Se quiser ter filhos, seja feliz. Se não quiser, que seja também
Há um texto sendo compartilhado em mídias sociais em que um senhor afirma que os bebês estão perdendo espaço para os “pets” ou “animais domésticos”, e que por isso estamos nos afastando de nossa “vocação humana”. Para ser honesto, não gosto muito do termo “pet”, porque como disse James Cromwell algumas vezes em entrevistas sobre direitos animais, quando falamos em “pet” há uma objetificação, uma reafirmação de uma ideia de que estamos falando de um ser vivo que parece que existe para nos servir, nos entreter. Claro que a ideia não é condenar quem usa o termo inocentemente, mas sim propor uma pequena reflexão.
O sujeito que publicou o texto em que critica quem convive com animais, mas não tem filhos, se posiciona como filósofo. Eu não o conheço, mas sei que no contexto da filosofia não cabe, ou pelo menos não deveria caber, senso comum ou discurso apelativo ou imponderado. Optar por não ter filhos não faz de ninguém menos humano. Desde a minha infância, tenho recordações de pessoas incríveis que marcaram a minha vida e optaram por não ter filhos.
“Teu individualismo revela tua natureza tão decadente e insuportável que somente um animal, devido a inocência, é capaz de tolerar-te, de ‘suprir’ a tua dificuldade de conviver e amar, de retirar-te da solidão, um dos tantos males da contemporaneidade.” Quando o sujeito faz tal afirmação, e extremamente agressiva se analisarmos a escolha das palavras, tenho a impressão de que ele está se referindo a pessoas que vivem em estoica misantropia.
Conheço mães e pais que são solitários, assim como pessoas que não têm filhos e não têm nenhum dos problemas citados acima. O ponto crítico desse tipo de afirmação é a óbvia generalização. Ter filhos ou não tê-los é direito de cada um. No texto, o autor afirma que o ato de ter filhos nos “humaniza”. Realmente ter filhos pode contribuir muito para o desenvolvimento humano, tenho exemplos disso na família. Mas isso não diz respeito a todos os seres humanos.
Não tê-los não significa caminhar em direção oposta. Muitos assassinos, criminosos e corruptos são pais de alguém. Acompanhe as notícias da realidade da violência intrafamiliar no Brasil e no mundo. Segundo a Fundação das Nações Unidas para a Infância, só no Brasil são registrados cinco casos por hora de violência intrafamiliar.
Sendo assim, está claro que ter filhos não “humaniza” todo mundo. Na realidade, acredito que essa percepção do ser humano que se transforma com a maternidade ou a paternidade é romântica. Sim, ela existe, mas não tanto quanto as pessoas gostam de fazer parecer, o que naturalmente é uma herança histórica cultural. E claro, quando a alçamos a níveis irreais, ela é mais idealizada do que vivida.
Muitas vezes, pessoas que vivem reclusas em seus pequenos círculos sociais, em suas zonas de conforto, acabam por ter dificuldade em perceber a heterogeneidade que isso abarca. Ter filhos, sem dúvida, pode ser um ato de amor, mas não tê-los não é um ato de desamor. Ademais, sabemos que há muitas pessoas que somente colocam filhos no mundo, mas não os educam nem dão amor.
Desrespeito, ausência de limites, comportamento violento, desvio de caráter, imoralidade, abandono…; não raramente isso faz parte do kit Omissão e Falta de Estrutura Familiar. Além disso, em um país cada vez mais populoso, não acho justo condenar pessoas que não querem ter filhos. Que cada um tenha o direito de fazer suas próprias escolhas. Se quiser ter filhos, seja feliz. Se não quiser, que seja também.