o que representa para o outro. É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida. O mundo é diverso, e parece-me que temos dificuldade em aceitar o fato de que ele não se resume à universalização de nossas crenças e inclinações.

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Written by David Arioch

July 14th, 2016 at 1:46 pm

Sobre a dor das plantas e o veganismo

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Por causa de veganos e vegetarianos que campanhas a favor da preservação da natureza são encampadas

Estudos sobre a dor das plantas ainda são inconclusivos (Foto: Reprodução)

Estudos sobre a dor das plantas ainda são inconclusivos (Foto: Reprodução)

Uma das imagens que mais tenho visto compartilhada por pessoas que não são vegetarianas ou veganas é uma que induz à ideia de que as plantas sentem dor. E isso curiosamente, embora até então não tivesse nenhum respaldo científico, hoje vai ao encontro de uma matéria controversa e de interpretação variegada publicada pela Deutsche Welle, na Alemanha, envolvendo um trabalho de pesquisadores do Instituto de Física Aplicada da Universidade de Bonn.

Embora o título da matéria, também veiculada no Brasil e em Portugal, dê a entender, logo no título e na linha fina, talvez como chamariz, que as plantas sentem dor, o próprio trabalho informa que não é bem assim. O estudo, encampado por cientistas da área de física aplicada, não de biologia, é baseado em sinais de comunicação, e responder a um sinal de comunicação não é atestado de sensibilidade.

Ainda assim, não deixa de ser um trabalho relevante quanto à captação e transmissão de estímulos. Porém, se pensarmos nos animais, já foi provado que eles têm sensibilidade inclusive superior à humana pelo fato de serem incapazes de racionalizar as próprias emoções. Logo eles sentem dor, e muita, algo que é provado independente da ciência.

Mesmo usando o método acústico-etileno, os pesquisadores alemães também não conseguiram provar que plantas têm sentimentos. Já os animais, sabemos que sim. Ademais, animais têm vida social complexa como as dos seres humanos, basta ver a forma como eles se relacionam com seus filhos.

Além disso, é um equívoco muito comum alguém crer que veganos e vegetarianos não atribuem valores às plantas. Muito pelo contrário. É justamente por causa de veganos e vegetarianos que muitas campanhas contra o desmatamento e a favor da preservação da natureza são encampadas. Ninguém combate mais isso do que pessoas que se recusam a consumir alimentos de origem animal, já que a destruição da natureza hoje em dia está mais relacionada à crescente destinação de espaço para a criação de animais e produção de ração.

Conversando sobre esse assunto, dias atrás um amigo me perguntou o que eu faria se hipoteticamente fosse provado que as plantas sentem dor. Bom, eu continuaria trilhando meu caminho, já que um vegano precisa de uma área 18 vezes menor para se alimentar do que quem não é. Minha prioridade é proporcionar o menor impacto possível aos seres vivos enquanto eu viver, e vou me adaptando às novidades sem problema algum. Jamais desconsiderei a importância das plantas. Penso que tudo que compõe a natureza é belo e essencial à sua maneira, independente de níveis de sensibilidade.

Comentei também que acho um grande erro qualificar um vegano como elitista ou elitizado, porque acredito que é exatamente para não parecer assim que muitos aderem ao veganismo. Considero até uma contradição chamar um vegano de elitista. No meu caso, tento viver sob o princípio da igualdade – não me sinto superior a nenhum animal. Por isso optei por não me alimentar deles. É um estilo de vida que condiz com a minha essência, e não falo só de valores morais e éticos. Acredito que muitas pessoas já nascem para o veganismo, mas muitas vezes só descobrem isso muito tempo depois, quando notam ou sentem os sinais que os levam para esse caminho.

Written by David Arioch

July 10th, 2016 at 1:34 pm

José Oiticica definia o consumo de carne como um vício social

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Para o escritor e anarquista, a saúde humana deve envolver a alimentação vegetariana

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Oiticica via a doença como consequência da violação das leis biológicas (Acervo: Biblioteca Nacional de Portugal)

“Ele comprovou ser o homem, como primata (pelo seu tubo digestivo, intestinos, glândulas, fórmula dentária, por sua estrutura anatômica, por sua natureza, enfim), animal vegetalivoro, como muitos povos orientais e habitantes de aldeias da Europa, e não carnívoro, como as feras. Compreendeu então que a doença apareceu no homem, como nas plantas, em consequência de um erro de nutrição. A doença é, assim, uma decorrência da violação das leis biológicas, como que uma punição da natureza. Oiticica converte-se então ao vegetarianismo e a abstinência e combate ao álcool e o tabaco, discorrendo em muitas conferências sobre esses vícios sociais”, escreveu o anarquista e vegetariano Roberto das Neves, reproduzindo a visão do amigo anarquista, poeta, filólogo e ativista vegetariano José Oiticica no livro “Ação direta: meio século de pregação libertária”.

