Archive for May, 2020
“Paddleton”, um filme sobre cumplicidade e o direito de não sofrer
Assisti a um filme de drama com comédia na Netflix lançado em 2019 que realmente me agradou. O título é “Paddleton”, em referência a um esporte criado por dois amigos que têm uma profunda relação de cumplicidade.
Um deles descobre que tem câncer e já não muito tempo de vida. Ele decide não fazer o tratamento e consegue uma autorização para tirar a própria vida em casa antes que a doença se torne dolorosa. Então pede ajuda ao amigo para morrer “da forma mais confortável possível”.
Eles viajam de carro por seis horas até chegarem a uma cidadezinha formada por imigrantes dinamarqueses. Lá, compram o “medicamento” que servirá para que Michael (Mark Duplass) tire a própria vida sem que haja sofrimento. Há algo de irônico e estúrdio nisso.
Andy (Ray Romano), ainda incomodado com a ideia, compra um cofre de brinquedo na mesma farmácia e decide esconder o medicamento, na tentativa de impedi-lo de morrer – justificando que um “milagre” poderia acontecer e Michael ter sua saúde restabelecida.
Mas, no fundo, e pelo peso da realidade que os dois dividem em suas solitárias vidas que encontram cumplicidade na partilha de convergências como um filme de kung-fu dos anos 1970 e jogos desconhecidos pela maioria, eles entendem que dor e partida são inevitáveis.
Ao longo da trajetória, há muitas boas sacadas de humor sobre os paradoxos da vida. A morte é tão temida quanto escarnecida. Em “Paddleton” é interessante a ausência de apelos melodramáticos.
A solidão é tão espaçosa quanto a solitude, com quem se confunde. Até mesmo o sofrimento recebe uma construção diferenciada, de algo que, quando não nos consome, somos nós que o consumimos – como em uma troca.
É um filme com poucos personagens e cenários – o que importa são os dois amigos, a relação entre Michael e Andy, a doença e suas percepções sutis, singelas, satíricas e pueris da vida.
A fotografia também chama a atenção porque por vezes transmite algo de morno e letárgico, talvez em referência ao que nos cabe dentro do que definimos como normalidade da vida diante daquilo que foge ao nosso controle.
O desenho e as sementes do andarilho
Na minha infância, havia um andarilho que passava em frente de casa todos os dias – nunca pedia nada. Carregava um caderno com folhas em branco debaixo do braço. Do outro, levava um envelope grande com sementes. Um dia, quando eu estava sentado no meio-fio, ele se aproximou.
Ficou sorrindo e me olhando. Eu não sabia que tinha um pouco de pó de grafite no meu rosto. “Faz assim”, disse em tom baixo e balançando a cabeça. Balancei e ele abriu o caderno. O pó deitou sobre uma das folhas. Parou de sorrir e passou a mão suavemente por ela, usando dois dedos – os indicadores de cada mão.
Quando olhei outra vez para o caderno, vi um desenho idêntico ao meu rosto criado em não mais que 20 segundos. Ele tirou a folha e me entregou sem dizer palavra. Noutro dia, a folha já estava em branco. Fiquei lá fora o esperando passar outra vez pra perguntar o que tinha acontecido.
Ele apenas sorriu e sinalizou pra eu formar uma concha com as mãos. Me deu algumas sementes e disse que se eu as plantasse naquele dia, elas não desapareceriam. Mas se deixasse para o dia seguinte, elas correriam. Foi o que fiz. Quando a chuva-de-ouro nasceu, soube que ele morreu – cardiopatia congênita.