Archive for October, 2017
A vida de Frei Jerônimo na Segunda Guerra Mundial e no pós-guerra
Georg Karl Brodka: “Amarraram minha mãe com cordas em cima de um jipe e percorreram a cidade, expondo-a para quem quisesse ver”
Por volta das 8h, chego ao Seminário Imaculada Conceição, em Graciosa, distrito de Paranavaí, e pergunto onde posso encontrar o alemão Georg Karl Brodka, mais conhecido como Frei Jerônimo. Um rapaz aponta a escadaria e sugere que eu vá até a cozinha. Lá em cima, através de uma porta aberta, observo à minha esquerda um senhor de estatura mediana em silêncio, diante de uma mesa, aguardando o café da manhã.
Com expressão serena, ele me observa de longe, nos cumprimentamos e, com um forte sotaque alemão, pede que eu o aguarde. Sem demora, Frei Jerônimo se aproxima vagarosamente, apontando uma mesa com duas cadeiras no fundo do corredor. Assim que sentamos, comento que acho incrível como o clima naquele lugar é fresco e aprazível. “Estamos no meio da ‘naturreza’”, comenta.
Brodka veio para esta região na juventude, e poucos sabem da sua história antes de se comprometer com o sacerdócio. Ele testemunhou a Segunda Guerra Mundial na infância e também sofreu no pós-guerra nas mãos dos tchecoslovacos – simplesmente por ser alemão. A sua insigne trajetória começou em Neisse, onde nasceu em 31 de dezembro de 1935, ano em que Adolf Hitler apresentou as Leis de Nuremberg ao Reichstag, legalizando suas equivocadas teorias raciais que respaldavam a ideologia nazista.
À época, fazia três anos que seu pai tinha ingressado no Exército alemão porque não havia emprego no país, a não ser na Wehrmacht, as forças armadas. “Ele casou em 1934 e nasci em 1935. Eram tempos difíceis, mas pelo menos ele podia ficar mais perto da família. Sim, ganhava bem, tinha caderneta de poupança, mas não havia comida para comprar. Por causa da subnutrição durante a Segunda Guerra Mundial, tive problemas de desenvolvimento ósseo. Inclusive quem nasceu entre 1934 e 1937 foi dispensado do serviço militar na Alemanha. Todos os meus seis irmãos tiveram o mesmo problema. Sofremos por causa disso”, conta.
No decorrer da guerra, Georg Karl perdeu as contas de quantas vezes o alarme ressoou e tiveram de correr até o porão, onde costumavam guardar alguns alimentos. O ambiente não havia sido projetado para suportar bombardeios, mas era o único local disponível para a família sentir-se menos vulnerável aos ataques aéreos. Um dia, uma forte investida dos aliados – União Soviética, Estados Unidos e Inglaterra, resultou na destruição de quatro quartéis. “Andamos em cima dos cadáveres para, imagine, retirar distintivos dos corpos. Hoje eu teria nojo, mas naquele tempo as crianças pisavam nos mortos para pegar e colecionar distintivos. Não entra na minha cabeça como eu pude fazer uma coisa dessas. Muitos faziam isso”, narra.
Embora seu pai fosse um oficial do Exército alemão, era muito difícil encontrar alimentos em 1944, quando a Alemanha estava mais próxima de ser derrotada na Segunda Guerra Mundial. “Aquele medo e fome, você nunca passou fome quando criança, né? E vendo a mãe chorando e sabendo que não tem comida. Isso foi pesado”, relata o frei emocionado.
Quando a situação piorou, a família encontrou refúgio em uma paróquia que tinha uma casa para crianças. No período da manhã e da tarde, os pequenos, incluindo Georg Karl Brodka, participavam de inúmeras atividades. “Mas o medo do bombardeio nunca desaparecia, porque os aviões atacavam de dia e de noite. Não havia energia elétrica, e tinha semana que a gente dormia no escuro, no porão”, lembra.
Em 1945, quando os soviéticos entraram em Neisse por terra, a família Brodka conseguiu deixar a cidade com o apoio do que restou do Exército em sua cidade natal. Foram levados até a fronteira com a Tchecoslováquia, que se livrou do domínio alemão em maio do mesmo ano. Em Marienbad, Georg Karl, que tinha nove anos, encontrou um soldado alemão e falou que seu pai tinha uma insígnia igual a dele. O homem perguntou quem era seu pai. Quando o menino respondeu, ele explicou que aquele oficial era o seu superior.
“Ele conversou com minha mãe e ela começou a chorar. Duas ou três horas depois, meu pai se apresentou para nos encontrar. Não sei como, foi uma grande surpresa. Quando os americanos saíram da Tchecoslováquia, perdemos o alojamento, o apartamento que meu pai conseguiu para nós, e fomos enviados para o campo de refugiados de Flaschenhütte, em Marienbad. Não havia outra alternativa”, enfatiza.
Um dia, os soldados tchecoslovacos permitiram que a família Brodka percorresse a floresta para procurar frutas. No local, colheram folhas de agrião perto de uma mina de água. “Enchemos os bolsos e levamos para o campo. De manhã, quando ganhamos uma fatia de pão seco, colocamos o agrião e comemos. O gosto era muito bom, porque o agrião já vem temperado da natureza”, assinala Frei Jerônimo sorrindo.
Ele se recorda das orientações que ele e seus irmãos recebiam da mãe Gertrud, um exemplo de paciência. Com ela, aprenderam muitas canções folclóricas alemãs enquanto viveram no campo de Marienbad: “Eu tinha nove anos e cantávamos todos juntos. Crianças de outras famílias também participavam. Mais tarde, quando começaram a derrubar outras árvores da mata que ficava ao redor do campo, peguei as cascas para fazer brinquedos.”
Entre algumas lembranças bucólicas, o alemão jamais esqueceu do infeliz episódio em que soldados tchecoslovacos amarraram sua mãe com cordas em cima de um jipe e percorreram a cidade, expondo-a para quem quisesse ver. Em Marienbad, também quebraram os dentes do seu pai com um cassetete.
“As crianças [alemãs] tinham que sair com faixa amarela no braço para pedir comida, e sabe que comida eles ofereciam para nós? A borra de café. Davam risada quando nossa boca ficava suja, e faziam isso de brincadeira, para nos chatear”, revela. Os tchecoslovacos não gostavam de alemães porque as tropas do exército de Adolf Hitler invadiram e ocuparam o país em 15 de março de 1939, acabando com a soberania da Tchecoslováquia.Em 1948, depois de dois anos vivendo no campo de refugiados, uma equipe do governo canadense chegou a Marienbad e fez uma proposta ao governo da Tchecoslováquia. “Eles queriam comprar famílias com pelo menos quatro crianças. A intenção deles era aumentar a população do país e estimular o desenvolvimento. Meu pai não aceitou porque uma das minhas irmãs estava com cólera. As famílias não ganhariam nada, só o governo. Tive alguns amigos que se mudaram para lá”, confidencia Frei Jerônimo.
Mais tarde, a família Brodka foi enviada para Bernburg, na Alemanha Oriental. Em casa, Georg Karl não conversava com os pais sobre o que ensinavam na escola: “Meu pai teve outra formação. E minha mãe dizia: ‘Não me fale, não me fale. Melhor eu não saber de nada.’ A situação na Alemanha Oriental entre os anos de 1948 e 1950 era muito tensa. Acabei simpatizando com o regime comunista porque me garantia bastante tempo para me dedicar à música. Na escola, ganhei dois instrumentos; uma flauta soprano de madeira e um bandolim. Mas o problema na Alemanha Oriental é que tiravam a educação dos pais e repassavam a autoridade ao governo.”
Na oitava série, Georg foi obrigado a preencher um papel explicando o que gostaria de ser no futuro. “Escrevi que queria ser padre, sacerdote da Igreja Católica. No outro dia, o professor deu uma gargalhada e falou: ‘Aqui tem um que quer ser padre.’ Aí começou aquele bullying, como dizem hoje”, pontua.
Em 1950, Karl Brodka, pai de Georg, reconhecendo que o filho não teria futuro vivendo naquela parte da Alemanha, articulou a fuga do garoto e, para não levantar suspeitas, o declarou como fugitivo. “Eu tinha 14 anos. Para um pai fazer isso, tinha que ter muita confiança no filho. Fui até a fronteira de trem e percorri uma floresta. Acabei sendo detido”, pontua.
A polícia da fronteira levou Brodka até um pequeno quartel, onde ele recebeu um bom jantar e passou a noite em um quarto com beliche. Na manhã seguinte, dois policiais o levaram de volta à ferroviária e o colocaram em um trem de retorno à Alemanha Oriental. Assim que o trem começou a se mover, Georg Karl saltou sobre o vagão de um trem que transportava gado.
Mesmo sem saber o que aconteceria, não hesitou em se arriscar. Depois soube que aquele trem iria para a Alemanha Federal: “Quando o trem parou, passei meus dedos nas fendas onde o gado estava preso. Bem perto tinha um policial uniformizado. Ele levou um susto: ‘O que você está fazendo aqui?’, perguntou. Eu disse que iria para Bamberg [no Sul da Alemanha]. Me levou para tomar café da manhã e me arrumou uma carona de caminhão. Foram mais ou menos 350 quilômetros.”
Em julho de 1950, Brodka chegou ao Seminário dos Carmelitas em Bamberg, mas não imaginava que lá também seria vítima de preconceito. “Como vim da Alemanha Oriental, meu apelido era comunista. Uma vez conversei com um carmelita, estudante de teologia da Tchecoslováquia, e contei a ele tudo que passamos em Marienbad. Falei que não tinha nada contra ele, mas que seu pai e seu avô provavelmente sabiam do tratamento dado aos refugiados alemães”, frisa.
Em 1954, ele descobriu sua vocação para o escotismo quando ingressou no grupo de escoteiros Guy de Larigaudie, onde sentiu-se parte de uma nova família. Durante a guerra, Georg Karl perdeu um padrinho de batismo, que foi morto na União Soviética. E ao final da guerra, um de seus tios foi enforcado na Polônia porque era religioso e andava com uma Bíblia. “Na Alemanha Oriental, tivemos gerações sem ensino religioso. Muita gente nem conhecia a Bíblia porque a venda era proibida. Um dia, fui punido na escola porque fui à igreja em um domingo”, garante.
O pai de Brodka visitou Neisse, sua cidade natal, duas vezes quando passou a pertencer à Polônia, e nunca mais retornou porque foram muito mal recebidos pelos poloneses. “Parte dos meus parentes continuou lá. Mesmo tendo nascido alemães, se consideravam mais poloneses. Uma vez participamos de um encontro de antigos militares, tinha 15 homens mais ou menos. Meu pai chorou ao dizer que jamais matou ou ordenou que alguém matasse um soldado na guerra. Outro colega falou a mesma coisa. Se ele tivesse falado isso durante a guerra, teria sido punido com pena de morte, até porque era mais fácil matar do que não matar”, assegura.
Georg Karl Brodka se tornou sacerdote em março de 1963
Em março de 1963, Georg Karl Brodka foi ordenado sacerdote, e no dia 16 de junho do mesmo ano desembarcou no Porto de Santos. A viagem com duração de 21 dias não foi nada fácil. Recepcionado por frei Alberto Foerst, ele trouxe três caixas pesadas e muitos materiais a serem destinados ao Hospital Santa Margarida. A chegada a Paranavaí foi marcada por um fato inusitado. “O Frei Ulrico [Goevert] disse que o prefeito, o doutor [Antonio José] Messias, não poderia me receber porque ele estava preso. Os vereadores o botaram na cadeia. Então já tive uma primeira impressão”, diz rindo.
Georg Karl sempre se apresentou em Paranavaí como Fei Jerônimo, aportuguesamento do nome religioso Hieronymus que recebeu no convento de Bamberg. No seu quarto, na paróquia em Paranavaí, teve outra surpresa. Ele notou uma lona preta que cobria uma cama completamente molhada. “Frei Alberto disse que se esforçaram, mas não conseguiram fechar as goteiras. Durante o almoço no convento, Frei Ulrico preparou caipirinha, uma das primeiras tentações. No geral, fui muito bem recebido pelos patrícios – Frei Matias [Warnek], Frei Bruno [Doepgen] e Frei Alberto. Eu era o quinto no convento”, explica.
Naquele tempo, o Frei Bonaventura Einberger, que foi enfermeiro da Wehrmacht na Segunda Guerra Mundial, já morava em Graciosa, mas quem comandava o Seminário Imaculada Conceição era o Frei Matias. O que chamou a atenção de Frei Jerônimo é que o objetivo do seminário não era apenas a formação de sacerdotes: “Não foi criado só para atender uma necessidade vocacional. Em Graciosa, não havia escola para estudantes de quinta a oitava série, então o seminário supriu essa necessidade.”
Sem saber falar português, e tendo como referência apenas um dicionário de alemão-português, Georg Karl Brodka teve muitas dificuldades para se comunicar. “No começo era difícil. Não entendia o que diziam nas emissoras de rádio nem no Diário do Noroeste. Mas o Frei Matias sempre me ajudou a aprender a falar mais algumas palavras em português”, informa.
Como o Seminário Imaculada Conceição era aberto às crianças, mais especificamente garotos, o frei se tornou a grande atração de Graciosa por um bom tempo. Ao saber que havia um padre novo, os estudantes corriam até o convento ao final das aulas. “Era uma curiosidade. Uma coisa bonita para mim é que criança tem coragem de corrigir a gente. O adulto não. Eles diziam assim: ‘Não, frei! Não é assim que fala.’ Então eu repetia mais quatro ou cinco vezes até acertar. Para falar maçã foi difícil, porque não existe esse ã na língua alemã”, argumenta.
Os seminaristas, que se encarregaram de ensinar formalmente a língua portuguesa ao Frei Jerônimo também foram muito pacientes. Depois de um ano no seminário, já se comunicando em português, ele foi enviado a Paranavaí. Com seu jipe DKW-Vemag Candango, com tração nas quatro rodas, o alemão viveu muitas aventuras na região. “Meu carro nunca ficou na estrada, e olhe que para Guairaçá a estrada era terrível. Difícil também era o trecho de Paranavaí até o Povoado de Cristo Rei, e de lá até a Fazenda Aurora e Fazenda São Joaquim. Quantos quilômetros fiz com aquele jipe. Sempre levei gente de Paranavaí comigo”, declara em tom nostálgico.
Frei Jerônimo se recorda com carinho de Maria Mallmann, uma senhora que atuava como lavadeira, faxineira e cozinheira no convento em Paranavaí. Foi ela que disse ao alemão para não se preocupar que logo ele se acostumaria a comer arroz e feijão todos os dias ao meio-dia. No início, o trabalho de Georg Karl Brodka era benzer os falecidos. “O povo chegava com o caixão na igreja e a missa era feita em latim. Mais tarde, comecei a realizar os batismos na Paróquia São Sebastião. Era a única paróquia em toda a região, e para cá vinham caminhões carregados de gente de cidades como Guairaçá e Nova Londrina”, lembra.
Um dia, na ausência dos pais que não puderam comparecer, Frei Jerônimo realizou o batismo de uma criança chamada Ivani. Confuso, ele questionou: “É menino ou menina?” Então os padrinhos falaram que não sabiam, e deram uma olhada na criança para tirar a dúvida: “Era tudo improvisado. Não tinha preparação para o batismo, nem para os pais e padrinhos.”
Frei Jerônimo fundou o Grupo Escoteiro Guy de Larigaudie em 1966
Em novembro de 1966, durante uma viagem para Guairaçá, Frei Matias, ciente de que Frei Jerônimo tinha sido escoteiro na Alemanha, sugeriu que ele fundasse um grupo de escoteiros. Recordando-se de sua experiência como escoteiro em 1954, quando ingressou no grupo alemão Guy de Larigaudie, que homenageava o escoteiro e escritor francês, Georg Karl Brodka decidiu criar um grupo com o mesmo nome em Paranavaí.
