David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Alguém diz: “Você está tentando impor o veganismo ao não servir alimentos de origem animal”

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O veganismo é um imperativo moral à medida em que entendemos que alimentos e produtos de origem animal custam vidas (Foto: Jo-Anne McArthur/We Animals)

Uma amiga me contou que uma criança, filho de sua prima, gostaria de passar um final de semana em sua casa. Então a mãe disse que o garoto come carne e que ela deveria prepará-la no almoço e no jantar do menino. Ela explicou que não faria isso, porque não entra carne em sua casa; e que o garoto estaria muito bem nutrido se alimentando da mesma forma que ela, com boa diversidade vegetal. Ou seja, sem nada de origem animal.

A mãe ficou encolerizada e disse que ela estava tentando impor o veganismo para ela e para o filho, e que ela não partilha desses princípios. O primeiro equívoco desse diálogo está bem claro: não há imposição, levando em conta que a anfitriã é vegana, logo vai contra a filosofia de vida dela oferecer carne mesmo que ela não consuma. Afinal, veganismo está muito além do que consumimos; trata-se de um imperativo moral, algo que se aplica a todos os aspectos de nossa vida, inclusive nas nossas relações com os outros.

Nesse contexto, qual mensagem passamos quando fazemos alguma exceção? Que é permitido tomar parte na exploração animal ou incentivá-la em determinadas circunstâncias, desde que não tomemos parte no consumo direto? Se fizermos isso, quem sabe da próxima vez alguém nos convide para ajudar a abater algum animal. Claro, podemos minimizar esse impacto simplesmente não comendo, certo? Realmente, ponderemos, será que não há nada de errado em financiar exploração e morte de criaturas sencientes mesmo quando não consumimos os produtos que derivam dessa exploração?

Tento sempre ser polido e cortês no diálogo sobre a exploração animal, mas isso não significa um tipo alheado de condescendência. De fato, não preparo nem compro nada de origem animal para ninguém. Então posso ser visto como intransigente, mas de uma intransigência em prol de algo chamado justiça. Em circunstância nenhuma ofereço algo de origem animal a alguém, mesmo que tal pessoa se considere uma “apaixonada” por qualquer alimento de origem animal. E isso não é desrespeitoso, é uma manifestação consentânea, sensata, de franca oposição à exploração animal.

Acredito que é esse posicionamento que leva à reflexão, ao entendimento do que fazemos e porque defendemos o que fazemos. A flexibilização dessa conduta pode ser temerária, porque não apenas transmite uma mensagem errada de permissividade, como permite interpretações erradas em relação à rejeição à exploração animal. Não ignoro também que a ideia da exceção e da seletividade abriram precedentes para que explorações pontuais no passado se tornassem explorações massivas. Por isso, sim, sou da opinião de que a exceção pode ser uma armadilha de legitimação ou perpetuação da arbitrariedade.

Ademais, não é imposição um vegano se negar a servir alimentos de origem animal a um convidado. Em certa ocasião, Tolstói, já vegetariano, ofereceu uma faca e uma galinha viva diante da mesa de jantar para que sua tia a matasse caso quisesse comê-la. Claro que ela não o fez. Pode parecer duro, não? Mas a sua eficaz mensagem foi mais do que simbólica e se espalhou pela Rússia. Tolstói não servia animais em sua casa de bom grado.

Não podemos ignorar que na realidade a imposição é defendida e perpetuada por nós quando nos alimentamos de animais, já que as vítimas não têm poder de escolha quando são reduzidas a fontes de produtos, alimentos ou quaisquer outros fins sem relação com suas reais necessidades. Ser vegano não é uma imposição a ninguém, e a recusa em tomar parte na coisificação ou objetificação animal pode ser uma mensagem desconfortável para quem não é de que o que fazemos com criaturas não humanas perpassa pela nossa nociva transigência e displicência. Até porque tem quem olhe uma pessoa que não se alimenta de animais e instantaneamente ache isso incomum, estúrdio, afrontoso.

A existência de veganos em si é vista como uma crítica para muita gente, mesmo que esses veganos nem abram a boca. O fato deles existirem e fazerem o possível para não tomar parte nessa exploração já é um vilipêndio para quem não é capaz de ver que nisso subsiste em essência uma luta por uma forma ancha de respeito que é negligenciada por tanta gente. No meu entendimento, a verdade é que isso diz muito sobre o ser humano, e a sua resistência em, muitas vezes, reavaliar o estado atual das coisas.

Ser uma antítese ou um contraponto à zona de conforto das pessoas é sempre um exercício de chamamento para a mudança. Esse chamamento pode despertar evocações, emoções e sentimentos inesperados e mesmo negativos em quem não está aberto ao diálogo e menos ainda a mudar a sua perspectiva em relação ao direito à vida não humana. O que não significa que não possa se tornar algo positivo no futuro.

A ideia de um novo universo de possibilidades, de se abrir para um novo mundo, é chocante para tanta gente. Porque como seres humanos temos uma tendência a defender hábitos e costumes mesmo quando deletérios: “Se significa vidas que findam, que assim seja, desde que eu me satisfaça.” Costumamos equacionar apenas os prós que nos tocam, mas não os contras que aos outros derrotam.





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