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A máfia italiana chega a Paranavaí
Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala
Em junho de 1943, o ítalo-brasileiro Vittorino Alambare e os italianos Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino atravessaram São Paulo e dezenas de cidadezinhas e lugarejos para chegarem ao Noroeste do Paraná. No caminho, encontraram muitos veículos abandonados, se deteriorando. Mas nada chamou mais a atenção dos quatro do que um caixeiro-viajante com idade entre 25 e 30 anos, deitado aos pés de uma bracatinga, ladeado por um jipe com as rodas soterradas.
O rapaz estava morto. Teve os órgãos vitais dilacerados, possivelmente por uma onça. Mas os vestígios de sangue e couro em suas unhas indicavam que lutou com ardor antes de sucumbir. Dentro do veículo, encontraram documentos e uma foto do jovem com a esposa e dois filhos. Paolo se sensibilizou ao ouvir Alambare ler uma carta que o caixeiro jamais entregou à mulher. Na correspondência, Ildefonso Castanho justificou a partida.
“Não quero ser caixeiro-viajante até o dia de minha morte. O que poderia deixar de herança aos nossos filhos? Dívidas? Prometo buscá-los tão logo eu consiga melhorar de situação em um lugar chamado Fazenda Brasileira, onde um amigo me disse ser o direito às terras ofertado a todos que nutrem no coração o sonho de realização. Prometo que lhe enviarei dinheiro o quanto antes. Mande beijos e abraços às crianças e diga que nos encontraremos em breve”, escreveu Castanho, de acordo com o aposentado Genaro Alambare, filho de Vittorino.
Vergatti ficou preocupado com a situação da mulher que teria de criar três filhos sozinha. Em muitos anos, foi a primeira vez que os amigos o viram com olhos marejados por trás de um papel. Enterraram o corpo do caixeiro-viajante na mata, subiram a bordo do jipe Land Rover e seguiram viagem observando o Sol se pondo por trás da densa mata da região de Londrina.
“Onde fica essa Fazenda Brasileira? Seria longe demais? Será que muitas pessoas vivem lá? Parece ser um local pouco habitado. Talvez compense conhecer”, analisou Vittorino Alambare. Os demais também ficaram intrigados. Ainda assim nenhum deles tinha mais interesse no lugar do que Vergatti. O rapaz guardou a carta de Ildefonso Castanho no bolso da calça.
Em Maringá, para onde planejavam se mudar antes do incidente com o caixeiro-viajante, decidiram seguir adiante. No dia 25 de junho, perto de onde surgiria Nova Esperança, um denso nevoeiro matutino atrapalhou a visibilidade da estrada quando Alambare sentiu o impacto e o barulho de algo preso às rodas traseiras. Di Carlo e Comezzino desceram armados e circularam o jipe cautelosamente, revezando olhares em direção à floresta.
Apesar do susto, não havia nada embaixo do veículo. Nas imediações, ouviram apenas um acirrante som de água ecoando entre as copas das árvores. Caminharam alguns metros e encontraram um córrego e uma cristalina mina d’água intocada pelo homem. “Depois do banho, Paolo Vergatti saiu para procurar frutas quando foi surpreendido por uma onça-parda. Com o focinho sujo de sangue, o animal se aproximou dele, o observou, cheirou suas mãos e se afastou, correndo mata adentro. Paolo ficou calado e imóvel, sem entender o que aconteceu”, relata Genaro.
Horas depois de reiniciado o trajeto, encontraram um homem cego de meia-idade sobre um cavalo de pelagem escura. Percorrendo em sentido norte a margem de um carreador da futura Alto Paraná, o sujeito trajava apenas uma calça de estopa. Alambare reduziu a velocidade do jipe e perguntou se havia algum vilarejo por perto. Antes de responder, o homem se apresentou como Adolpho Aureliano. “Perdão se minha voz soa atrofiada, mas faz mais de 20 anos que vivo sozinho. Podem seguir adiante que vão encontrar o que procuram. Não estão longe. Ah! Mas se tiverem fome ou sede, venham à minha casa”, convidou.
Seguiram o galope e a pouco mais de um quilômetro viram um casebre com desenhos esfíngicos nas paredes, registrados com uma mistura de jenipapo e urucum. Dependendo da incidência do sol, as imagens pareciam ganhar vida. “Cada desenho retratava uma fase vivida por aquele homem. Em um deles, o viram arando a terra e recebendo ajuda de crianças. Os cômodos da residência eram divididos por galhos longos, finos e bifurcados”, diz Genaro Alambare.
Após o modesto banquete, Battaglia Di Carlo chamou a atenção dos amigos para uma foto com data de 21 de agosto de 1917 grafada com faca ou punhal na moldura de madeira. Jovial, Aureliano estava sentado em um sofá com a esposa e três filhos. O homem se aproximou e explicou que perdeu a família em 1921. “A maleita levou o que eu tinha de mais importante. A culpa foi minha por ter vindo pra cá em 1913. Não deu tempo de encontrar ajuda. Apesar de tudo, quero ficar aqui até o fim dos meus dias”, frisou.
Impotente e sentindo-se culpado pela morte da esposa e dos filhos que tinham entre cinco e nove anos, Aureliano descampou uma área erma a alguns metros de casa e lá ficou deitado, observando o Sol por horas até perder completamente a visão. “Eu sentia uma queimadura interna tão forte que até anestesiava a queimadura externa. Meu corpo pegava fogo, mas isso não era nada comparado ao meu coração que ardia em chamas”, confidenciou.
No canto da sala havia um piano francês Pleyel bem conservado e coberto por uma capa. Sobre ele, uma partitura de “A Sertaneja”, de Brasílio Itiberê. Sotero Comezzino, que estudou na Accademia Nazionale di Santa Cecilia, em Roma, pediu autorização para tocá-la. Aureliano, que circulava pelo ambiente como se a visão não lhe fizesse falta, acenou em aprovação e exibiu dentes tão brancos que pareciam esmaltados artesanalmente. Nos primeiros minutos, Alambare e Di Carlo ouviram um som estranho vindo do fundo da casa enquanto as mãos de Comezzino percorriam as teclas. Quando se aproximaram, Aureliano estava cuidando dos ferimentos de uma tranquila onça-parda rodeada de filhotes. Sem dizer palavra, se comunicaram com os olhos e voltaram para a sala.
“Aquele eremita transcendeu de alguma forma. Mesmo cego e solitário, não nutria desprezo pela vida, não praguejava. Meu pai dizia que Aureliano descobriu dentro de si algo que só poderia ser sentido ou compreendido por poucos seres humanos”, enfatiza Genaro. Depois da despedida, seguiram viagem. A floresta se tornou mais densa, tanto que em vários trechos tiveram de arrastar árvores tombadas e desviar de cipoais.
Assim que chegaram à Fazenda Brasileira, chamaram a atenção de curiosos na Avenida Paraná, a via mais movimentada da colônia. Crianças descalças cercavam o jipe e gritavam: “Oi, oi, oi, oi, oi!” e “Ô sinhô, de onde cês são?” Os italianos riam, se recordando da infância em Messina, na Sicília. Paolo Vergatti observou um vento repentino obrigando as mulheres a recolherem as roupas ainda úmidas do varal, evitando que a terra arenosa as sujasse. Alambare, que foi pedir informações em uma casa de Secos e Molhados, voltou dizendo que conheceu um fazendeiro chamado Marcolino Rufião. “Ele falou que tem uma terra boa a pouco mais de 20 quilômetros daqui. Quer vender pra voltar pra São Paulo. Se for viável, fechamos negócio”, sugeriu Vittorino.
No trajeto até a fazenda de Rufião, situada na região onde surgiu o Povoado de Cristo Rei, assistiram crianças saltando sobre pequenos tocos, jogando pião, gargalhando e correndo em círculos. “Aqui seremos homens comuns, passíveis de morrer no anonimato”, pontuou Paolo Vergatti. Quando chegaram à propriedade de pouco mais de 110 alqueires, gostaram do que viram. Só que alertaram Marcolino sobre as consequências de uma suposta trapaça.
“Confiamos na sua palavra e acredito que sua intenção de ir embora seja verdadeira. Só que se por ventura formos enganados ou alguém aparecer por aqui reclamando esta terra, vamos atrás do senhor para saldar a dívida”, prometeu Battaglia Di Carlo usando uma flanela do bolso para limpar cuidadosamente uma pistola Parabellum guardada em um estojo com forro de veludo vermelho. Marcolino pediu calma, sorriu e garantiu que eles não teriam problemas.
Na semana seguinte, Rufião não foi mais visto na Fazenda Brasileira. No entanto, após 15 dias, numa noite de sábado, Vittorino, Paolo, Battaglia e Sotero estavam conversando na sala quando ouviram dois disparos contra a porta principal da casa. Rastejando, buscaram armas debaixo de suas camas e se posicionaram estrategicamente enquanto uma saraivada de tiros penetrava a sala e atravessava a cozinha, causando buracos de diversos tamanhos. Os italianos ficaram em silêncio. Sem reagir, observaram quais eram os pontos menos atingidos pelos invasores.
Os quartos de Vergatti e Comezzino ocupavam as duas áreas menos vulneráveis da casa. Então se dividiram em duplas e aguardaram a aproximação dos atiradores. Em menos de uma hora, os sicilianos mataram os 12 invasores com tiros de curta e longa distância à base de pistola e carabina. Usaram como ponto de partida algumas fendas que permitiam ver quem se aproximava da entrada. A vantagem é que só podiam ser notadas por quem estava dentro da casa. Os dois últimos tiros foram disparados por Sotero que atingiu a cabeça de um invasor que tentou fugir.
Entre os mortos havia homens de 20 a 40 anos. A maioria se vestia com simplicidade. A exceção era um sujeito que trazia joias e ouro nas mãos, na boca e nos pés. O homem era Marcolino Rufião que num momento de desespero correu para tentar salvar a própria vida. “A inexperiência deles era tão grande que parecia que estávamos abatendo animais indefesos”, comentou Comezzino com os amigos.
Os corpos foram colocados dentro do caminhão de Rufião e enterrados numa área de mata nativa a cerca de dez quilômetros da fazenda, com exceção do cadáver de Marcolino, depositado em um buraco mais distante. O posicionaram com o peito para o chão. Suas pernas e braços foram cruzados e amarrados com retalhos das roupas ensanguentadas dos homens que morreram sob seu comando. Antes de taparem o forame com terra, seguraram a cabeça de Rufião e introduziram em sua boca dezenas de bagas de beladona.
“As pernas e os braços cruzados simbolizavam o desencontro, a perdição. Um desejo de que aquele homem nunca mais encontrasse o seu caminho, nem em outra vida. E os frutos tóxicos colocados em sua boca indicavam que foi condenado a passar a eternidade ébrio. Queriam que ele fosse reconhecido no outro mundo como um perene repositório de erva daninha”, relata Genaro, acrescentando que a boca do fazendeiro foi lacrada com a manga longa de uma camisa encharcada com o sangue do homem mais jovem do bando. Dias depois, o caminhão de Marcolino foi abandonado no Ranchão de Zinco, um cemitério de veículos perto do Porto São José.
Mesmo com o desaparecimento de Rufião, ninguém apareceu na Fazenda Niente, dos italianos. E conhecendo a má fama do homem, a polícia ficou satisfeita com o sumiço. