David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Joana do Matadouro

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Um dos animais levantou a cabeça e observou silenciosamente os olhos de Joana

“Um dos animais levantou a cabeça e observou silenciosamente os olhos de Joana”

Enquanto as crianças choravam, Joana abriu a porta da geladeira e viu que não havia nada lá dentro, a não ser um pouco de água em uma garrafa pet. Ela já sabia disso, mas talvez por motivo de fé acreditasse que uma porção de alimentos pudesse brotar da porta. Ou, quem sabe, das planas divisórias de plástico, iluminadas por uma lâmpada que tremulava, ameaçando se apagar completamente a qualquer momento, assim como sua própria vida.

Com as mãos no rosto, sentiu o palato arder e se esforçou para não gritar e esmurrar a parede com o pouco de força que restara. Não teve coragem de pedir novamente ao vizinho que “emprestasse” uma xícara de arroz e feijão. Quando o silêncio tomou conta da casa, ela sabia que as crianças já estavam dormindo:

— Eu morreria aqui agora pela salvação dos meus filhos. Eles não merecem sofrer por minha causa – balbuciou diante de uma vela, a única luz da casa após o corte de energia elétrica no final da tarde.

Depois de receber cesta básica por três meses, Joana não tinha mais a quem recorrer, e por ter sido abandonada, muitos a culpavam, dizendo que ela era um fracasso como mulher – “incapaz de atender as necessidades do marido”. Quando saía às ruas, vez ou outra ouvia alguma ofensa. Em vez de reagir, ela ignorava. Preferia se preocupar somente com os filhos, e deixar que a vida se encarregasse do resto.

Em uma tarde de domingo, o vizinho João Batista contou que abriram uma vaga no Frigorífico Areia Nova, onde ele trabalhava como motorista há mais de dez anos.

— Só que é na linha de abate, serviço que pode ser desagradável e pesado às vezes. O salário não é dos melhores, mas já é alguma coisa. Se for do seu interesse, posso levar a senhora lá.

Com a experiência de quem já trabalhou no corte de cana e na colheita de mandioca, a palavra “pesado” não assustava ou incomodava Joana, mas sim a ideia de matar animais para sobreviver. Por isso, hesitou por dois dias até concordar em participar do treinamento na linha de abate.

Em uma manhã, pegou carona com João Batista, e na cabine do caminhão sentiu um estranho cheiro agridoce. Notando a reação, o vizinho explicou:

— Deram nos córneos dum boi fujão aí que a gente foi buscar lá pelas bandas da Pedra Gaiteira. Ele não queria vir por bem, tivemo que arrasta na pancada. Quando deitou lá atrás, já tava desmaiado. A boca do bicho sangrou que nem bica de mina. Nunca vi coisa igual. Só machucaram a cabeça; deram choque nele. Não podia exagerar pra não estragar o couro. Agora esse cheiro que ficou aí é dele, e taí pra mais de semana. Não sei se a senhora acredita em sortilégio, mas acho que esse bicho morreu antes da hora, e o sangue taí pra lembrar a gente toda hora.

Joana não disse nada, mas sentiu um calafrio que começou na ponta dos pés e terminou na nuca. “A morte nunca cheira bem”, ecoou na sua consciência. O silêncio foi mantido até a chegada ao matadouro, onde outros caminhões estacionaram para descarregar a boiada.

Joana testemunhou os passos lentos e pesados da manada, que parecia um cortejo fúnebre. Nunca tinha visto de perto tantos animais reunidos em um mesmo lugar. Em pouco tempo, todos estariam mortos; incapazes de sentir o frescor da manhã outonal, de trocar olhares com os seus, ou de simplesmente matar a sede que já não existiria mais. Seria o fim de tudo que se movia sobre quatro patas naquele pedaço de terra vermelha onde diziam que tudo dava, menos o direito à vida bovina.

Sob ordens humanas, e em meio a olhares mecânicos, naturalizados pela prática cotidiana, pouco a pouco o gado seguiu até um corredor relativamente estreito – de vinte metros de comprimento e quatro metros de largura. “Se fosse gente, já estariam dando com os cotovelos um no outro. Que lugarzinho apertado”, comentou Joana com João Batista, que respondeu com um sorriso amarelecido.

Daquele lugar, nenhum dos bois corpulentos fugiria. Seria preciso machucar um companheiro para conseguir algum espaço; e nenhum deles parecia disposto a ferir alguém. A boiada continuou atravessando o corredor. Conforme os animais desapareciam da fila, mais adiante ouvia-se barulhos estranhos de metais, algo se chocando contra o piso, alguns mugidos curtos e outros mais longos.

Sem tempo para cordialidades, um dos encarregados gritou o nome de Joana e falou que se ela quisesse o trabalho teria que acompanhá-lo. “Seu trabalho aqui vai ser na caixa, mas antes veremos como você se sai no treinamento”, avisou Oliveira, o responsável pelos magarefes. Ela o seguiu até um local, onde um boi branco foi colocado dentro de um caixote. Quando o animal entrou, ele olhou para Joana e, sensibilizada, ela desviou os olhos. “Você tem que ver o serviço. É pra isso que você tá aqui, não é não?”, questionou o encarregado.

Ele mostrou uma pistola para Joana e disse que o processo é bem simples, mas é preciso atingir o ponto certo no crânio do boi. “É nessa altura aqui, tá vendo? Nem pra cá, nem pra lá. Não tem segredo. É um serviço quase sempre limpo.” Enquanto Joana prestava atenção, o boi recebeu um tiro de pistola disparado por Oliveira. Depois que o dardo atravessou o cérebro do animal, ele deu um mugido lamurioso e desabou no chão, fazendo a caixa tremer.

