David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

“Agora fiquei até com vontade de ser pai”

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“O semblante não era o mesmo. Quem era aquela criança que tomou o seu lugar?” (Desenho: Nino Andaresta)

Em uma loja, enquanto eu aguardava atendimento, observei um bebê em um bebê conforto ao lado do balcão. Tão lindo com aqueles olhinhos serenos e geometricamente redondos de anime. Sorria sem parar enquanto balançava as mãozinhas e as perninhas curtas simulando bicicletinha. Lindo de ver! Expondo o umbiguinho para fora da camisetinha verde com estampa do Hulk. Vez ou outra, soltava algum gritinho suave, empolgado observando coelhinhos de pelúcia pouco acima de sua cabeça.

— Que linda inocência! Que beleza de criança! Que doçura!
— Agora fiquei até com vontade de ser pai. Que coisinha linda e hipnotizante.

O bebê continuava simulando bicicletinha. Um verdadeiro atleta.

— Esse vai gostar muito de se exercitar. Não tenho dúvida disso!

Fui surpreendido. A criança sorriu pra mim, um daqueles sorrisos raros de comerciais de TV, do tipo enviesado.

— Preciso ser pai, cara! Quero isso na minha vida – monologuei.

Ainda bem que ninguém percebeu que falei mais alto do que imaginei.

Era incrível ver aquele pequeno ser cheio de vida, de vontade de existir. Um mundo de infinitas possibilidades se abria diante dele.

— Esse vai conquistar o mundo, parece bem peculiar.
— Nossa! Preciso ser pai, cara! Isso é demais!

De repente, os olhos da criança mudaram, enturveceram. Pressionou uma mãozinha contra a outra, como se estivesse prestes a esmagar os próprios dedinhos. As bicicletinhas d’antes se transformaram em golpes violentos no ar.

O semblante não era o mesmo. Quem era aquela criança que tomou o seu lugar?

Me afastei a passos cuidadosos quando o bebê começou a gritar e a dar violentas cabeçadas no bebê conforto. Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove cabeçadas consecutivas.

— Diabeisso! O que está acontecendo aqui? — pensei, mas não falei.

Preocupado, olhei em volta. Ninguém me olhava. Ainda bem. Assim ninguém acharia que tive algo a ver com a infanta fúria. A criança berrava cada vez mais alto. Que vozeirão sinistro!

— Desse jeito, vai cantar death metal – concluí.

Eu não sabia mais se me afastava ou se me aproximava. Por pouco, a criança não vira o bebê conforto com a força das cabeçadas e dos chutes no ar. Até que sua mãe chegou.

— Não quero mais ser pai. Deixa quieto.

E a vontade passou.

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Written by David Arioch

July 28th, 2017 at 1:13 am

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