Oiticica já era vegetariano em 1912, e desde então assumiu a posição de conciliar sua ideologia política com a defesa do vegetarianismo. De acordo com Neves, ele abandonou o curso de medicina quando conheceu livros sobre evolucionistas e naturalistas que qualificavam a alimentação como a melhor forma de prevenção e combate às doenças.

“Sempre fui meio rebelde. Ainda garoto fui expulso do seminário São José porque recusei a mão à palmatória. Mas acabei indo para a Faculdade de Direito e com tal crença que disputei sempre os primeiros lugares com Levi Carneiro, que foi da minha turma. Pois, assim, com uma crença sagrada no direito, fui ao Fôro levar um alvará para registro. O oficial do registro me cobrou 13$600, quando o Regimento de Custos marcava para o caso apenas 3$600. Protestei. O homenzinho foi peremptório: ‘Não me interessa o que o Regimento diz. Eu preciso viver’. Após isto larguei o direito”, revela José Oiticica em entrevista ao jornalista Mario Camarina em “Confissões de um Anarquista Emérito”, publicada na revista O Cruzeiro de 23 de maio de 1953.

Oiticica defendia que todo anarquista deveria tornar-se vegetariano e trabalhar em prol da extirpação dos vícios. Segundo ele, a saúde do homem, tanto física como mental, deve envolver a alimentação vegetariana e uma nova relação com a natureza, com o corpo e com a mente. “A inteligência e o aprofundamento intelectual, o exercício da vontade associado à moral, a habilidade e a solidariedade, são elementos essenciais para o progresso humano. A forma pela qual os indivíduos usam as suas energias em relação às energias cósmicas como o sol, o ar e a terra chama-se trabalho”, declarou em registro publicado no livro “Nem barbárie Nem Civilização”, de Tereza Ventura.

Entre os anos de 1911 e 1955, José Oiticica lançou 14 livros de poesia, teoria anarquista e filologia. Também escreveu as peças teatrais “Azalan!”, “Pedras que Rolam” e “Quem os Salva”. “Publicou obras de sociologia e linguística, inclusive em jornais populares; difundiu o vegetarianismo entre os trabalhadores; além de ter deixado obras espiritualistas como o opúsculo ‘Os Sete Eu Sou’ e uma tradução dos ‘Versos Áureos’, atribuídos a Pitágoras”, comenta Tereza.

Oiticica vivia um conflito entre o espírito ativo e ativista, portador de conceitos de uma visão política, e o espírito sensível e inspirado de um poeta preocupado com a natureza humana, segundo o artigo “Anarquia nos Sonetos de José Oiticica”, de Maria Aparecida Munhoz de Omena. Considerado pré-modernista, ele produziu muitos sonetos, principalmente nos anos de 1911 e 1919. Ainda assim, passou despercebido pelas publicações que contam a história do modernismo no Brasil – talvez por suas inclinações ideológicas. “Uma primeira leitura do último livro que publicou em vida, ‘Fonte Perene’, de 1954, revela uma poesia vigorosa, à altura dos considerados bons poetas do período”, enfatiza Maria Omena.

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“Ele comprovou ser o homem, animal vegetalivoro” (Foto: Reprodução)

Idealista, José Oiticica que se dividia entre a literatura, o magistério e a militância anarquista, escreveu no livro “Princípios e Fins do Programa Anarquista-Comunista”, de 1919, que o fim mais alto do anarquismo é a elevação da plebe, dos verdadeiros produtores, a sentimentos e gostos aristocráticos, substituindo assim a democracia atual, calcada na ignorância e na pobreza, por uma aristocracia geral, humana. E como o poeta era um desdobramento natural do anarquista, suas insatisfações eram comumente transmitidas em seus poemas:

“Essa invisível causa, que eu procuro

nos meus tormentos de meditação,

inda é o mesmo problema ingrato e obscuro

Que atormenta homens bons desde Platão

 

Esse maldito sonho de ser puro

– Apurado na dor – é sonho vão:

E ira semeando dores no futuro…

Pobres sonhadores que virão!”

