Archive for January, 2018
Fazenda Tolstói em Joanesburgo
Quem for a Joanesburgo, na África do Sul, pode visitar a Fazenda Tolstói, fundada em 1910 por Mahatma Gandhi e Hermann Kallenbach. O espaço aberto à visitação era uma comunidade com fins educacionais e sociais, onde se difundia valores morais que incluíam a não violência, a importância da vida independente de espécie e o vegetarianismo.
Tolstói e Gandhi
Pouco tempo antes de falecer, Tolstói disse que preferia mais ser celebrado por suas obras voltadas à sua filosofia de vida e filosofia moral, o que incluía a sua defesa do vegetarianismo, do que pelos seus romances. Claro que o alcance de seu trabalho como romancista o levou muito mais longe em popularidade, mas de alguma forma a sua filosofia teve um impacto muito significativo. Exemplos?
“O Primeiro Passo”, de 1892, que deu origem às bases do vegetarianismo ético russo e a sua obra “O Reino de Deus está em vós”, de 1894, que traz uma abordagem espiritual não dogmática e que teve grande influência sobre a juventude de Gandhi, tanto que depois ele fundou nas imediações de Joanesburgo, na África do Sul, a Fazenda Tolstói. Gandhi, que foi influenciado pelos ensaios de não violência de Tolstói, que incluía animais humanos e não humanos, se considerava um tolstoiano. Esse é um dos assuntos que faz parte do meu longo artigo sobre a história de Tolstói com o vegetarianismo.
O meu livro “Vegaromba” também está à venda no Bol, da Holanda
“Se quiser fazer o seu próprio hambúrguer, o processo começa aqui”
[No matadouro]
— Como é matar boi o dia inteiro? O senhor não acha que isso é assassinato? O senhor não acha que sacrificar esses animais é crime?
— Acho.
Todos permanecem em silêncio.
— Então o senhor se considera um assassino?
— É.
A curta resposta cala a mulher e garante a quietude dos demais.
— A senhora já comeu um hambúrguer?
A mulher responde que sim com a cabeça.
— E como a senhora acha que ele foi parar lá?
[…] Ele entrega a marreta para a mulher.
— A senhora pode descobrir se quiser. […] Se quiser fazer o seu próprio hambúrguer, o processo começa aqui.
A mulher larga a marreta no chão e começa a chorar.
Excertos de “De Gados e Homens”, de Ana Paula Maia, romance lançado em 2013 pela Editora Record.
O equívoco da Folha de S. Paulo ao usar o termo “carnívoros”
A Folha de S. Paulo publica “Missionários vegetarianos apostam no terror para converter carnívoros”. Creio que não seja muito difícil dar uma rápida pesquisada no Google para entender que seres humanos não são carnívoros. Carnívoros são seres vivos que dependem essencialmente de carne para sobreviver.
E seres humanos consomem basicamente carne por uma questão histórica e cultural, não essencial. Afinal, a existência de vegetarianos e veganos saudáveis é a prova disso, e me incluo entre eles. Logo ser carnívoro é uma condição biológica, não habitual. Não é difícil perceber que ao longo da história da humanidade, e por fatores diversos, desenvolvemos hábitos onívoros; alguns nocivos, outros não.
Claro, se fôssemos, de fato, carnívoros, prosperaríamos facilmente em uma dieta isenta de glicídios e rica em lipídios, inclusive proveniente de carnes extremamente gordas. Também não teríamos qualquer dificuldade em metabolizar grandes quantidades de carne, assim como leões, lobos e abutres.
O tratamento que dispensamos aos não humanos
Para que as pessoas possam se alimentar de uma “carne de qualidade”, os animais, por padrão, são deixados em jejum prolongado. Isto, claro, para que suas reações fisiológicas associadas à última refeição não comprometam a qualidade da carne. Como isso pode parecer justo? Aceitável? Você já considerou o fato de que até mesmo serial killers, ou seja, assassinos que não raramente são considerados os piores seres humanos, recebem melhor tratamento?
Um exemplo? Sujeitos que estupraram e mataram dezenas de pessoas e que são condenados à morte nos Estados Unidos costumam ter o direito de escolher uma última refeição com tudo que lhes agrada. Já os animais não humanos, relegamos à fome antes do golpe mortal. Sendo assim, como alguém pode dizer que reprovar o consumo de animais e lutar pelo direito à vida não humana não é importante? Seres não humanos estão na pior escala de tratamento da história da humanidade. Muito abaixo daqueles que são considerados alguns dos piores criminosos da nossa história contemporânea.
