David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

A vivissecção também ensina valores antropocêntricos e especistas, de que animais são objetos que podem ser jogados fora

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“Para que a pesquisa continue, é preciso afastar qualquer sinal de compaixão, e acreditar que eles são objetos, não seres vivos”

Os animais são usados há cerca de 300 anos em uma prática bastante consolidada dentro das instituições de ensino. A maioria das pessoas não sabe, mas para a formação de biólogos, profissionais da área de saúde, geralmente eles são obrigados a passar pela prática de vivissecção, que consiste basicamente em causar um dano ao animal, ou abri-lo ainda vivo.

Ou então usar o cadáver de um animal que foi sacrificado ou morto para aquele tipo de prática pedagógica, para ilustrar conhecimentos que já são sabidos. Vivissecção quer dizer “cortar vivo”, mas esse termo é aplicado hoje a qualquer forma de experimentação animal. A partir do século XIX essa prática se intensificou, e hoje é uma poderosa indústria que produz equipamentos e o que eles chamam de “produtos”.

É comum o uso de cachorros para ilustrar o sistema cardiorrespiratório. É uma prática de fisiologia bastante antiga e tradicional, que consiste em anestesiar um cão, abri-lo, e injetar algumas substâncias para ver como o sistema cardiorrespiratório responde a diferentes substâncias. Então isso é um exemplo dentro de uma série de outros que implicam técnicas de sutura, injeção de “n” substâncias, provocação de queimaduras, indução de fome, indução de estresse.

Depois que eu cumpro com os objetivos da prática, eu jogo o animal no lixo. Geralmente são animais saudáveis, provenientes de biotérios, que são lugares dentro das instituições que criam os animais para essas finalidades. Em alguns casos, esses animais são provenientes de centros de controle de zoonoses.

Peças, encomendas, produtos, modelo, material de estudo – são resumidos a isso. Para que a pesquisa continue, é preciso afastar qualquer sinal de compaixão, e acreditar que eles são objetos, não seres vivos. No começo, o estudante pega um animal, corta e se sente mal com aquele ato. Um desconforto moral, um desconforto físico. Mas se sente mal. Com a repetição, ele já passa a sublimar isso.
Então no final do curso, ele já está cortando numa boa, sem qualquer problema. Então o que é isso? Isso é um processo de dessensibilização pelo qual o estudante passa. No final, ele está mais frio em relação à vida. Ele já “coisificou” a vida na frente dele.

Quando eu corto um cachorro para estudar anatomia, eu aprendo muito mais do que anatomia. Aprendo os valores antropocêntricos e especistas, de que aquele animal é um objeto que eu posso jogar fora. Existe uma série de conteúdo ocultos que são transmitidos de arrasto à prática, e que não estão explicitados no currículo oficial, mas eu aprendo.

Um dia, a gente estava aprendendo a dar injeção em uma égua. Havia 200 alunos dando injeção nela, até que chegou um momento em que um aluno acertou a jugular dela e estourou uma veia. Começou a sangrar muito, e uma das alunas foi lá e começou a estancar o sangue. Só que veio o resto e começou a aplicar do outro lado, e a professora incentivando: “Não! É assim!” Foi horrível! A gente tem dez professores e sete deles falam: “Gente, tadinha nada! Eles estão aqui pra isso!” Nenhum vem dar uma força e falar:

“Não! Eu também acho que isso é errado.” Nenhum! E falam: “Nós temos que sacrificar alguns animais para que vocês possam salvar outros na profissão.” Isso acontece porque a estrutura da universidade está de tal maneira interpenetrada dessa recomendação atribuída a Claude Bernard, de que o cientista para agir profissionalmente ele tem que ser frio em relação ao trato com os animais, que você falar em piedade, dó, compaixão, não combina.

Fui treinado para salvar vidas, e de repente vou lá e uso um cachorro para um aluno aprender a fazer uma cirurgia no estômago e mato o cachorro. No dia seguinte, estou salvando um cachorro naquela mesma cirurgia. Adiantou eu operar? Matei um para salvar o outro. É como um médico operar um cara lá e matar o sujeito para aprender a salvar outro.

Não tem muito critério para utilizar esse método, usa porque é mais fácil. Tem um canil atrás da faculdade, eles pegam um cachorro onde é conveniente, levam para o laboratório e não precisa fazer nenhum esforço. Atualmente, o pessoal do segundo ano [de medicina] está fazendo a primeira experiência com os ratos, que é aquela de injetar estricnina no estômago ou no intestino, e os ratos começam a ter convulsões; alguns ficam com as entranhas todas para fora – intestino, estômago.

O rato morre, mas antes fica convulsionando até o final. O pessoal está me mandando mensagem [agora] de como foi a experiência, o que isso adicionou. Pelo menos quem está escrevendo aqui não ficou satisfeito com esse tipo de aula. Em síntese, você ensina o aluno a ter preconceito com os diferentes. O animal é diferente dele: “Eu tenho autoridade de sacrificá-lo.”

Thales Tréz, biólogo e professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal).

Ana Paula de Sá, estudante de medicina veterinária da Universidade Anhembi Morumbi

Irvênia Prada, professora titular emérita da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ) da USP.

Marco A. Gioso, professor do departamento de cirurgia da FMVZ.

Carlos Bustamante, estudante da Faculdade de Medicina do ABC.

Odete Miranda, cardiologista e professora da faculdade de medicina do ABC.

Excertos de “Não Matarás”, documentário lançado em 2005 pelo Instituto Nina Rosa. O filme critica a vivissecção, os testes em animais, ao revelar como os seres não humanos são explorados de forma desnecessária e cruel em um contexto de banalização da vida animal.

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