O falecido professor e filólogo Olmar Guterres da Silveira, membro da Academia Brasileira de Filologia, definia José Oiticica como um sujeito de semblante fechado, sem refinamentos elementares e de sobrecenho carregado. “Eis o exterior de um homem cujo brilho eterno desmentia a primeira impressão: culto, dedicado, agradável naquilo que fazia e suave no trato com os alunos”, assinalou. Oiticica faleceu em decorrência de infarto no Rio de Janeiro em 30 de junho de 1957, aos 74 anos. Após sua morte, o advogado e escritor Levi Carneiro o descreveu em matéria publicada no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, como um homem de virtudes físicas, morais e intelectuais que não gostava muito de aparecer. Preferia refugiar-se dentro de si mesmo, dedicando-se aos estudos.

O anarquista e escritor foi qualificado como um homem que nada ambicionava a não ser o saber: “Nada receava, senão errar. (…) Erudito, cada vez mais refugiado no seu pensamento, não deserdava das ideias que afirmava, nem transigia com os interesses criados numa sociedade da qual se considerava parte”, publicou o Correio da Manhã, também do Rio de Janeiro, no dia 2 de julho de 1957. É atribuída a José Oiticica uma frase que parece referenciar criticamente tanto as desigualdades sociais quanto a relação da humanidade com os animais: “Quem vence um fraco, sempre sai vencido.”

Saiba Mais

José Rodrigues Leite e Oiticica nasceu em 22 de julho de 1882 em Oliveira, Minas Gerais. Era o quarto filho do senador e constituinte Francisco Leite e Oiticica.

Referências

Neves, Roberto. José Oiticica: Um anarquista exemplar e uma figura ímpar na história do Brasil – Rio de Janeiro (1970).

Oiticica, José. Ação Direta: meio século de pregação libertária. Introdução e notas de Roberto das Neves. Rio de Janeiro. Editora Germinal (1970).

Ventura, Tereza. Nem Barbárie Nem Civilização! São Paulo. Annablume (2006).

Omena, Maria Aparecida Munhoz. Anarquia nos sonetos de José Oiticica. Revista Litteris (2009).

Junior, Renato Luiz Lauris. José Oiticica: reflexões e vivências de um anarquista. Universidade Estadual Paulista (2009).

Camarina, Mario. Confissões de um Anarquista Emérito. Revista O Cruzeiro, 23/05/1953. Ano XXV. Nº 32.

Silveira, Olmar Guterres. Para um ideário do professor José Oiticica. Revista Idioma. Nº 20 (1998).

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Dias Fernandes: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter”

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O poeta e jornalista paraibano que lutou pelo vegetarianismo nas primeiras décadas do século 20

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Dias Fernandes: “Vegetarianismo quer dizer vida de acordo com a natureza”

Teria uns 45 anos. Frugal e vegetariano, nem fumava, nem bebia. Apresentava um aspecto juvenil de atleta, mantendo a forma através da ginástica sueca. Era alvo e corado, o cabelo esvoaçante, castanho claro. Algumas vezes ostentava petulante monóculo nos olhos azuis. Foi quem inaugurou andar sem gravata e sem chapéu. Com essas palavras, o intelectual Osias Gomes narra a chegada do jornalista, escritor e ativista vegetariano Carlos Dias Fernandes à redação do jornal A União, de Parahyba do Norte, atual João Pessoa, em 1919. Gomes dizia que Fernandes era o maior poeta da Paraíba, inclusive considerava seu trabalho superior ao de Augusto dos Anjos.

E para além das preferências pessoais, de acordo com o jornalista paraibano Gonzaga Rodrigues, Fernandes fez do Jornal A União uma escola de jornalismo por onde passou quase toda a juventude intelectual das primeiras décadas do século 20. Era muito admirado e respeitado, e justamente porque destoava da maioria. Não se importava com casamento formal, tinha uma dieta avessa à das pessoas com quem convivia, gostava de atividades físicas, se vestia sem atender as normas sociais e possuía imensa bagagem cultural.