O jogo de interesses na exploração de animais e a contradição da salvação
Será que aos olhos dos animais não somos vistos como assassinos?
Vamos esquecer por um instante o conceito legal, tradicional e legitimado socialmente de certo e errado e suas implicações ulteriores. Será que o famigerado Assassino do Zodíaco poderia ser considerado um executor com uma proposta de morticínio que segue os princípios do “abate humanitário”? É inegável que ele era um psicopata que usurpava vidas, e por isso merecia ser responsabilizado por seus atos. Mas, por pior que fossem suas ações, me parece, valendo-me me de sua trajetória, que ele não deixava de ter um código de ética.
Afinal, ele matava suas vítimas com tiros cirúrgicos, com precisão letal. Suas ações, independente de motivação, não deixavam rastros de passionalidade. Como um criminoso organizado, era como se estivesse simplesmente cumprindo um trabalho; tanto que sequer tocava suas vítimas. Ele não as torturava; não tinha qualquer interesse ordinário ou especial pelo sofrimento, mas apenas pelas consequências daquilo que não existiria sem o sofrimento pessoal ou transferível em algum nível. Ou seja, a morte.
O contato direto, a fisicalidade, não o interessava. O seu ritual se resumia ao gatilho. O prazer, se existiu, estava no disparo, e o seu clímax no desvanecimento da existência. E foi isso que impediu que ele jamais fosse capturado. Não era previsível nem imprevisível. Ostensivo e privativo, eu diria. Usava sempre o mesmo uniforme e quase sempre a mesma arma. Seu modus operandi e sua assinatura eram unos e indefectíveis na sua expressão e categoria nos anos 1968 e 1969. Seu método empedernido, mesmo que não motivado economicamente, já que não lucrava para matar, me levou a uma associação, concordem ou não, entre a sua pistola e a captive bolt pistol (no Brasil, conhecida como pistola de atordoamento ou de abate), usada nos matadouros dos países de “Primeiro Mundo” desde as primeiras décadas do século 20.
Me refiro à pistola empunhada pelos magarefes para disparar com brutal naturalidade um dardo que penetra o crânio de um animal não humano e atinge seu cérebro na tentativa de insensibilizá-lo no processo de abate. Se fizéssemos isso com seres humanos, independente de motivação, mesmo que em um caso de reparação ou de “lei de talião”, não seríamos considerados vis, túrbidos, refeces, monstros? Jeffrey Dahmer lobotomizava suas vítimas humanas. Será que o que fazemos com os animais antes de matá-los nas linhas de execução é tão diferente da lobotomização? Já que o disparo da captive bolt pistol rouba-lhes a própria identidade, tornando-os inúteis na sua própria essência, assim como os lobotomizados.
Acredito que há funcionários de matadouros que realmente não sentem prazer em tirar a vida de um animal não humano, já que muitos cumprem esse trabalho por alegada necessidade. Porém, será que isso não impacta em suas vidas? Em seu estado emocional e psicológico? Imagine ter um cotidiano pautado em violentar e matar animais. É preciso crer que está diante de objetos, não de vidas. É imprescindível desligar a compaixão – permitir-se uma dissociação. Do contrário, não serve para o trabalho.
Não que trabalhar em um matadouro transforme essas pessoas em sujeitos terríveis, já que são seres humanos imersos em um universo de legitimação de mortes de outras espécies. Afinal, eles seguem o protocolo da indústria e não ousam questioná-la por diversos fatores – pessoais ou não. A atividade se resume a ser pago, em muitos casos mal pago, para matar sob o respaldo legal. Há uma “roupagem” de atividade comum, impedindo que aquele que dispara uma arma contra a cabeça de um animal reconheça isso como errado, cruel, e menos ainda como assassinato. Claro, porque a humanidade diz que está tudo bem em matar, desde que não seja um ser humano; e desde que aquela morte gere algum produto ou bem de consumo.
O mundo ao seu redor diz que o que ele faz é certo numa proporção muito maior do que a condenatória, já que o valor da vida animal não humana é proporcional ao peso da carcaça no contexto comercial. Porém, há um aspecto tétrico a se considerar. Essa realidade pode brutalizar o ser humano e transformá-lo, se assim o permitir. E se o executor desenvolve prazer pelo que faz, mesmo que isso signifique a morte de ser de outra espécie, ele corre o risco de definitivamente abrir mão de uma das qualidades mais importantes do ser humano, que é a empatia. Isso realmente não é impossível. Vídeos amadores pululam no YouTube mostrando que como os animais não partilham do mesmo código comunicativo que nós, há sempre aqueles que agem, de fato, como violentadores, psicopatas, serial killers, rampage killers ou mass murderers em relação aos animais de outras espécies.
