David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Tolstói: “Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue”

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“Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois”

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Tolstói: ““A bacia enchia rapidamente, mas o boi estava vivo e continuava golpeando o ar com os casco” (Foto: Reprodução)

Em um dia quente de julho, uma sexta-feira, o escritor Liev Tolstói visitou mais um matadouro em Tula, ao sul de Moscou. Sentiu um odor de sangue ainda mais intenso do que da última vez. O trabalho dos açougueiros prosseguia, e ele observava o pátio cheio de gado. Também havia animais nos galpões adjacentes ao prédio central.  Carretas e mais carretas carregadas de bois, vacas e bezerros chegavam ao matadouro.

Em alguns carros puxados por cavalos, ele viu bezerros vivos empilhados com as patas para cima. Os veículos se aproximavam do matadouro e descarregavam. “Havia ainda outros carros com bois mortos, cujas patas se moviam conforme as sacudidas do veículo. Mostravam suas cabeças inertes, seus pulmões vermelhos e o fígado marrom. Todos saíam do matadouro. Junto à cerca, havia cavalos montados, que pertenciam aos fazendeiros. Estes, com suas longas blusas e de chicote à mão, iam e vinham pelo pátio, ou marcavam com alcatrão o gado que lhes pertencia”, escreveu Tolstói.

Depois de negociar o preço, os fazendeiros vigiavam o transporte do gado do pátio até o galpão, e de lá até o prédio. Todos pareciam preocupados por causa das negociações. Ninguém se importava se era uma boa ou má ação matar aqueles bois. Se importavam tanto com isso quanto com a composição química do sangue que escorria pelo chão”, lamentou o escritor russo.

Não havia nenhum açougueiro no pátio. Todos trabalhavam.  Ao final do dia, tinham matado pelo menos cem bois. Tolstói entrou no prédio central e ficou junto à porta. Ele não poderia entrar porque não havia espaço. Enquanto o gado se amontoava, o sangue gotejava do teto, espirrando nos açougueiros. “Se eu tivesse entrado, também mancharia minha roupa”, enfatizou.

O escritor russo testemunhou um dos homens derrubando um boi enquanto outro animal deslizava por uma das pistas. No mesmo local, um boi com as patas brancas já não agonizava. Morto, era esfolado por um açougueiro. Pela porta oposta, passava um boi vermelho e gordo. Ele resistia enquanto o arrastavam. Mal chegou à entrada, e um açougueiro o golpeou no pescoço com um machado.

Caiu pesadamente no chão, voltou-se de lado e moveu convulsivamente as patas e o rabo. Logo outro açougueiro se lançou sobre ele, pegou-lhe pelos chifres, e fez com que sua cabeça ficasse rente ao chão para que outro açougueiro o degolasse. Pela ferida aberta, o sangue vermelho escuro brotava como de uma fonte, e um menino sujo de sangue o recolhia com uma bacia de metal. Apesar de tudo, o boi se esforçava para não morrer. Não parava de se mover, sacudindo a cabeça e agitando involuntariamente as patas.

“A bacia enchia rapidamente, mas o boi estava vivo e continuava golpeando o ar com os cascos, o que obrigava os açougueiros a afastarem-se. Tão logo a bacia encheu, o rapaz a colocou na cabeça e a levou para a fábrica de albumina, enquanto outro menino trouxe outra bacia”, registrou Tolstói.

O boi esperneava desesperadamente. Quando cessou de correr o sangue, o açougueiro levantou a cabeça do boi e começou a esfolá-lo. O animal não tinha morrido. “Tinha a cabeça já esfolada e vermelha, com veias brancas. Sua pele pendia dos dois lados, e o boi não cessava de mover-se. Outro açougueiro pegou o boi por uma pata, a quebrou e a cortou: o ventre e as outras pernas continuavam estremecendo convulsivamente”, testemunhou o escritor russo.

Sem demora, alguns homens lhe cortaram os membros restantes e os lançaram em um monte, onde já havia muitos membros de animais. Depois arrastaram o boi, já sem vida, até a polia e o penduraram. Da mesma forma, morreram outros três bois. Todos passaram pelo mesmo processo; cortaram suas cabeças, cujas línguas pendiam entre os dentes. Às vezes, o açougueiro não acertava direito o golpe e o boi resistia e mugia enquanto jorrava sangue. Se esforçava para escapar de suas mãos. Sem chance, o arrastavam ao centro do prédio e o golpeavam até cair.

“De perto, vi repetir a mesma operação, e de que maneira se obrigava os animais a entrar. Cada vez que pegavam um boi do galpão e o arrastavam por meio de uma corda amarrada aos chifres, o animal, farejando sangue, resistia, mugia e retrocedia. Dois homens não conseguiram arrastá-lo à força. Então um dos açougueiros se aproximou, pegou o boi pelo rabo, o torceu e rompeu-lhe uma vértebra. O animal avançou temeroso. Quando terminaram de matar os bois de um pecuarista, deram início ao abate dos animais de outro”, confidenciou o escritor russo Liev Tolstói.

Referência

Tolstói, Liev. O Primeiro Passo (1892).

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