“Aos 15 anos, segundo testemunho de Castro Pinto, amigo de infância, Carlos Dias Fernandes confundia os professores na análise gramatical dos mais difíceis trechos de Os Lusíadas. Foi influenciado por Cruz e Sousa [de quem era muito amigo] e esteve ao lado de outras diversas personalidades jornalísticas e poéticas do cenário brasileiro. Atuou na imprensa de Pernambuco, do Rio de Janeiro, do Pará e da Paraíba. Sua obra é extensa e variada, abarcando romances, discursos, poesias, monografia e livro didático”, informa a pesquisadora Fabiana Sena.

Embora hoje não seja muito conhecido fora do meio literário paraibano, o satírico e prosaico Fernandes lançou importantes obras, como Solaus, de 1901; Palma de Acantos, de 1907; A Renegada, de 1908; O Cangaceiro, também de 1908; Mirian, de 1920 e A Vindicta, de 1931. No entanto, se suas qualidades literárias não fizeram dele um autor famoso, as suas perspectivas sobre o ideal civilizatório fizeram menos ainda.

Um homem à frente do seu tempo, ao longo de anos realizou conferências e palestras sobre vegetarianismo, defendendo que a abstenção do consumo de alimentos de origem animal era o único meio de assegurar o respeito aos animais em um contexto moral e ético. E para reafirmar sua posição, o autor apresentou argumentos envolvendo saúde e higiene, considerando-os imprescindíveis como ferramentas de convencimento.

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Fernandes foi diretor do Jornal A União, de João Pessoa (Acervo: A União)

Controverso, Carlos Dias Fernandes chamou muita atenção quando publicou na edição de 5 de junho de 1918 do Jornal A União uma matéria em que defendeu fervorosamente a prática da medicina natural, confrontando laboratórios farmacêuticos. Também realizou uma grande conferência sobre feminismo em 1924, justificando que os direitos e deveres das mulheres precisavam estar de acordo com suas aspirações. Muito antes de livros como The Sexual Politics of Meat: A Feminist-Vegetarian Critical Theory, de Carol J. Adams, lançado em 1990, o escritor já argumentava que as mulheres, de forma semelhante aos animais, eram subjugadas, privadas de liberdade.

Para Fernandes, a melhor forma de ampliar a aceitação do vegetarianismo seria incentivando o desenvolvimento intelectual das mulheres e preparando-as para ocuparem grande espaço na vida pública. Ele tinha fé que elas poderiam ser o novo norte de uma educação que mostrava às crianças, logo nos primeiros anos, a importância de uma alimentação isenta de ingredientes de origem animal.

Suas inclinações ideológicas tiveram pouca repercussão no Brasil, mas foram bem recebidas na Europa, tanto que Fernandes aparece com destaque na edição Nº 11 da revista portuguesa O Vegetariano, de 1917. Prolífico, o escritor publicou 38 livros, abordando inclusive temas como feminismo e direitos dos animais. Oscilando principalmente entre o naturalismo e o simbolismo, Dias Fernandes obteve prestígio quando lançou em 1936 o seu romance autobiográfico Fretana, inspirado pelo simbolismo francês.

Sua defesa do vegetarianismo era frequentemente publicada no jornal A União, onde ele tinha total liberdade sobre o que escrever. Exemplos são três matérias veiculadas em agosto de 1916 sob o título O Regime Vegetariano, um desdobramento do que Fernandes já defendia no livro Proteção aos Animais, de 1914. Na obra, Fernandes, que não era religioso, cita religiões e crenças que endossam o papel do ser humano como protetor dos animais e da natureza. Polêmico, chegou a discutir com profissionais de saúde da época que defendiam o consumo de carne. Talvez o maior exemplo tenha sido a sua rixa com o então conceituado médico José Maciel.

A seu favor, o poeta e jornalista tinha o médico higienista Flavio Maroja que publicou no jornal A União de 30 de agosto de 1916 um artigo intitulado Hygiene Alimentar: Regimen Vegetariano e Regimen Carneo, confronto de opiniões, como penso a respeito, que fala dos benefícios do vegetarianismo. Em 26 de janeiro de 1917, Carlos Dias Fernandes comemorou a fundação da Sociedade Vegetariana Brasileira, sediada no Rio de Janeiro, e publicou matéria sobre o assunto. “Vai ganhando surto em todo mundo civilizado o regime vegetariano como solução prática do problema moral, economico e therapeutico dos povos. (…) Vegetarianismo quer dizer vida de accôrdo com a natureza”, registrou.

