David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

O leite de clemência

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” Tem o gosto do céu! Que maravilha, Filó! Hoje meu coração está em paz”

milk

Pintura “Milk”, da artista vegana Dana Ellyn

Como fazia todos os dias, Eugênio acordou bem cedo no sábado para ordenhar Filomena, uma vaca baixinha que aprendeu, por força do tempo, a aceitar o seu próprio destino – servir como fonte de renda para um produtor rural.

Eugênio já não amarrava mais a corda no pescoço de Filomena, porque há mais de um ano ela sabia o que precisava ser feito. Sempre que o galo cantava sobre uma guarita que antes serviu como morada para um João-de-Barro, ela se levantava e caminhava em direção à porteira do pequeno curral.

Ficava imóvel, com olhos baixos e orelhas deitadas, às vezes esfregando suavemente os cascos na terra, esperando a chegada do patrão. Eugênio sabia que era hora da ordenha, não apenas por causa da balbúrdia do galo, mas também porque o sino no pescoço de Filomena revelava que ela estava pronta para o serviço.

“Bora tirar esse leite das tetas, Filó!”, dizia Eugênio diariamente e sorridente, sem titubear. A vaca não reagia. Só vez ou outra que emitia gemido prolongado e langoroso que ninguém entendia, nem Marcolino, o único médico veterinário do povoado. “Deve ser falta de algum nutriente. Vamos incrementar a alimentação dela”, sugeriu numa manhã árida de chão tão tracejado que quem via de longe pensava que estava diante de um mapa.

Um dia, Filomena parou de produzir leite e ninguém entendeu o motivo. Ela era considerada um dos animais mais saudáveis e invejados da colônia, ajudando a garantir não apenas o sustento da família de Eugênio, como também a alimentação de seus dois filhos.

— Que diabos eu vou fazer agora?

— Chame Seu Marcolino de novo, pai…

— Ah! Mas já faz mais de uma semana que a danada não dá nem uma caneca de leite, e o mais estranho de tudo é que ela tá com as tetas cheias.

— Chame o homem, pai! Ele vai saber o que fazer.

— Não sei se compensa, o tratamento deve ser caro.

— Não custa ver se vale a pena.

Seguindo a recomendação do filho, Eugênio chamou Marcolino. Ao contrário do que ele imaginava, o homem disse que não havia nada que pudesse ser feito, a não ser esperar. “Essa vaca é saudável. Não tem problema nenhum. Deve ser só teimosia, só que uma teimosia que nunca vi igual. Geniosa essa vaca, mais do que o senhor”, ironizou o veterinário às gargalhadas.

Na segunda semana, Filomena não permitiu que nenhuma gota fosse extraída de seus úberes. Simplesmente não saía nada durante a tentativa de ordenha. Quando Eugênio massageava o volume, ele berrava enraivecido ao sentir o leite no interior do animal. Estava fora do alcance do seu balde de lata.

— Eu que te criei, sua lazarenta. Como você faz isso comigo?

— Só não te bato aqui agora por consideração – ameaçou com a mão direita levantada em posição de golpe.

A vaca inclinou a cabeça em direção ao solo arenoso e ignorou a ameaça, como se entendesse, embora não se importasse. Ela parou de produzir leite quando seu último filho desapareceu, vendido para um matadouro onde foi reduzido à carne de vitela. Eugênio não queria o bezerro disputando o leite que “deveria ser somente dele e de seus filhos”.

— Eu que alimento a infeliz, então tudo que ela oferece me pertence.

Na terceira semana, o galo não cantou e Filomena não se levantou. Encolerizado, Eugênio correu até o galo e o derrubou de cima da guarita com um tapa certeiro nas ventas. O bicho se apressou em direção aos pinheirais e, miúdo, desapareceu sob o matagal.

Depois foi a vez de Filomena ser punida. Ele amarrou uma corda no pescoço da vaca e tentou arrastá-la para o centro do curral. Ela resistiu. Não queria sair de jeito nenhum. Com a ajuda dos dois filhos, Eugênio a deitou sobre a areia branca e pediu que Matias, o mais velho, buscasse um machado pendurado no fundo do celeiro.

O rapaz correu e voltou empunhando a ferramenta. Quando Eugênio ameaçou dar o primeiro golpe, a vaca gemeu e se contorceu na terra, levantando, com os cascos, uma cortina tão densa de poeira que ele e os filhos engasgaram. Logo a vaca cansou, e a poeira se dissipou. Havia sangue no chão, colorindo os riscos no solo, que ganhavam formas de vasos sanguíneos. Tão opaco quanto vívido, o líquido vermelho jorrava das tetas de Filomena.

Com o corpo exalando odor acre de terra e sangue, ela observou assustada os três. Mesmo com olhos fumegantes e muita vontade de extravasar a fúria que o dominava, Eugênio desistiu de matá-la naquele dia. Entrou em casa acompanhado dos dois filhos que não ousaram dizer palavra. “Se ela não der leite nos próximos dias, a gente mata”, avisou com voz oca e pertinaz. Matias e Mateus balançaram a cabeça em concordância, sem arriscar comentário.

