Archive for the ‘Contos/Short Stories’ Category
Coleirinha também quer viver
Uma coleirinha caiu da árvore enquanto um homem caminhava pela calçada. Estava viva, mas com as asas machucadas, sem condições de voar. Ele a pegou com cuidado, a ajeitou em uma espécie de ninho com a jaqueta e saiu caminhando.
Em casa, improvisou curativo e porção de alpiste e painço. Ficou observando a passarinha dentro de uma caixa de madeira com dois furos redondos que permitia deixar o biquinho pra fora.
“Deve ter de 40 a 50 dias de idade”, pensou. À noite, colocou a caixa ao lado da cama e começou a dar toquinhos. Dois toquinhos faziam a coleirinha reagir com duas bicadas leves. Achou graça. Três toquinhos e três bicadas, quatro toquinhos e quatro bicadas…
Pela manhã, como não havia mais bichos em casa, a deixou solta – com comida e água à vontade. Apenas fechou as janelas para evitar que se machucasse ou fosse capturada. À tarde, a levou ao veterinário. Como imaginou, não era grave, e em poucos dias poderia partir.
Na semana seguinte, já recuperada, começou a voar dentro de casa. Hora de partir. Abriu a janela e a coleirinha voou até escapar do seu campo de visão. “Missão cumprida”, pensou.
À noite, enquanto chuviscava, ouviu barulho familiar. Duas bicadas intervaladas, três bicadas intervaladas. Assim que abriu a janela, a coleirinha caiu em sua mão, sangrando e contraindo o que restou das asinhas molhadas.
Começou a chorar quando viu os chumbinhos cravados em sua carne. “Isso não pode ser coincidência”, disse. Passou a noite acordado na sala de espera da clínica veterinária – vez ou outra observava a coleirinha de costas, fragilizada.
Fez promessa pela sobrevivência da passarinha. Dois meses depois, a coleirinha já saudável partiu para não mais retornar e Mauro fechou sua fábrica de chumbinhos.
Peixe também sofre
Um homem pescava às margens do Rio Paraná quando um menino se aproximou. Não dizia nada, só observava, acompanhando o anzol. Mais de uma hora depois, continuava assistindo o pescador insistindo na captura de um peixe.
Quando já estava cansando, o homem sentiu uma fisgada e puxou a vara com cuidado, sem fazer muita força, pra confirmar se não era ilusão da insolação. Havia um dourado preso ao anzol, e lutava para se livrar da situação.
Usava o corpo todo. Se retorcia com tanta força que a cauda quase encostava na boca perfurada pelo gancho metálico. “Hoje você é meu, é sim, você é meu…”
Depois de muito esforço, quando conseguiu tirá-lo da água, o lançando em um pedaço de lona sobre uma porção descampada, o peixe se debatia e movia a cauda; e não só ele, o menino também.
Sangue escorria pela boca da criança – os olhos foram perdendo o viço e já não conseguia respirar. Segurava a própria garganta e rolava de um lado para o outro na terra.
Desesperado, se jogou no Rio Paraná. O pescador pulou logo atrás e, o puxando pelos cabelos, conseguiu levá-lo de volta à superfície. Engoliu um pouco de água, mas parecia bem.
Olhou em volta por instante e partiu sem dizer palavra enquanto o pescador procurava o dourado em vão.
Invadindo a floresta pra criar gado
Um fazendeiro criava gado ao lado de uma área de Mata Atlântica. Quando ele percebeu que não havia espaço para o rebanho que chegava do Mato Grosso, expandiu um “pouquinho” a propriedade invadindo mais a floresta.
Mais gado chegava e mais ele desmatava – sempre com o argumento de aumentar um “pouquinho”. Um dia, percebeu que já não restava muito o que derrubar e, para não parecer um “inimigo da natureza”, achou que seria uma boa ideia deixar intacto um restinho de mata.
Logo animais de diferentes espécies que viviam na região, mas que dependiam daquela floresta para se alimentar, começaram a percorrer a fazenda em busca de alimento; e quase sempre à noite, quando já não havia movimentação de pessoas.