Segundo a pesquisadora Amanda Sousa Galvíncio, Fernandes reforçava seus argumentos sobre o assunto através de referências internacionais. Algumas delas foram os médicos Dujardin-Beaumetz, do Hôpital Cochin, na França; João Bentes Castel-Branco, autor do livro A Cultura da Vida, e Amilcar de Souza – diretor da revista O Vegetariano, além do biólogo Ernest Haeckel e do químico Eduard Buchner.

Porém, foi a própria literatura que conduziu Carlos Dias Fernandes ao vegetarianismo. Ele deixou de consumir alimentos de origem animal depois de ler Liev Tolstói, Lord Byron e Jean-Jacques Rousseau. Conforme Amanda Galvíncio, Fernandes citava com frequência pensadores como Sócrates, Hipócrates e Plutarco, além do Buda e Jesus Cristo, principalmente em suas palestras.

O que também reafirma a influência do vegetarianismo na vida e na obra do poeta são seus personagens que não raramente eram animais. No geral, a natureza sempre foi um tema recorrente em seus poemas e contos. Nascido em Mamanguape, na região da Mata Paraibana, em 20 de setembro de 1874, Carlos Dias Fernandes faleceu no Hospital da Cruz Vermelha no Rio de Janeiro em 9 de setembro de 1942.

Infelizmente, poucas pessoas compareceram ao seu enterro, um intrigante paradoxo na vida do homem que vivia rodeado de pessoas. Em seus últimos versos, jamais publicados, os animais ainda ocupavam posição de destaque. E apesar de esquecido pela literatura que tanto amou, uma de suas frases mais famosas, sobrevive ao tempo: “Fazer mal aos animais é indício de mau-caráter.”

Briário e Centímano (um dos poemas mais conhecidos de Fernandes)

Solitário coqueiro miserando,

Que as tormentas não deixam sossegar!

E, de contínuo, as palmas agitando

Pareces um vesânico a imprecar.

 

Desgraçada palmeira, como e quando

Irão teus pobres dias acabar;

E com eles ou teu destino infando

De cativo da Terra ao pé do Mar?

 

Hemos conformes nossos tristes fados.

Tu, germente Briaréu dos vendavais

Eu, Centímano de cem mil cuidados.

 

Um retorcido aos ventos outonais

Outro com os seus anelos sossobrados…

Nem sei qual de nós dois braceja mais

Saiba Mais

Carlos Dias Fernandes assumiu a direção do jornal A União em 1913. O convite foi feito em 1912 por Castro Pinto. Em 1928, o governador João Pessoa o demitiu do cargo. Desapontado, ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde viveu até falecer.

Referências

Galvíncio, Amanda S. Atuação Educacional de Carlos Dias Fernandes na Parahyba do Norte (1913-1925): jornalismo, literatura e conferências (2013).

Sena, Fabiana. A tradição da civilidade nos livros de leitura no Império e na Primeira República. João Pessoa, PB. Tese de doutorado. PPGL/UFPB (2008).

Sena, Fabiana. A imprensa e Carlos Dias Fernandes: o processo de legitimação como autor de livro didático. Educação Unisinos, vol. 15, núm. 1, enero-abril, 2011, pp. 70-78.

Coutinho, Afrânio; Sousa, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo. Editora Global (1995).

O Vegetariano: mensário naturista ilustrado, Volume VIII, Nº 11 (1917).

Rodrigues, Gonzaga. Surgimento de A União. Disponível em http://auniao.pb.gov.br/nossa-historia/a-uniao-uma-viagem-no-tempo/leitura-contextual-do-surgimento-de-a-uniao.

Vegetarianismo. Imprensa Oficial. Parahyba (1916).

Santos, Idelette Fonseca. Antologia Literária da Paraíba. João Pessoa. Grafset (1993).

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O budismo e a dieta vegetariana de Allen Ginsberg

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O expoente do movimento beat passava semanas comendo aloo gobi, um de seus pratos preferidos

GINSBERG

Ginsberg gostava muito de cozinhar pratos vegetarianos (Foto: Reprodução)

Allen Ginsberg entrou para a história da literatura contemporânea como um dos pilares da geração beat. Dentre seus livros de poesia, até hoje o mais importante continua sendo Howl and Other Poems (Uivo e Outros Poemas), obra lançada em 1956 que não levou muito tempo para chegar a um milhão de cópias vendidas. No entanto, o que pouca gente sabe é que para além de uma literatura confessional e combativa, também considerada obscena, Allen Ginsberg era um adepto da dieta vegetariana.

E o que aproximou o poeta beat do vegetarianismo foi o seu relacionamento com um mestre de meditação tibetano. Em 1974, Chögyam Trungpa fundou em Boulder, no Colorado, o Naropa Institute, mais tarde transformado na primeira universidade de budismo da América do Norte. Interessado em conciliar a cultura oriental com a ocidental, ele contratou William Burroughs para dar aulas de literatura e Allen Ginsberg para lecionar poesia. O contato com Trungpa fez com que o poeta beat se tornasse seu discípulo, o que não aconteceu com Burroughs.

Porém, aquele não foi o primeiro contato de Ginsberg com o budismo. Na década de 1960, ele já tinha viajado para a Índia. Embora não fosse uma viagem com finalidade espiritual, o poeta fez questão de conhecer importantes mestres da meditação como Gyalwa Karmapa e Dudjom Rinpoche, o que teve grande influência sobre seu comportamento.

Maior prova disso é que em 1968, durante um protesto que antecedeu a Convenção Nacional Democrática em Chicago, o beat subiu ao palco para tentar unir e acalmar a multidão, preocupado que a polícia pudesse intervir com violência. De repente, Ginsberg começou a pronunciar “Om! Om! Om!” de forma errada, o que não passou despercebido por um espectador indiano que jamais esqueceu daquela cena. À época, o poeta reconheceu que o budismo, apresentado a ele pelos beats Jack Kerouac e Gary Snyder, não era apenas uma tendência, mas algo que ele gostaria de abraçar como filosofia de vida.

Ainda assim, Ginsberg precisou de 30 anos para entender que no budismo o som não era mais importante que a concentração. “Seu erro foi se manter mais focado no som do mantra do que em seu significado. Ele usava os mantras para transmitir mensagens escritas durante suas viagens de carro pelos Estados Unidos. Allen Ginsberg viu nisso uma forma de impressionar seus ouvintes e leitores ocidentais sobre os valores orientais que ele aceitou ou considerou aceitar”, escreveu Jenny Skerl no livro Reconstructing the Beats, lançado em 2004.

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Cold summer borscht, uma das sopas preferidas de Ginsberg (Foto: Reprodução)

Nos anos 1970, Allen Ginsberg passava até semanas isolado e meditando, colocando em prática o que aprendeu com Trungpa. Essa filosofia teve tanta influência sobre sua vida que em 1990, em entrevista à Harper’s Magazine, ele afirmou que estava completamente livre das drogas e de qualquer tipo de agitação. “Tenho vivido muito tranquilamente, seguindo dieta vegetariana, vendo poucas pessoas e lendo muitas obras religiosas, como São João da Cruz, a Bíblia, Fedro [Platão], Santa Teresa de Ávila e [William] Blake. Estou em um tipo de solitude, em modo contemplativo”, revelou.

Como adepto da dieta vegetariana, Ginsberg tinha preferência por pratos como aloo gobi, muito popular em países como Índia, Nepal, Paquistão e Bangladesh. Feito à base de batata, couve-flor e especiarias, ele definia o alimento que ele conheceu através do beat Gary Snyder como uma grande refeição vegetariana de 15 centavos. “Passo semanas comendo só isso”, confidenciou o poeta.

Segundo Snyder, era preciso apenas algumas batatas e uma cabeça de couve-flor para garantir sustância por vários dias de produção poética. “A comida faz toda a diferença no estado físico e mental. E não preciso ser um hare krishna para dizer isso”, enfatizou quando apresentou o aloo gobi ao amigo.

Allen Ginsberg gostava muito de preparar o seu cold summer borscht, baseado em doze beterrabas bem lavadas e fatiadas em tiras. A receita também incluía duas batatas, cebolas fatiadas, tomates fatiados, pepinos e rabanetes. Os caules e as folhas eram picados como em uma salada primavera. Ele cozinhava todos os ingredientes juntos e com moderada quantidade de sal. Deixava a sopa ferver por uma hora ou mais, até o ponto em que ela ficava bem vermelha, com as beterrabas visivelmente macias.

