David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

A vida tem um cheiro estranho

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Arte: J. Coates

Com nove ou dez anos, encontrei um senhor em frente de casa, subindo a rua e carregando apenas uma pequena mala. Ele disse: “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho….tem sim….a vida tem um cheiro estranho…”

Parou e me observou enquanto eu acariciava o pelo do Happy. “Você não concorda comigo?”, perguntou. “Não sei.” “Tem sim, meu jovem, um cheiro muito estranho.” “Que cheiro é esse?” “Depende, o que você comeu hoje, o que você fez hoje, com quem você falou hoje?”

“Estou vendo você e esse cachorro aí. O cheiro dele em você, e o seu cheiro nele. Vejo que você estava brincando e se sujou um pouco também.” “Mas a gente toma banho e acaba não ficando cheiro nenhum disso, né?”

“Não é bem assim, o cheiro que desaparece é o cheiro que deixa vestígio no corpo, mas há um cheiro que é aquele que acumulamos ao longo da vida. Somos sortidos de cheiros. E você sabia que o cheiro pesa?” “Como assim?” “Sim, o cheiro pesa.” “Como o cheiro pesa?”

“Ora, imagine carregar tanto cheiro desde o momento em que nasce até o dia em que se morre. Por quantos lugares você passou, quantas pessoas conheceu, quantas situações viveu…tudo isso tem cheiro…que se transformam num pequeno universo de cheiros que nos habita, irreconhecíveis para a maioria. Imagine se colocássemos todos esses cheiros em uma garrafa, nem eu nem você conseguiríamos carregá-la, por certo.”

“Mas isso não faz mal pra saúde?”, questionei. O homem coçou a barba e riu. “Pode fazer mal tanto quanto pode fazer bem. Tudo depende da origem do cheiro, da emoção, sentimento ou experiência que trouxe esse cheiro. O cheiro surge tanto pela intenção quanto pela reação e associação. Os bons são levinhos e os ruins podem ser bem pesados. Mas também podem se transmutar e o bom pode ficar ruim e vice-versa. Então recomendo evitar a condenação sem razão. Seja paciente.”

“Ué, mas não tem jeito de se livrar do cheiro?” “Para o bem ou para o mal, não tem, porque de alguma forma o cheiro somos nós e nós somos o cheiro.” “Humm….” “O que você pode fazer é se esforçar mais para encontrar os cheiros bons ou que pareçam bons, assim quando você acumular cheiros ruins, sejam eles transmutáveis ou não, você terá uma vantagem gerada pelas buscas anteriores ou recorrentes.”

“Isso parece difícil…” “Sim, não é fácil, mas vale a pena, porque com o tempo os cheiros ruins que se acumulam drenam nossa energia. Imagine como seria ficar sem fazer as coisas que você gosta porque não restou muitas forças…”
“Parece terrível…” “Pois saiba que sim, muito…” “E o senhor sabe quanto cheiro já acumulou?” “Ninguém sabe, e é importante não saber, para não se acomodar. Mas estou aqui e é isso que importa, não é mesmo?”

“É…acho que sim.” “A vida tem um cheiro estranho….é….a vida tem um cheiro estranho…tem sim…a vida tem um cheiro estranho…”, disse o homem antes de partir e deixar a pequena mala vazia ao lado do Happy. Nela, uma frase: “Guarde bem os seus cheiros.”

 

Written by David Arioch

January 22nd, 2020 at 11:39 pm

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