Ao anoitecer, João dos Cascos, um dos primeiros sitiantes do Noroeste do Paraná, visitou a família e perguntou se Eugênio não queria vender Filomena. Ofereceu inclusive a sua propriedade, sua única fonte de renda, em troca da vaca. Achando aquilo um absurdo, Eugênio declinou a proposta.

— Não sei qual é a sua intenção com essa oferta descabida, mas saiba que Filomena não está à venda. É herança de família.

— O senhor me perdoe a intromissão. É que preciso de uma vaca como a sua.

— Essa tá doente e não vai ter serventia nenhuma pro senhor.

— Não tem problema. Me viro do meu jeito.

— Não adianta, não quero e não vou vender. Retire-se! Vá daqui!

Na quarta semana, assim que Eugênio acordou, ele viu através da janela o galo cantando. Filomena mantinha a cabeça escorada em uma das tábuas da porteira, e o sininho vibrava preso ao pescoço. Diante de suas patas, havia três baldes de leite, um leite diferente, singular, como ninguém daquela casa jamais experimentou.

— Tem o gosto do céu! Que maravilha, Filó! Hoje meu coração está em paz. Me perdoe por tudo que fiz. Por favor, aceite minhas desculpas.

A vaca não reagiu. Somente o observou, recuou e deitou em um canto onde o sol matutino aquecia uma porção de sua pele branca como o leite que Eugênio consumiu. Por três anos, todos os dias no mesmo horário, Eugênio, Matias ou Mateus recolheram os três baldes de leite. Até que noutra manhã, Filomena não levantou e o galo não cantou. Não havia leite nem balde. Só um animal que parecia preparado para encarar o destino. “Sem leite, sem vida”.

Antes do pôr do sol, Eugênio retornou com o machado. Absorto em ódio, cuspiu um naco de fumo em um pedaço de pasto e ignorou tudo à sua volta, mirando uma vaca teimosa “que já não merecia viver, não merecia sua compaixão”. Rodeou o animal e fez um círculo no chão com a lâmina, demarcando a área do abate. Antecipando o primeiro golpe, Filomena fechou os olhos e deitou a cabeça na grama, alongando o pescoço, talvez prevendo a própria decapitação. Eugênio estava tão furioso que, com mãos trêmulas, errou o primeiro golpe.

No mesmo instante, um rapaz bateu palmas na entrada do sítio, alegando que tinha uma entrega. Eugênio se aproximou com olhar suspeitoso e cumprimentou o jovem que se apresentou como Bernardo.

— Vim trazer uma carta ditada pelo meu pai João dos Cascos e uma garrafa de leite. Ele faleceu ontem, mas antes me fez prometer que eu viria visitá-lo.

Bernardo abriu a garrafa, tirou um copinho da mochila e insistiu que o homem experimentasse.

— É coisa boa, o senhor não se preocupe.

Eugênio tomou tudo em um gole. Assustado e boquiaberto, deixou o copinho cair de sua mão, se chocando contra o chão.

— Onde você conseguiu isso?

— Meu pai que inventou. É leite de clemência. Uma receita familiar. Não vem de bicho nenhum, vem da santidade da natureza que da gente exige muito pouco. O senhor gostou?

— Sim…é muito bom.

Quando abriu a carta, Eugênio viu que havia uma receita com todos os detalhes do preparo do leite de clemência, além de algumas observações e um pedido:

— Durante três anos, o senhor achou que seus filhos estavam ordenhando a Filomena, e eles pensavam o mesmo do senhor. E nenhum de vocês percebeu que aquele leite não era de vaca. O senhor sabe por que? Porque vocês precisavam do leite de clemência mais do que daquilo que julgavam mais importante. O que parecia essencial era somente distração. E aquele, meu senhor, era o único leite que todo ser humano deveria beber depois do desmame. Não, ele não é igual ao leite de vaca. É bem diferente. E quando pensamos que sim, é porque já não somos quem éramos. Sei também que o senhor se desfez de quase todos os animais de seu sítio, mantendo somente o galo e a vaca Filomena, que um dia ganhou de sua esposa, e em quem o senhor projetou a sua desilusão quando foi abandonado por sua mulher. Saiba que aquela a quem chama ‘carinhosamente’ de Filó, assim como todos os animais, tem sua própria vida e dor. Ou o senhor pensou na vaca quando mandou os filhos dela para o matadouro? Como exigir que um animal não reaja diante do sofrimento dos seus? Eles não falam, mas seus corpos sim. Diante disso, faço-lhe duas sugestões. Que o senhor aceite minha receita e liberte Filomena ou devolva a carta ao meu filho e entregue-se aos enganosos prazeres da soberba.

Eugênio levantou os olhos, deu uma olhadela em Filomena e mirou seriamente Bernardo. Sem dizer nada, caminhou até o curral com olhos marejados e balbuciou:

— Que um dia você me perdoe, ou não, porque aquele que vive para si mesmo pode ser que não viva para mais ninguém.

Amuada em um canto, Filó se levantou e seguiu em direção a Bernardo, acompanhada pelo galo. Quando a porteira se abriu, o último desejo se cumpriu.

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