“Adicione açúcar e suco de limão para deixar o líquido doce e ao mesmo tempo azedinho. Ela rende quatro litros. Sirva com sour cream”, escreveu em um papel. Allen Ginsberg ficava muito feliz em cozinhar para seus visitantes. Ele adorava preparar sopas, tanto que instalou um suporte do lado de fora da janela da cozinha para arrefecer sua panela de 12 litros.

Excerto de Howl (Uivo)

Eu vi os expoentes da minha geração destruídos pela loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,

arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,

hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo contato celestial com o dínamo estrelado na maquinaria da noite,

que pobres, esfarrapados e olheiras fundas, viajaram fumando sentados na sobrenatural escuridão dos miseráveis apartamentos sem água quente, flutuando sobre os tetos das cidades contemplando jazz,

que desnudaram seus cérebros ao céu sob o Elevado e viram anjos maometanos cambaleando iluminados nos telhados das casas de cômodos

que passaram por universidades com olhos frios e radiantes alucinando Arkansas e tragédias à luz de Blake entre os estudiosos da guerra…

Saiba Mais

Allen Ginsberg nasceu em 3 de junho de 1926 em Newark, Nova Jersey, e faleceu em 5 de abril de 1997 em East Village, Nova York.

Referências

Skerl, Jenny. Reconstructing the Beats. Palgrave Macmillan (2004).

Silberman, Steve. Ginsberg’s Last Soup. New Yorker (March 19, 2001).

Ginsberg, Allen. The Letters of Allen Ginsberg. Philadelphia, Da Capo Press (2008).

Ginsberg, Allen. Howl and Other Poems. City Lights Publishers; Reissue Edition (2001).

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A barba e o menino Yusuf

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“Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”

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Porto Said quando Francisco chegou ao Egito com o Batalhão de Suez (Foto: Reprodução)

Quando eu era bem mais jovem, jamais tinha cogitado deixar a barba crescer. A verdade é que nem mesmo sabia se havia uma barba a se desenvolver. No entanto, desde muito cedo fiquei intrigado com a quantidade de pensadores e escritores barbudos até o início do século 20.

Dentre os brasileiros, minhas primeiras lembranças da época do colégio envolvem autores como Machado de Assis, José de Alencar e Gregório de Matos. Não sei se o fato de cultivarem barba era uma preferência com motivação estética ou se tinha relação com o zeitgeist. Ademais, reconheço também que antigamente era costume manter os pelos faciais para velar imperfeições e cicatrizes provocadas por doenças como a varíola.

Pensando internacionalmente, Platão, Chaucer, Melville, Victor Hugo, Ibsen, Tolstói, Dostoiévski, Whitman, Bram Stoker, Hemingway, D.H. Lawrence, Bernard Shaw e Ginsberg são alguns barbudos que me veem a mente no momento. E analisando períodos, é justo dizer que desde os primórdios da filosofia e da literatura, a barba se fez presente, e aqui não falo como forma de distinção social, e sim como um recurso de construção pessoal. Porém, hoje, diferente de outros tempos, barbas volumosas e longas são quase sempre associadas a hipsters, terroristas e fanáticos religiosos. E claro, partidos políticos.

Pensando nisso, me lembrei de uma singular experiência após me tornar barbudo. Um dia, saí de manhã, por volta das 8h, e fui até a casa de um senhor chamado Francisco que chegou a Paranavaí em 1944. Ele concordou em me conceder uma entrevista sobre os tempos de colonização do Noroeste do Paraná. Em frente à sua casa, toquei a campainha e observei um cãozinho rolando dentro de uma casinha de madeira.

Não demorou e alguém gritou da distante varanda: “Entre, meu filho. Venha até mim.” Abri o portão, subi alguns degraus e atravessei o jardim. Lá estava ele, alto e magro, sentado numa confortável cadeira acastanhada de madeira com estofado bege. Sob seus pés, havia uma porção de areia lavada dentro de uma caixinha. “Legal esse senhor!”, pensei depois que nos cumprimentamos com um firme aperto de mão. De repente, ele olhou nos meus olhos com atenção e comentou: “Aposto que você entende mais disso do que eu.” Não captei a mensagem e notei seus pés afundando lentamente na areia.