— Seu serviço basicamente é esse. Colocar o bicho pra dormir. O resto é com a outra equipe. A não ser que você queira colocar a mão na massa. O que acha?

— Não, senhor — respondeu, se esforçando para velar o impacto que aquela cena teve sobre ela.

Depois de conhecer todas as etapas do trabalho no matadouro, e de ser aprovada no treinamento, Joana foi contratada na semana seguinte. O salário de mil e trezentos reais custaria muitas mortes ao final do mês. Para não pensar tanto nisso, ela sempre olhava uma foto dos três filhos com idade entre 3 e 6 anos, deixados aos cuidados da avó enquanto trabalhava.

Em uma manhã de segunda-feira, após três semanas de serviço, Joana sabia que seria preciso abater o primeiro boi sem a supervisão de Oliveira. Antes de sair de casa, se ajoelhou diante da cama e orou, pedindo a Deus que garantisse que tudo corresse bem em mais um dia de trabalho.

Como de costume, Joana assistiu mais uma vez a chegada da boiada, foi ao banheiro vestir o uniforme e umedeceu o rosto diante do espelho. Estava pálida e assustada. Ainda não tinha se acostumado a segurar uma pistola; nem a testemunhar a queda daqueles dóceis animais que em poucos segundos sucumbiam com os cérebros dilacerados. Não choravam como nós, mas choravam como eles, na quietude da incompreensão, trazendo nos olhos cristalinos a inocência de quem da humanidade espera a redenção.

Tão logo Joana ouviu um barulho, um boi foi empurrado para dentro da caixa. A cena se repetiu muitas vezes naquele dia e em muitos outros. À tarde, um dos animais levantou a cabeça e observou silenciosamente os olhos de Joana. A ausência de som e de movimentos por parte do boi a chocou mais do que se ele tivesse reagido e tentado fugir – porque a mansidão significava que ele confiava nela.

As mãos de Joana tremularam até que ela ouviu um grito ao fundo: “Vamos agilizar isso aí que hoje a fila é grande.” Joana posicionou a pistola e disparou contra a cabeça do animal. O dardo não penetrou o cérebro, mas fez um furo no crânio, por onde o sangue desceu. Longe de se entregar ao próprio fim, o boi começou a mugir e a tentar escapar da caixa, mas não sem antes confrontar os olhos de Joana, mostrando que ele sabia que ela tentou matá-lo. Desesperada, se afastou e começou a gritar por ajuda.

Oliveira interveio e assobiou para dois rapazes. “Deu merda! Deu merda! Vamos! Vamos! Rápido!” Eles entenderam e se apressaram carregando duas marretas. Mandaram Joana se afastar e intercalaram marretadas na cabeça do boi. Agitado, respingava sangue e mugia como se sua vida dependesse dos seus berros. Diante da cena, e do boi lutando para sobreviver mesmo depois de inúmeras pancadas, Joana ficou chocada. Havia sangue em seu uniforme, cabelos e pescoço.

Não conseguia mais negar a si mesma que tinha tomado parte em um tipo nefasto e lancinante de violência. O tiro de pistola, que parecia limpo, até então serviu apenas para mascarar um fato imutável – não há romantismo na morte de quem não quer morrer, independente do método. A constatação fez seu coração disparar. Mais constrangida e abalada do que nunca, se afastou e correu até o banheiro sem pedir autorização. Vomitou tanto que sentiu dores intensas na garganta. Vendo o estado de Joana, Oliveira a dispensou, permitindo que ela fosse para casa.

— Você tem doença, Joana. E não é doença de brincadeira. É coisa séria — disse Oliveira.

— Como assim?

— Você tem a doença do “não matarás”. Pode ir pra casa. Aqui não é lugar pra você. Vou dar um jeito de garantir que você receba o salário do mês pelo seu esforço.

Antes de deixar o matadouro, Joana tomou um banho demorado e, quando terminou, se encolheu nua em um canto. Através do ralo, por onde a água descia, ela viu um pedaço de carne bovina que se liquefazia. Os olhos do boi morto à marretadas a espiavam entre os frisos do ralo. Por minutos, Joana viu tudo girando, mas não conseguiu chorar.

Em casa, à noite, ainda sentia o cheiro agridoce do sangue do boi que respingou em seu corpo. Perguntou aos filhos e à sua mãe se eles notaram algum odor diferente nela, mas ninguém percebeu – só Joana. Depois de um jantar sem carne, caminhou até o quintal e falseou um sorriso ao ver os filhos brincando.

— Olha, mãe! Eu sou o boi Tadinho, o Guilherme é o boi Chorinho e o Gabriel é o boiadeiro Marquinho. A brincadeira é correr e não deixar o boiadeiro pegar a gente — contou Gustavo, o filho mais velho, com expressão doce e quiescente.

Joana simulou mais um sorriso e sentou-se em uma cadeira sob a jabuticabeira. Quando seus filhos e sua mãe dormiram, ela retornou ao quintal, observou o céu estrelado e uma fazenda que começava onde seu bairro terminava. Em seu colo, havia um embrulho. Ela desenrolou um revólver calibre 38.

— Que a justiça seja feita aqui e agora, que meus filhos e minha mãe superem essa perda e que Deus me perdoe por todo o mal que eu fiz.

Joana tirou a arma do colo e colocou o cano gelado dentro da boca. Fechou os olhos e as lágrimas desceram pesadas e silenciosas. Prestes a acionar o gatilho, ouviu um barulho, abriu os olhos e tirou a arma da boca. Um bezerro pardo, que trazia um coraçãozinho branco de pelos no topo da cabeça, começou a lamber a sua mão. Joana guardou o revólver.

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