Encolerizado, o homem decidiu comprar algumas espingardas e munição para expulsar os invasores. Com a autorização do governo em mãos, o desejo de matá-los em defesa de sua propriedade se intensificou. Não importava o tamanho – se era filhote, adulto, pai, mãe – sobrava bala pra todo mundo.
Seis meses depois, já sem ouvir nenhum som estranho de madrugada, saiu para caminhar perto de um curral velho. Ouviu um som suave e concluiu que não era nada. Voltou para casa e na mesma semana começou a sentir febre, dores pelo corpo e náuseas.
Nenhum médico descobriu o que era. Chegou a perder 25 quilos; vomitava pelo menos uma vez por hora e não conseguia dormir. Numa madrugada, quando parecia não ter mais o que expelir, o que amplificava e muito a sua dor, começou a chorar calado e a rastejar para fora da casa.
Queria sentir o ar fresco do que restou da floresta, mas a vegetação já era tão escassa que parecia não fazer diferença. Insistente e ainda ansiando por um frescor que pudesse renovar o fôlego, se embrenhou pela sobra de mata se arrastando.
O céu estava escuro – não havia lua nem estrelas; nenhum som vindo da mata que não fosse o da respiração vacilante. Por um momento, viu a sombra de uma movimentação e sentiu algo doendo no peito – dois tiros, um suspiro alongado e uma partida. O filho também pensava que era “bicho selvagem”.
Da calçada
Da calçada, o menino observava a comida dentro do restaurante. Entre uma colherada e outra, uma criança chamou a atenção do pai.
O homem reclamou com o gerente “que era difícil se concentrar na comida enquanto alguém assistia com olhos fixos e arregalados”.
Quando o segurança se aproximou, o menino ficou com medo e correu pela rua. Foi atropelado por uma moto. Quebrou as duas pernas – viradas em direção oposta.
Deitado, chorava e sorria, sorria e chorava – dor e alegria. Ainda sentia cheiro de comida – do lado, uma marmita que voou da garupa da moto.
Apenas fome
Mantinha o bebê com a cabeça sobre o ombro. Sentada num piso de terra batida, mirava o buraco na parede por onde o sol já não entrava. Só esperava a vez, e queria que fosse rápido. Se mataria. Mas pra tirar a própria vida também é preciso força.
Três dias na mesma posição e já não sentia mãos, pés nem as inflamações nas costas. Criancinha, com o corpinho escanifrado desproporcional à cabecinha, continuava dura – com olhos esbranquiçados.
Depois de muito esforço, deitou no chão com o bebê. Um vento repentino arrastou poeira e os cobriu – mortalha fina. Sem porta, sem janela, qualquer coisa poderia chegar ou partir. Nem chorava – nem conseguia.
Falar, gritar, se irritar ou odiar também exigia energia. Só queria esperar, não muito. A fome não importava mais. Alguém de passagem sepultou os corpos no fundo do casebre de barro. Um andarilho viu quando partiu.
Desenterrou, separou os ossos, colocou pra secar e enterrou o que sobrou. Moeu e fez farinha. Virou ração pra boi que trocou por um quilo de feijão. Preparou um caldo à noite, serviu cinco crianças famintas e orou pela alma da moça e do bebê.
Cachorro também cansa de não existir
Revirava o lixo quando levou o primeiro golpe no dorso. Teria vomitado se tivesse comido bem, mas só conseguia expelir uma pequena porção de plástico mole com raspas de goiabada e água da chuva que bebeu minutos antes de quedar na calçada de tijolinhos.
Quase ninguém via, sabia, menos ainda contava as dezenas de cicatrizes pelo corpo seviciado. Cinco anos nas ruas não são cinco dias, e continuar em pé deveria ter feito dele um ícone de resistência à violência. Tinha perdido um olho há mais de ano quando tentava atravessar a língua por um portão para comer um pedaço de pão francês caído no chão.
Não teve tempo de ver a ponta da vara de pesca atravessando o olho como agulha. Correu gritando o que ninguém ouvia. Já não funcionava e apodrecia, até que um dia, o olho caiu. Dizem que ficou observando o olho morto com o que restava – passava a pata com estranheza. Suave no desconhecimento. Não entendia o que entendia.
Mais de 20 companheiros mortos em menos de um ano. Atropelamento, envenenamento, espancamento. Talvez mais. Turma morria e renascia. Alguém teve a ideia de chamar de “Bando dos Sem” – sem casa, sem comida, sem atenção, sem nome, sem vida. Às vezes, quando encontravam outros famintos, se desse briga, dependendo do dia, alguém morria, não por maldade – por fome.
Logo estava sozinho de novo – a cinomose levou os dois últimos companheiros. Ninguém sabe como sobreviveu. Dizem que já teve casa, foi vacinado e abandonado com alguns meses de idade porque a criança “que o ganhou enjoou”. Terreno baldio murado, mato alto – pareceu um bom lugar para o papai descartar um jovenzinho. “Alguém o adotaria”. Conclusão da abstenção de culpa. Ninguém quis.
Ainda revirava o lixo quando se levantou e recebeu o segundo, terceiro, quarto e quinto chute. Pela primeira vez, não correu nem reagiu. Deitou no chão e a violência seguiu. “Cachorro também cansa de não existir”, picharam de branco no chão, onde sem nome, e por pouco, jazia um cão.
Atropelou um gato e partiu
Um motorista, assim como muitos, atropelou um gato e o deixou estirado no asfalto. Não se importou em saber se estava vivo ou morto. Não parecia importante uma vida menor do que os pneus de sua caminhonete.
Talvez partisse da consideração de que vidas são relevantes apenas quando convenientes. As outras, pouco importa, principalmente de criaturas menores que não verbalizam o que sentem.
Mas o gato ainda se movia, deitado à força no chão quente de verão. “Logo morre”, concluiu. Alguém viu e recolheu o animal que, muito ferido, não resistiu. Pela manhã, quando o motorista acordou, ouviu um miado vindo do banheiro.
Gatos não viviam na casa. Procurou, procurou, e os miados não paravam, apenas mudavam de cômodo a cômodo – e nada de encontrar qualquer felino. Desistiu da busca e foi para o trabalho.
No caminho, os miados vinham debaixo do carro. Não entendia como era possível. Ignorou e ligou o som. Miados nos alto-falantes. Ficou irritado, esmurrou o volante e acelerou com violência, até que perdeu o controle da caminhonete.
Atravessou a pista contrária e capotou duas vezes antes de atravessar uma mangueira, invadindo um pasto sem boi. Nenhum veículo parou para socorrê-lo. Era como se fosse invisível ou não estivesse ali.
Preso entre as ferragens, observava pela janela motoristas seguindo suas vidas. Alguns pedestres passaram ao seu lado e seguiram adiante. Ele agonizava dentro da caminhonete, e os miados já inexistiam.
Prestes a desmaiar, ouviu um miado e monologou, quase sem forças: “De novo? Então esse é o fim?” Um gato se aproximou, e miava tão alto que foi como se o tempo tivesse parado. As atenções se voltavam para o felino – veículos e pessoas assistiam.
Assim que o gato lambeu o motorista ferido, os paramédicos e os bombeiros se aproximaram. O homem sobreviveu, e no hospital perguntou pelo gato. “Que gato?”, replicavam a cada repetição da questão. Retornou muitas vezes ao local do acidente, e nenhum sinal felino.
O menino, o pau e o gato
Menino corria com o pau na mão pra acertar o gato. Aprendeu com o pai que o abandonou que quando um felino “invadisse o quintal era preciso mostrar quem mandava”.
Percebendo que não o alcançaria, lançou o pau. Faltava força. Caiu sobre o pé. Como chorava. De cima do muro, o gato observava o menino chororô.
Já não corria, porque a ameaça inexistia. Lambeu as patas e olhou mais uma vez antes de saltar muro afora. No dia seguinte, lá estava ele perseguindo novamente o gato, de um lado para o outro, até que tropeçou na bola e caiu de bunda na grama.
De novo, o gato só assistia. Lambeu um pouco o pelo acinzentado e desapareceu. Foi assim durante mais alguns dias, até que o menino teve um pesadelo em que o gato corria para a rua e sofria atropelado.
Quando se aproximou, o felino o chamou: “Venha, Natan. Se aproxime de mim.” Surpreso, o menino se abaixou e encostou o rosto pertinho da boca do gato que respirava com dificuldade.
“Você vai morrer?” “Sim, vou morrer porque você me obrigava a correr pra rua.” Natan silenciou e começou a chorar sobre o gato. Quando tentou abraçá-lo, o felino desapareceu como poeira, um buraco se abriu e Natan caiu, até que acordou.
Ficou pensativo na cama. Não sabia por que perseguia tanto o gato que o visitava todos os dias. Os por quês ganhavam formas para onde Natan olhasse – teto, espelho, debaixo da cama, nos livrinhos e nos brinquedos. Não sabia responder.
Quando saiu lá fora e o gato chegou, Natan não correu nem o expulsou. Ficou assistindo o bichano se aproximar com o rabo cheio de carrapicho. Tirou um a um e o gato nem se moveu.
Apenas deitou na grama com a barriga pra cima, deixando o sol aquecer seus pelos. Natan também deitou, sorriu e deu-lhe o nome de Sol, porque, segundo ele, “é quentinho como as manhãs de sol”.
Em frente ao pet shop (Mãezinha)
Em frente ao pet shop uma cadelinha faminta assistia dois filhotinhos chorando dentro de uma gaiola. Seus olhos iam de um lado para o outro. Às vezes, ameaçava se aproximar, mas via um par de sapatos à curta distância e logo se afastava. Medo de chute. Insistia.
Observava os dois cãezinhos, até que um deles começou a morder a gaiola. Se aproximou, ignorando quem entrava e quem saía e lambeu as grades, tentando alcançá-los. Quando um deles se achegou para receber carinho foi expulsa a vassouradas.
No dia seguinte, retornou. Assistia no cantinho, do lado de fora do pet shop, os dois filhotinhos chorando. Entrou na loja mais uma vez, encostou a língua na gaiola e um deles fechou os olhos enquanto recebia lambidas interrompidas por vassouradas.
Foi assim por quase duas semanas, até que um dia retornou pela manhã e os filhotinhos não estavam lá. Nem a fome que a levou pela primeira vez ao pet shop parecia incomodá-la mais. Se encolheu num canto e, mesmo quando uma chuva forte atravessou os limites da marquise da loja, continuou no mesmo lugar.
Toda molhada e quase arrastada pela enxurrada, só mirava a gaiola vazia. Não chegou a ganhar um nome, mas podemos chamá-la de Mãezinha. Continuou retornando ao pet shop, e cada vez mais magra. Aproximação e expulsão – sequência de todo dia.
Mais cãezinhos chegavam, choravam e partiam; e ela, que queria cuidar de todos eles, manteve a rotina por pelo menos mais três meses – com sol ou chuva. Um dia, o dono de um bar, vizinho do pet shop, estranhou sua ausência.
Fechou mais cedo e saiu para procurá-la. Não foi muito longe até encontrar Mãezinha dormindo agarrada a um cachorrinho encardido – os dois sem vida – ela e um bichinho de pelúcia que levou do pet shop.
Capa para olhos
Um homem entrou em uma loja de guarda-chuvas e pediu capa para os olhos. A atendente disse que seu tamanho estava em falta, mas que ele poderia encontrar algo em uma loja de películas para celulares na esquina.
Um rapaz explicou que vendeu a última unidade e recomendou que ele subisse dois quarteirões até uma loja de armarinhos. Não gostou da espessura da agulha nem da linha. “Parece que funciona bem, mas não estou pronto.”
Desistiu da costura; quem sabe, algo menos invasivo e provisório. Alguém falou em cola; franziu a testa e coçou as maçãs. “E se eu quiser descolar? Só pra não enxergar o que agora não posso mudar. Amanhã? Que deixe chegar…”