“Areia é vida, não é mesmo? Quantos tons de areia você consegue reconhecer?”, questionou. Fiquei confuso e ri, suspeitando que o homem estivesse alcoolizado ou sob efeito de forte medicação. Ainda assim, respondi: “Depende da incidência do sol, dos fatores de ação e reação. Hum…pensando bem, acho que consigo identificar 25 a 30.”

— Esplêndido! Eu já imaginava algo assim. Desconfiei logo que vi – declarou.

E a conversa tomou um rumo completamente diferente, me deixando por vezes hesitante. Pouco falamos sobre a sua vida porque a maior parte das perguntas era feita por ele. “Nunca imaginei que um dia o veria falando português. Surpreendente, filho!”, assinalou nos primeiros dez minutos com um sorriso dúbio.

Ele divagava bastante, e ocasionalmente pedia para ver a palma da minha mão. “Você pode não ver, só que os traços da sua mão dizem muito sobre a sua barba. E tolo daquele que resume a barba a pelos sobre a face. Ela diz muito a respeito dos caminhos da vida do homem. Ela, na sua sinuosidade, é como uma extensão física da própria mente. Sei disso porque cultivo barba há quase 60 anos”, defendeu, tocando a barba branca e já rala que cobria o queixo. Então lamentou que aos 86 anos não tivesse mais a barba de 20 anos antes.

Também notei seus olhos úmidos quando ele se curvou e deslizou o dedo indicador dentro da caixinha de areia. Algumas lágrimas pingaram dolorosas, como se saídas de um conta-gotas. Vendo aquilo, me desculpei e sugeri que talvez fosse melhor marcarmos a entrevista para outro dia. Trêmulo, Francisco se levantou e pediu para me dar um abraço.

— Claro, Seu Francisco – respondi.

Quando suas mãos enrugadas e translúcidas me envolveram, ouvi seus refreados soluços e seu coração palpitando. “Agora eu até poderia fazer a barba”, sussurrou, fragilizado. Logo ele esmaeceu. Gritei e sua esposa apareceu. Pediu que eu o colocasse na cama. Desmaiado, preservava expressão serena e sorriso delgado. Em respeito, não pedi explicações, me despedi e caminhei até a varanda, onde encontrei ao lado da cadeira uma foto de uma criança de sete ou oito anos sentada sobre os ombros de Francisco ainda jovem.

Na semana seguinte, fiquei sabendo que o garotinho sorridente da foto era um órfão egípcio que seria adotado por Francisco, um ex-soldado do Batalhão de Suez. Em 1957, o menino chamado Yusuf morreu em seus braços, depois de ser alvejado na cabeça por um soldado israelita em missão em Porto Said. “Nunca mais vou fazer a barba na minha vida, nunca mais! Juro por tudo neste mundo, a não ser que Yusuf retorne à vida”, teria gritado Francisco aos prantos naquele dia.

Musculação, uma forma de terapia

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A musculação pra mim sempre foi uma forma de terapia

Recentemente fui ao ortopedista levar o resultado do meu exame de ressonância magnética. E o resultado, para a minha alegria, foi que posso continuar praticando musculação, já que minha hérnia de disco não piorou. Ou seja, não me impede de me exercitar. Perto de completar dez anos de musculação, foi como um presente. Muitas pessoas abandonam a musculação quando descobrem uma hérnia de disco.

Eu fiz o contrário, comecei a treinar justamente quando recebi o diagnóstico de um ortopedista que há mais de dez anos me disse que eu não poderia praticar musculação. Sim, contrariei suas recomendações porque eu não via sentido nisso, já que a musculação promove justamente o fortalecimento muscular. Sua sugestão me pareceu contraditória demais.

Apesar de saber que ainda hoje, e infelizmente, muitas pessoas qualificam a musculação como uma atividade meramente narcisista, superficial ou fútil, isso não condiz com a realidade. E eu sou a prova disso. Musculação, além dos benefícios que todo mundo conhece, foi a melhor forma de terapia que encontrei até hoje. Passo a maior parte do dia lendo e escrevendo, e isso gera um grande desgaste mental.

Então a musculação entrou na minha vida como uma atividade divertida e prazerosa que me ajuda a relaxar. Sem dúvida, ao longo dos anos tive os mais diferentes objetivos na academia, mas desde sempre o mais importante para mim é a sensação de bem-estar ao levantar pesos. Hoje, mais do que nunca, posso dizer que o resto é apenas consequência.

Written by David Arioch

July 2nd, 2016 at 6:39 pm