“Fiz isso porque eu já gostava da literatura dele, um escritor que exaltava a natureza e falava sobre a importância de viver em harmonia com o meio ambiente. Comecei com oito meninos de 11 e 12 anos. Depois de três meses de preparação, eles fizeram a promessa, e cada um trouxe mais um integrante para o grupo”, narra.
Em 1967, Frei Jerônimo fez um curso de escotismo em São Paulo e voltou a Paranavaí com novas metas, como a organização da Alcateia de Lobinhos e da Tropa de Escoteiros. A partir de 1972, o grupo que funcionava de forma independente passou a ter como sede o Campo dos Escoteiros, ao lado do Ginásio Noroestão, onde manteve suas atividades por quase 26 anos.
“Aquele terreno já era da comunidade carmelitana. A sede foi construída com a madeira de duas casas que ganhei da Fazenda São Joaquim. O grupo cresceu bastante e completou 50 anos em 2016. Participamos de atividades escoteiras em Curitiba, Londrina e Maringá. Naquele tempo, tinha muito trabalho. Eu dava aulas de estudos bíblicos no Colégio Paroquial Nossa Senhora do Carmo e atendia 22 capelas fora de Paranavaí. Era obrigado a andar sempre de hábito”, destaca.
Nos anos 1980, Frei Jerônimo se tornou um dos administradores do Seminário Imaculada Conceição, chegando a se responsabilizar por quase 50 adolescentes. Atuando sozinho a maior parte do tempo, desabafa que foi duramente criticado algumas vezes. O seu trabalho era mais social do que vocacional, porque quando um menino chegava com os pais para se matricular, ele nunca perguntava se o garoto queria ser padre ou carmelita. “Eu fazia isso somente um ou dois anos depois, quando já era possível notar se havia interesse ou não. Se tivesse, continuava aqui, senão poderia voltar para casa”, enfatiza.
“Fui para Paranavaí em 1988 quando o seminário foi fechado”
Entre os alunos do frei estavam o padre Reginaldo Manzotti, que estudou no seminário por três anos, e o frei Ivani Pinheiro. “Troco cartas com vários ex-alunos. Fui para Paranavaí em 1988 quando o seminário foi fechado. Em 1990, me transferiram para Dourados [no Mato Grosso do Sul]. O Frei Joaquim [Knoblauch] era pároco da Paróquia Bom Jesus. Passou a paróquia para mim e fiquei um ano sozinho cuidando de tudo. Lá, fundei o Grupo Escoteiro São Jorge, o sétimo do Mato Grosso do Sul”, relata.
Em Dourados, também participou de um grupo de flautistas da Igreja Batista. O convite surgiu porque não havia ninguém na cidade que tocasse flauta baixo tão bem quanto Frei Jerônimo. “Toquei por dez anos com eles. Era muito gostoso. Nos escoteiros, tínhamos 12 instrumentos de percussão, e formei 12 seminaristas para tocar pífaro. Eu trouxe os pífaros da Alemanha, os mesmos usados pelo Exército alemão”, revela.
O frei diz com orgulho que quatro músicos que fizeram parte da Orquestra de Sopros Paranavaí foram seus alunos na infância. Uma vez, durante uma missa, eles se aproximaram e o lembraram das boas lições de flauta. “Tenho todos os tipos de flautas – sopranino, soprano, tenor, contralto e baixo. É uma pena que não tenhamos a cultura da música instrumental no Brasil. Na Alemanha, valorizamos isso desde cedo. Essa desvalorização atrapalha porque também deixa os instrumentos mais caros”, avalia.
O retorno à Alemanha em 2003
Em 2003, Frei Jerônimo pediu autorização do seu superior na Ordem dos Carmelitas para retornar à Alemanha. Um dia, caminhando pela floresta, encontrou um cão da raça são-bernardo, que sobe montanhas para ajudar a procurar pessoas perdidas na neve. Quando ele se aproximou, Brodka apenas colocou as mãos nas costas, abaixou a cabeça e falou com o animal. Em seguida, chegou o tutor do cachorro, correndo e ofegando, pedindo para ele se afastar porque o animal era bravo.
“Eu disse que não, que ele não era bravo. Falei para o cachorro que eu não iria bater nele e ele não poderia me morder. O homem ficou me olhando e dizendo: ‘Como? Como pode falar com ele?’ Falei que sim, converso com ele. Me entendo com cachorro, e tudo acabou bem. Foi uma experiência bonita”, lembra sorrindo. Por outro lado, nos quase três anos que trabalhou como vigário paroquial da Diocese Trier, em Springiersbach, Frei Jerônimo percebeu que tudo estava diferente, e não conseguiu se acostumar com aquele estilo de vida na igreja.
“Aqui o trabalho pastoral é mais popular. Estamos mais próximos do povo. Lá, fiquei a maior parte do tempo em meu quarto, com rádio e telefone, sem muito o que fazer, até que um dia o meu superior me deu o conselho para retornar. Cheguei ao Brasil em 31 de dezembro de 2005, no dia do meu aniversário. Gosto daqui porque é o único convento que está na natureza. Todas as outras casas estão na cidade”, explica.
Sem velar a empolgação, Georg Karl Brodka conta que tem três alunos de flauta no Jardim São Cristovão, em Paranavaí, e uma menina do Colégio Paroquial que é sua parceira musical há quatro anos. “A procura não é grande, mas quem tem interesse, se esforça. Isso é bom. Eu trouxe muita literatura para flauta da Alemanha”, comenta.
Enquanto conversamos, uma cachorrinha brincalhona salta sobre mim inúmeras vezes. Com expressão séria, Georg Karl Brodka pede apenas uma vez que ela se comporte, e ela o atende. A cadelinha o motiva a sair todos os dias para passear pelo bosque. “Se não fosse por ela, eu ficaria mais tempo no quarto, mas ela me chama sempre. Nos entendemos. Não gosto de gente que bate em cachorro. Na realidade, não gosto de gente que não aceita cachorro. Dá para desconfiar. Tinha um gato aqui também, e os dois se davam muito bem, mas mataram ele”, lamenta.
O pai Karl Brodka ficou doente após a guerra
Nascido em 3 de setembro de 1906 em Glogau, atual Glogów, na Polônia, Karl Brodka, pai de Georg Karl Brodka, mais conhecido como Frei Jerônimo, ficou doente após a Segunda Guerra Mundial. A vida conturbada teve sérias consequências.
“A guerra é uma barbaridade. Meu pai adoeceu porque bebeu e comeu tantas coisas para não morrer de fome que teve um sério problema no fígado. Depois foi operado em Köln [no oeste da Alemanha]. Ele tinha apenas 5% de chance de sobrevivência. Quando completou 11 anos desde a realização da cirurgia, preparou um café da tarde para agradecer ao médico que o atendeu. Meu pai, que se aposentou com 62 anos, escreveu uma carta disponibilizando seu corpo para estudos após a sua morte. O médico não quis aceitar, mas acabou concordando em respeito ao desejo dele.”
Karl Brodka viveu até os 72 anos, enquanto que a mãe Gertrud Baginski Brodka, nascida em 20 de março de 1910 em Allenstein, atual Olstzyn, na Polônia, faleceu aos 89 anos em decorrência de um infarto. “De manhã, ela caiu da cadeira morta. Minha irmã a estava visitando em seu apartamento naquele dia. Ainda bem que ela não estava sozinha”, enfatiza. Os pais de Frei Jerônimo nunca vieram ao Brasil, mas os seus seis irmãos estiveram aqui duas vezes. “Seis dos meus irmãos estão vivos e trabalharam como educadores e médicos. Em Neisse [Nysa], onde meus pais se casaram, nasceram Marianne, Brigitte, Renate, Eberhard e eu. Em Marienbad, nasceu Karl Heinz, e por último Michael em Bernburg”, revelou.
“Ele estava com medo, e com certeza temia ser denunciado por algum alemão”
Durante a entrevista com Georg Karl Brodka, mais conhecido como, Frei Jerônimo o questionei se ele nunca teve interesse em ser bispo. Me explicou que partilha da mesma opinião do falecido bispo alemão Alberto Foerst, um dos fundadores do Seminário Imaculada Conceição. “Ele disse que rejeitou duas vezes o convite para ser bispo, até que foi obrigado a aceitar. ‘Ser bispo afastou-me do povo e me deu trabalho só com os padres’”, citou rindo. O frei também declarou que não tem sonhos; que sempre preferiu viver o presente.
No entanto, desde os 12 anos cultiva o amor pela música. Com essa idade, aprendeu a tocar flauta: “Gosto de música clássica e folclórica. Na Alemanha, quem sabia cantar 25 canções de folclore alemão ganhava o distintivo de prata. Fiquei muito feliz quando ganhei o meu. Uma pena que não consegui o de ouro. Só recebia quem cantasse 50 canções. Eu tinha uma boa voz, mas começou a mudar depois dos 12 anos. Cantei no Teatro Municipal, em um coral de meninos e participei de duas peças teatrais.”
Sobre literatura alemã, Frei Jerônimo relata que nos tempos do colégio lia os clássicos de Friedrich Schiller e Joseph Freiherr von Eickendorff. “Ainda hoje quando algum colega traz algum livro de literatura alemã, eu pego para ler. Comprei no ano passado uma Bíblia que saiu em alemão. Tem outra linguagem, diferente daquela de 50 anos atrás”, informa. Sorrindo e bem à vontade, conta que na sua última estadia de três meses na Alemanha, não comeu arroz nenhum dia.
“Lá, comi mais lentilhas e ervilhas. De comida, gosto muito de batatinha. Também gosto de pão, mas pão de centeio, integral ou de milho. São pães que você pode conservar por dias. Não gosto de pão francês, porque no outro dia já vira borracha”, reclama. Entre as bebidas preferidas, cita a cerveja.
Ao longo da conversa, o frei me perguntou por que os brasileiros mudam o nome das cidades alemãs. Ou seja, os traduzem. “Os alemães não fazem isso”, queixa-se. Me recordei que há alguns anos fiz um trabalho de pesquisa sobre a história do médico nazista Josef Mengele, que supostamente viveu em Graciosa em 1954. Sobre isso, Frei Jerônimo declarou que é realmente possível que ele tenha vivido no distrito de Paranavaí. “Não sei de nada, mas tenho uma explicação. Ele estava com medo, e com certeza temia ser denunciado por algum alemão”, comenta.
Saiba Mais
Georg Karl Brodka retornou duas vezes à Alemanha Oriental quando seus pais ainda moravam lá.
Como a cidade natal de Frei Jerônimo, atual Nysa, foi anexada à Polônia, ele também tem os mesmos direitos de um polonês.
O emblema da Família Brodka foi criado na Alemanha em 1440.
O frei percebeu que em Graciosa, que é uma colônia germânica, muitos dos moradores não pronunciam o sobrenome corretamente. Segundo ele, isso é uma herança dos tempos da Segunda Guerra Mundial, quando o preconceito contra alemães cresceu exponencialmente no Brasil, durante a perseguição aos nazistas: “Falo que hoje é permitido pronunciar certo, mas eles ainda preferem do outro jeito.”
Em 1999, Frei Jerônimo recebeu a “Medalha de Bons Serviços”, e em 2003 a “Medalha de Gratidão”, concedidas pela União dos Escoteiros do Brasil.
Em 26 de fevereiro de 2003, foi homenageado pela Câmara de Vereadores de Dourados, onde recebeu o “Título de Cidadão Douradense”.
Em 2006, ganhou a Medalha de Mérito do Trabalho e Reconhecimento Administrativo “Dr. José Vaz de Carvalho”, concedida pela Câmara Municipal de Paranavaí. Pela mesma Câmara, recebeu o título de “Cidadão Honorário de Paranavaí” em 18 de março de 2013.
Em 2016, outra importante premiação foi a “Medalha Velho Lobo”, concedida somente aos associados da União dos Escoteiros do Brasil que completam 50 anos de atividades escoteiras comprovadas. Georg Karl Brodka é uma das duas pessoas que a receberam na história do escotismo no Paraná.
A Segunda Guerra Mundial começou em 1º de setembro de 1939 e terminou no dia 8 de maio de 1945.
A República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) foi proclamada em Berlim Oriental no dia 7 de outubro de 1949. Chegou ao fim em 3 de outubro de 1990, com a reunificação da Alemanha.
Ocidentais e orientais e o consumo de animais
Uma diferença que percebo entre os ocidentais e os orientais no que diz respeito principalmente ao consumo de carne é que os ocidentais se esforçam para enquadrar seus maus hábitos alimentares que envolvem a exploração animal dentro de um conceito distorcido de bonomia, enquanto que os orientais assumem a responsabilidade de seus atos em relação a isso. Eles não se esforçam para tentar provar que são justos com os animais quando os matam.
Ou seja, há orientais que nos parecem bárbaros nos aspectos da exploração animal porque eles não têm vergonha de assumir o que fazem, enquanto que os ocidentais preferem delegar responsabilidades, tentando isentar-se de culpa. Não admitimos que digam que tratamos os animais com crueldade, porque nós enquanto ocidentais nos consideramos mais civilizados do que os outros, quando a verdade é que rejeitamos o fato de que tudo que os animais sofrem perpassa pela nossa responsabilidade.
Temos culpa em relação ao que outras espécies sofrem, mas nos consideramos melhores por não realizarmos festivais sangrentos a céu aberto, por não incentivarmos o abate ritual. Isso faz de nós melhores? Culturalmente falando estamos imersos em um contexto onde a morte é sempre justificável quando não somos nós que matamos embora pagamos.
No Seminário Imaculada Conceição
No sábado, estive mais uma vez no Seminário Imaculada Conceição, em Graciosa, um lugar que sempre me transmite muita serenidade, construído em meio à mata nativa. Mesmo não sendo religioso, sinto até vontade de me tornar sacerdote quando vou lá. No seminário, trabalharam inúmeros alemães que participaram da Segunda Guerra Mundial; que se tornaram padres antes e depois. Supostamente, foi onde viveu o médico nazista Josef Mengele em 1954, sobre quem também escrevi. Muitas histórias pitorescas envolvem esse lugar que um dia não apenas formou padres, como também ofereceu educação gratuita de alta qualidade para milhares de crianças.
Um bate-papo com o alemão Georg Karl Brodka
O alemão Georg Karl Brodka (Frei Jerônimo) lendo o rascunho da maior reportagem que escrevi até hoje (mais de 30 páginas), sobre a sua vida durante a Segunda Guerra Mundial, no campo de refugiados da Tchecoslováquia e mais tarde tentando entrar na Alemanha Federal. Conversamos novamente no sábado e ele me relatou mais fatos interessantes de sua vida, e que farão parte da grande reportagem que pretendo publicar até a semana que vem:
“A primeira vez em que fui preso eu era só um menino, a polícia da fronteira me levou ao pequeno quartel, recebi uma janta boa, um quarto com beliche. No dia seguinte, dois policiais me levaram de novo na ferroviária e me colocaram num trem para voltar à minha cidade, na Alemanha Comunista. Quando o trem entrou em movimento, pulei do outro lado e entrei no outro trem de gado. Não sabia o que iria acontecer, mas aquele outro trem foi na outra direção.
Então, fora da Alemanha Comunista, para a Alemanha Federal. Lá cheguei e o trem parou. Passei meus dedos nas fendas onde o gado estava preso. Bem perto tinha um policial com outro uniforme. Esse policial levou um susto, viu meus dedos e gritou. Ele entrou no vagão e perguntou: ‘O que você está fazendo aqui?’ Então eu disse que iria para Bamberg. Recebi o café de manhã e ele arrumou um caminhão que iria justamente para Bamberg. Foram mais ou menos 350 quilômetros de carona. O caminhão me deixou na frente do Convento dos Carmelitas, onde me tornaria seminarista.
Na oitava série era obrigado a preencher um papel para dizer o que você queria ser no futuro. E eu escrevi que queria ser padre, sacerdote da Igreja Católica. E no outro dia o professor da nossa sala começou a zombar. Aí começaram a rir, aquela gargalhada e o professor falou: “Aqui tem um que quer ser padre. Aí começou aquele bullying, como dizem hoje, na sala de aula.”
Bravo
— A gente se divertia todos os dias.
— Quem?
— Eu e o Bravo. Quando queria brincar, ele sempre esfregava o focinho macio no meu joelho.
— É, não o conheci, mas imagino como você deve estar se sentindo.
— Ele era muito inteligente. Reconhecia sons, identificava todo mundo que chegava. Adorava música. Eu colocava Mogwai pra ele ouvir antes de dormir todos os dias. Se acostumou e já não dormia sem ouvir “Take Me Somewhere Nice” pelo menos uma vez a cada noite.
— Ele chegou a machucar alguém?
— Não, nunca.
— É, então foi um animalzinho muito bom.
— Crescemos juntos praticamente, mas ele ficou grande bem rápido.
— Entendo.
— Ele adorava quebra-cabeças. Tinha um de 15 peças, segurava cada peça pela alcinha branca e encaixava certinho nas lacunas. Tinham formas de frutas, sua comida preferida.
— Sério isso?
— Sim…
— Nunca vi bicho nenhum fazer algo assim.
— Aprendemos muito com ele.
— Um dia minha mãe colocou muita água na panela de pressão, uma vizinha a chamou e elas começaram a conversar. Esqueceu completamente da panela. O Bravo foi até ela e avisou do jeito dele que tinha algo de errado. Fez um bom barulho. Minha mãe o acompanhou e quando chegou até a cozinha a água estava transbordando sobre o fogão. Havia água quente pra todo lado.
— Outra vez ele sentiu um cheiro estranho. O gás estava vazando. É, se não fosse por ele nem sei se estaríamos aqui hoje.
— Ele morreu com que idade?
— 17 anos. Passei parte da minha infância e toda a minha adolescência com ele.
— Que amizade legal.
— Às vezes eu encostava a cabeça na barriga dele e cochilávamos assim. Ninguém se incomodava. Nem eu nem ele.
— Acordava antes de mim. Por volta das 6h, vinha me chamar para ir para a escola. Era melhor do que eu em identificar as horas. Muito melhor — disse rindo.
— Você teve um amigão.
— O melhor.
— Seus olhos eram bem expressivos, como olhos humanos. Eu achava que ele era o único, mas a verdade é que ele era como um representante de todos. Sei que ele veio para nos ensinar que devemos ver ele em todos os outros. Não se trata de ser especial, se trata de entender que se vemos algo de especial em um, somos capazes de ver nos outros também.
— Realmente, cachorros são incríveis.
— São sim. Mas Bravo não era cachorro. Era um porco que livramos da morte em um matadouro.
Tião e Tonho
O menino viu o pai entrando no barracão com uma foice. No cabo, um pedaço de fita isolante. Era com ela que fazia tantos bichos gritarem antes de desaparecerem, deixando um curto rastro de sangue grosso. Tão grosso que se misturava à terra e se transformava num caminho, caminho para lugar nenhum.
Tião se esforçou para chacoalhar a porta de madeira, que rangia, mas não cedia. “Sou fraco demais”, monologou o menino fazendo bico.
— Deixa eu entrar, pai, deixa eu entrar!
— Não! Vá pra dentro com seus irmãos que tenho serviço pra fazer.
— Por favor, pai! Eu imploro. Me deixe, me deixe entrar! Não vou atrapalhar…
Tião sentou no chão de terra e começou a chorar observando o céu anilado.
— Aqui tá azul, mas lá dentro deve tá vermelho. O pai não me engana. Tá fazendo maldade de novo.
Cochilou depois de tanto bater em vão na tábua velha que servia de apoio para as costas. Sonhou que a porta se abriu. O pai acariciava Tonho. Ninguém gritava ou mugia. O silêncio, como o desejo, resplandecia. O boi inclinou a cabeça e Tião deu-lhe um abraço.
Sentia a respiração morna de Tonho, seus olhos escuros e vibrantes. Serenidade e ânsia, pela vida que não se esvaía. O suficiente. De repente, o boi correu em disparada. O pai não conseguiu alcançá-lo. Duas grandes folhas de bananeira caíram sobre o lombo de Tonho e transformaram-se em asas. O boi voou, voou tão alto que desapareceu entre as nuvens.
Tonho acordou com o último mugido. Pungente, abafado, pesaroso. Acabou. Bateu novamente na porta do barracão. O pai abriu.
— Tá, você queria ver, então veja. Não vou mais esconder nada.
O homem saiu com as mãos ensanguentadas.
Cabeça de um lado, corpo do outro. Um no chão, outro na mesa de angelim. É o fim. Baldes de lata cheios de carmesim.
Para o menino, nada mais existia, somente Tonho que repousava a cabeça sobre a terra arenosa e fria.
— Você tá bonito, Tonho. Te vi voando no céu agorinha. Sua boca tá seca. Você deve tá com sede.
Pegou uma pequena bacia branca, colocou água fresca e a derramou sobre a boca do boi. Olhos fixos. Não reagia.
— Entendi. Você tá muito cansado. Amanhã a gente brinca.
Me parece que virou moda demonizar as redes sociais hoje em dia
Me parece que virou moda demonizar as redes sociais hoje em dia. Acredito que o problema não está em usar as redes sociais, mas sim em saber aproveitar o que elas têm de bom a oferecer. Ultimamente, tenho encontrado muitas pessoas falando de mídias sociais como se fossem o próprio demônio. Acho isso exagerado, até porque é uma importante ferramenta de divulgação do meu trabalho, e não tenho como não considerar isso positivo. Sejamos ponderados que tudo transcorre bem.
A caça
Um homem encontrou um caçador acompanhado do filho na mata. Eles arrastavam com dificuldade o cadáver de uma onça-pintada.
— Querem ajuda?
— Sim, por gentileza.
Depois de percorrerem mais de um quilômetro, pararam ao lado de uma caminhonete. O caçador pediu que o homem fotografasse ele e o filho com a onça inanimada.
— Não posso fazer isso.
— Por quê?
— Pelo mesmo motivo que esse animal jamais exibiria o seu filho aos dele como se fosse um troféu.
— Você é louco? Isso é uma onça, não uma pessoa.
— O senhor tem razão. É justamente por não ser uma pessoa que ela não faria isso. Não goza dessa estranha capacidade. A propósito, por que mataram esse animal e o que farão com ele?
— Matamos porque é matreira. Já nos avisaram que ela tem invadido chácaras, sítios e fazendas da região.
— Quem disse ao senhor?
— Um sujeito que mora naquele sítio a leste.
— Isso é intrigante.
— Por quê?
— Porque é lá que eu moro. O que pretende fazer com a onça?
— Curtir o couro, fazer um tapete, um churrasco. Dizem que carne de onça tem gosto de lombo de porco. Vamos experimentar.
— O senhor tem comida em casa?
— Sim…
— Fartura?
— Sim…
— Então por que comer a carne desse animal? O senhor já viu outro ser vivo arrancar o couro de alguém para servir apenas para limpar-lhe os pés?
— Então farei um casaco.
— Imagino que o senhor tenha blusas e jaquetas em casa…
— Farei um cobertor.
— O senhor tem passado frio atualmente?
— Não…
— Imagino.
— Amigo, farei o que eu quiser. Não me interessa sua opinião. Só aceitei ajuda para carregá-la.
— Tudo bem. Mas o que o senhor ensina ao seu filho fazendo isso?
— Ensino que é importante estar preparado pra tudo.
— Humm…
— E o senhor pensa em viver em uma área de mata fechada?
— Não…
— Então em qual circunstância seu filho teria que matar um animal desses?
— Não interessa.
— O que você aprendeu com seu pai hoje?
O menino ficou em silêncio.
— Chega dessa conversa. Vá cuidar de sua vida.
— Tudo bem, senhor.
Entre as ramagens, um filhote de onça-pintada ameaçava se aproximar.
— O senhor tem uma dívida. Se um dia aquele filhote lhe cobrar, o senhor não poderá reclamar.
O caçador riu, mas deixou a onça e partiu.
O preço do pernil
Tem três pés e muita dificuldade para andar. Não desiste. Entre passos e pequenos saltos, se aproxima de um homem comendo tranquilamente um sanduíche. À sombra da sibipiruna, o rapaz de bermuda leva um susto quando sente um focinho gelado tocando-lhe a panturrilha descoberta.
Solta um gemido doloroso e aponta o focinho para o próprio ferimento. Falta-lhe uma perna. O estranho continua sem entender o que aquilo significa. Entre mastigadas e desinteresse, se irrita quando o porquinho toca-lhe a mão com a cabeça.
— Pelo amor de Deus, né? Você quase derrubou meu lanche. Vá pra lá, tá me irritando.
Mais uma vez. Persistência. Entre duas fatias de pão, o último pedaço de pernil cai sobre um punhado de folhas. O rapaz se levanta. Sisudo, furibundo, esfaimado. Suor quente. A ameaça do chute não intimida. O pequeno o observa sem se mover. Ameaça. Sim, ameaça humana.
— Te mato, caramba! Mato mesmo!
O porquinho empurra o pequeno pedaço de carne. Faz um desenho com o focinho.
— O que você tá fazendo?
Continua arrastando o focinho pelo solo.
— Hã?
Um pernil, disforme, mas um pernil riscado na terra. No núcleo, um pedaço da carne suja.
O porquinho deita no chão. Ganha uma perna incapaz de mover. Pouca carne. Carne sem vida. Riscos. É o que resta.
— Você quer dizer que comi sua perna?
O porquinho se levanta, o observa e vai embora. Dor, passos curtos e incertos, pulinhos, pulinhos alternados.
A carne já não é carne. O rapaz cava um pequeno buraco com as mãos, enterra o pedaço de pernil e cobre com terra. Escreve no chão: “Que a minha busca pelo perdão triunfe sobre o prazer da gustação.”
Ácido lático pode ser tanto de origem animal quanto vegetal
O ácido lático usado na indústria alimentícia, e em outras indústrias, pode ser tanto de origem animal quanto vegetal. Há muito tempo o ácido lático passou a ser extraído também do bagaço da cana-de-açúcar, ou seja, é um produto que em muitos casos é 100% vegetal. Esse nome, que logo faz as pessoas associarem à lactose, surgiu porque o ácido lático foi descoberto originalmente no leite coalhado. A única forma de saber se realmente é de origem vegetal ou animal é pesquisando e entrando em contato com o fabricante.