O contato naturalizado com a violência pode asselvajar o ser humano, principalmente aqueles que já têm predisposição à ferocidade; ou a transferir frustrações aos vulneráveis com quem convive – com destaque para aqueles que não podem reclamar do próprio sofrimento por não terem uma voz que inspira respeito e consideração. Quem não se recorda do clássico do cinema de terror intitulado “Texas Chainsaw Massacre?” Nas partes mais pesadas do filme, estamos diante de um matadouro, e tudo que acontece lá dentro choca facilmente os seres humanos porque as vítimas são humanas. Por outro lado, ignoramos que aquela é a realidade ordinária não humana. Desconsidere a figura do serial killer e substitua os personagens humanos do filme por animais e você terá uma representação trivial do cotidiano.
Pessoas penduradas em grilhões, e sendo golpeadas violentamente, assim como fazemos com porcos; e, claro, tendo partes de seu corpo removidas. O código de comunicação do assassino também parece ser outro, e a sua ausência de empatia faz refletir sobre a empatia que negamos aos seres de outras espécies. É como se não ouvíssemos os animais, assim como os assassinos em série não ouvissem os seres humanos – como se enxergassem a si mesmos como uma espécie além – dotada do direito de nos exterminar. Analise alguns discursos de serial killers e você verá que não é difícil perceber que vários deles se referem às suas vítimas como se fossem bovinos e suínos.
Claro que a minha intenção não é chamar de assassino quem sobrevive matando animais, mas o ato em si é análogo a um assassinato quando subtraímos vidas que não nos pertencem, independente de finalidade. Mas o mundo e a nossa realidade social, cultural e econômica nos dizem diariamente que esse assassinato é justo, necessário e legal, porque tem o aval da maior parte da população e do Estado. E a morte de animais, além de cruel e evidentemente desnecessária, já que é possível viver muito bem sem matar outras espécies para consumo, pode preparar alguém para ações que, enfim, despertem a atenção da população, deixando-a em choque, como é o caso dos crimes cometidos pelo Zodiac Killer, citado no início do texto.
Além desse, recordo-me do caso de Jeremiah Burroughs, funcionário de um matadouro, que enfastiado de executar animais dóceis, acabou por matar mais de 70 pessoas. Há quem diga que o meio e a naturalização da violência contra não humanos o levou a matar pessoas. Não posso afirmar, mas não duvido, e creio que ele não seja o único. Ademais, há inúmeros assassinos e serial killers que adotaram em suas execuções métodos comuns em matadouros e na indústria da carne. Outros exemplos são Jeffrey Dahmer, Robert Pickton, os Bloody Benders, Ottis Toole, Albert Fish, Ed Gein, Béla Kiss, Richard Trenton Chase, Joachim Kroll, Armin Meiwes, Andrei Chikatilo, Arthur Shawcross, Issei Sagawa e Robert Maudsley, entre outros.
Será que aos olhos dos animais não humanos que seguem matadouro adentro não existe a possibilidade de que sejamos vistos como serial killers, mass murderers? A verdade que muitos se negam a ver é que assim como vítimas humanas de assassinatos não têm qualquer anseio em morrer, os animais não humanos nos matadouros partilham do mesmo interesse. Uma prova disso? Antes de executar um animal, dê a ele, ou peça que deem a ele, a oportunidade de fugir. Então você terá sua resposta.
“The Yoyo Effect”, documentário promete mostrar os equívocos das dietas ricas em alimentos de origem animal
Autor do documentário “Food Choices”, de 2016, que discute os maus hábitos alimentares associados principalmente aos alimentos de origem animal, o produtor e diretor Michal Siewierski está prestes a lançar o seu segundo documentário. Intitulado “The Yoyo Effect”, o filme vai mostrar a epidemia de obesidade que tem atingido os Estados Unidos, além dos equívocos das dietas da moda e das dietas de perda de peso como a dieta paleolítica e a dieta Atkins.
Siewierski garante que o filme contará com inúmeras evidências científicas, e promete apresentar aos espectadores estratégias equilibradas de perda de peso que são sustentáveis e que realmente ajudam a melhorar a saúde, sem riscos de rebote. “O meu objetivo é munir o espectador de informações que podem levá-lo a um caminho de perda de peso saudável a longo prazo por meio de uma mudança no seu estilo de vida”, declarou ao Veg News.
Michal Siewierski, que já foi obeso e teve sua vida completamente transformada depois que abdicou do consumo de “fast food” e de todos os alimentos de origem animal, defende que o melhor caminho é uma dieta nutricionalmente completa e baseada principalmente em vegetais. “Há uma mensagem para não veganos e veganos, já que temos também veganos concentrando suas dietas em alimentos processados e altamente calóricos [sem que haja tal demanda]”, avisa.
Entre os participantes do documentário estão o médico Neal Barnard, do Comitê Médico Para Medicina Responsável dos Estados Unidos (PCRM), o ultramaratonista vegano Rich Roll e o fundador e CEO da Whole Foods, John Mackey. O filme produzido e dirigido por Michal Siewierski foi patrocinado por financiamento coletivo.
Plutarco e a relação entre a violência e o consumo de carne
“Me pergunto qual foi a sensação do primeiro homem que colocou a carne de um animal assassinado em sua boca”
Dos filósofos gregos da Antiguidade, é provável que Plutarco, a quem costumeiramente é atribuído o entendimento moderno do que foi a Grécia Antiga, tenha sido o mais enfático e o mais pontual na crítica à exploração animal. Autor de “De Esu Carnium”, ou “Do Consumo da Carne”, escrito no século I, que integra uma de suas obras mais importantes – “Moralia”, o filósofo platonista, biógrafo e ensaísta grego, que se voltava para a discussão das questões morais, escreveu que o “hábito selvagem” do consumo de carne inclina a mente à brutalidade, ao derramamento de sangue e à destruição quando o endossamos e o reconhecemos como parte de uma realidade natural.
No capítulo “Do Consumo da Carne”, da obra “Moralia”, Plutarco defende que desde que o ser humano teve acesso a uma praticamente inesgotável fonte de alimentos de origem vegetal é inaceitável o consumo da carne de animais que não seria possível “sem mascarar o sabor do sangue com milhares de especiarias”. A contrariedade do filósofo grego, que mais tarde influenciaria o vegetarianismo ético no Ocidente, era baseada em uma recusa moral, já que a sua rejeição à carne como alimento era uma consequência da ponderação de que o consumo de carne depende do sofrimento e da morte dos animais, logo uma desconsideração do valor da vida não humana.
Plutarco também escreveu que, ao assar ou ferver a carne, o ser humano altera o seu gosto natural e depois se intruja usando especiarias e mel para cobrir o sabor do sangue e “esconder a sua culpa por comer algo que tinha uma alma”: “Me pergunto qual foi a sensação do primeiro homem que colocou a carne de um animal assassinado em sua boca. […] Ele chamou de iguarias as partes que um animal usava para rugir, falar, mover e ver.” […] Como seus olhos podem admirar o sangue de criaturas abatidas, esfoladas e esquartejadas? Como seu nariz pôde suportar o mau cheiro?”
Para o filósofo grego, se uma pessoa realmente acredita que nasceu para consumir carne, ela deve pelo menos assumir a responsabilidade de matar o que há de comer. Ele diz que quem se considera, de fato, carnívoro, precisa abdicar do uso da faca, da marreta ou do machado; e agir como os lobos, os ursos e os leões, que se alimentam ao mesmo tempo em que matam. Plutarco desafia as pessoas a “rasgarem um boi com os dentes”, “roerem um porco ainda vivo” ou a reduzirem “um cordeiro ou uma lebre em pedaços” usando apenas as mãos e a boca.
Tal costume de não assumir a responsabilidade sobre o abate é o que permite a dissociação entre a morte animal e o consumo de carne. Assim permitindo que o paladar esteja em acordo com a barbárie alimentar. Plutarco cita um episódio em que um lacedemônio comprou um peixe em uma pousada e o entregou ao seu senhorio. O homem então exigiu que o preparasse com queijo, vinagre e óleo. O lacedemônio respondeu que se tivesse todos esses ingredientes, não teria porque comprar o peixe:
“Mas somos tão despreocupados em relação ao nosso luxo sangrento que atribuímos à carne o nome de carne; e então exigimos outro tempero para a mesma carne, misturando óleo, vinho, mel, salmoura e vinagre, com especiarias árabes.” Na perspectiva plutarquiana, Pitágoras se absteve do consumo de carne com razão, ponderando que aquilo a que as pessoas chamam simplesmente de “carne” era parte do corpo de um animal não humano, logo importante a ele. Plutarco condenava a banalização do sangue dos corpos abatidos, esfolados e maculados, observando que o mau cheiro era sempre ofuscado como forma de “não ofender o paladar”.
Ele admite que em outros tempos talvez o consumo de carne pudesse ser justificado pela escassez de alimentos vegetais, dependendo da localização geográfica. Porém, em sua época, o consumo de carne já não era visto como essencial, mas somente uma reafirmação de status, distinção social, e expressão de extravagantes concupiscências. “O seu crescente e despreocupado capricho relacionado à variedade excessiva de provisões [de origem animal] trouxe prazeres tão insociáveis como estes contra a natureza”, anotou Plutarco. Tal observação foi feita pelo filósofo arrazoando que à época uma minoria estava imersa nos excessos da carne. Por isso, ele a considerava também um costume insociável, bravio e segregacionista.
“Que abundância de coisas brotam para o seu uso! De quantas vinhas frutíferas você pode desfrutar! Que riqueza você recolhe dos campos! Que iguarias das árvores e das plantas, você pode reunir! Você pode fluir e preencher-se sem poluir. […] Quanto a nós, caímos sobre a parte mais triste e assustadora do tempo, na qual fomos expostos a desejos múltiplos e inextricáveis.”
O filósofo defendia que todos poderiam viver melhor, de forma mais justa e pacífica, se partilhassem da mesma nutrição sem alimentos de origem animal. No seu entendimento, a exaltação do consumo da carne trouxe a gula e a degeneração, e transformou o racional em irracional. “Que refeição não é cara? Aquela em que nenhum animal é morto”, afirma. Valendo-se dos ensinamentos de Empédocles, Plutarco cita que não devemos ignorar o sentimento, a visão, a audição, a imaginação e a intelecção que cada animal recebeu da natureza para adquirir o que é aceitável e evitar o que é desagradável.
Ele reconhecia a grande diversidade dos alimentos de origem vegetal, assim não vendo qualquer justificativa para que os humanos transgredissem o que ele definia como “lei da natureza”, que era a não intervenção na vida não humana visando o abate que nada atende além dos vícios do paladar. “Por que se deixar levar pela voracidade e pelo frenesi nesses dias, contaminando-se com o sangue, quando há abundância de alimentos necessários à sua subsistência? Por que você acredita que a terra não é capaz de mantê-lo vivo? […] Você não se envergonha de misturar as frutas e os vegetais com sangue e morte?”, questiona.
Plutarco associava à naturalização do consumo de carne e da violência contra não humanos com os hábitos dos mais abastados, porque esses representavam a maior parte dos glutões consumidores de carne de seu tempo, que foram os responsáveis por despertar o mesmo ímpio desejo entre os plebeus e miseráveis. “Ó, terrível crueldade! É verdadeiramente uma visão desconfortável a mesa de pessoas ricas que mantêm cozinheiros e fornecedores à sua disposição para abastecê-los com corpos mortos em sua alimentação diária. Mas é ainda pior ver que os mamíferos são afastados da natureza para que os matem em quantidade que nem mesmo consumirão. Estes, portanto, foram mortos sem propósito”, critica.
Ele qualificava como um equívoco o ser humano se intitular carnívoro, ponderando que nos falta a aptidão e as características dos animais naturalmente carnívoros: “Não temos o bico de um falcão, garras e dentes afiados, nem mesmo um estômago apto a digerir adequadamente uma alimentação pesada de carne. Partindo da suavidade da língua e da lentidão do estômago para digeri-la, a natureza parece renunciar toda a pretensão dos víveres carnudos. […] Uma vez, Diógenes arriscou-se a comer um grande contingente de carne crua, para que pudesse se desfazer da carne preparada no fogo; e enquanto vários sacerdotes estavam ao seu redor, ele colocou a cabeça na sua plataforma, o peixe na boca e disse: ‘É por sua causa, senhores, que me coloco em perigo e corro esse risco.’”
Plutarco não negava que o ser humano é capaz de consumir carne, porém reconhecia que a tolerância humana para o consumo de carne é bem diferente daquela dos animais carnívoros, já que nossas limitações são muito mais axiomáticas: “Temos os prejuízos provocados tanto no corpo como na alma dos consumidores. Os incômodos da digestão e aquela desconfortável sensação de peso.” O filósofo grego acreditava que o consumo de carne brutificava a mente e o intelecto humano. Por isso, frisa em “Do Consumo da Carne”, que o próprio estômago não é culpado pelo derramamento de sangue, mas é involuntariamente maculado pela nossa intemperança.
Ele narra que os primeiros homens a alegarem que não devemos justiça aos animais foram os primeiros a baterem o “aço maldito”, fazendo com o que o boi sentisse a lâmina penetrando sua carne. Baseando-se em suas pesquisas, Plutarco concluiu que tiranos e opressores foram os primeiros a legitimarem o derramamento de sangue. Cita como exemplo o primeiro homem que os atenienses mataram deliberadamente. Mais tarde, incorrendo na prática de matarem outros sem direito a um julgamento justo.
Logo passaram a violentar desnecessariamente animais selvagens e a comê-los. Insatisfeitos com a carne das “feras”, os atenienses passaram a matar pequenas aves e peixes: “E o desejo do abate, pela primeira vez experimentado e exercitado, chegou ao cordial boi, às ovelhas que nos vestem, e ao pobre galo que guarda a casa. Até que, pouco a pouco, a força insaciável fora fortalecida pelo uso, e os homens chegaram ao abate de homens, e ao derramamento de sangue, e às guerras.”
O filósofo grego via o hábito de criar animais dóceis com fins de abate, ou seja, seres indefesos, incapazes de escaparem da crueldade humana, como um exemplo clássico da tirania e da vilania em relação às outras espécies. E mais do que isso, como uma prova incontendível da ação humana em arbitrariedade aos desígnios da natureza. Afinal, sempre escolhiam os animais mais fáceis de serem domesticados fora da natureza selvagem. E a esses animais era legado um destino cruel. Ferros incandescentes eram espetados nas gargantas dos suínos, visando garantir uma carne mais tenra e macia conforme o sangue fluía com mais facilidade em decorrência dos golpes.
Também era costume saltar sobre os ventres e os úberes de porcas prenhas, pouco antes destas parirem, fazendo com que o sangue se misturasse ao leite e aos fetos – o que deixava a “carne mais suculenta”. Os homens cegavam cisnes e outras aves criadas em cativeiro, com a finalidade de as condicionarem a uma alimentação forçada que pudesse enriquecer pratos exóticos. E nada disso tinha relação com a necessidade, mas simplesmente com a glutonaria, o prazer da vilania, na concepção plutarquiana. “O início de uma dieta viciosa é acompanhado por todos os tipos de luxo e carência”, censura.
Dentre os filósofos gregos da Antiguidade, Plutarco recomenda em “Do Consumo da Carne” que aqueles que buscam uma formação humana mais civilizada devem seguir os ensinamentos de Pitágoras e Empédocles, em uma clara referência à defesa da abstenção do consumo de animais. São pensadores que, segundo ele, “incitam os seres humanos a se aproximarem dos outros membros da criação”:
“Chamas selvagens e ferozes outros carnívoros, os tigres, os leões e as serpentes, enquanto manchas no sangue as tuas mãos, e em espécie alguma de barbárie lhes ficas inferior. E para eles, todavia, o assassinato é apenas o meio de se sustentarem; para ti, é uma lascívia supérflua. Aos inocentes, aos mansos, aos que não têm auxílio nem defesa — a esses perseguimos e matamos. Só para ter um pedaço da sua carne, os privamos da luz do sol, da vida para que nasceram. Tomamos por inarticulados e inexpressivos os gritos de queixume que eles soltam e voam em todas as direções, quando na realidade são instâncias e súplicas e rogos que cada um deles nos dirige dizendo: ‘Não é da verdadeira satisfação das vossas reais necessidades que queremos livrar-nos, mas da complacente luxúria dos vossos apetites.’”
Saiba Mais
Plutarco nasceu em Queroneia, na Beócia, na Grécia Central, no ano de 46, e faleceu em Delfos, também na Grécia, no ano 120.
Além de “Moralia”, outra obra importante do filósofo grego é “Vidas Paralelas”.
Referências
Plutarchus, Moralia: Volume VI, Fascicle 1 (Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana). C. Hubert. H. Drexler. Bibliotheca scriptorum Graecorum et Romanorum Teubneriana. K.G. SAUR VERLAG. Segunda reimpressão da segunda edição de 1958 (2002).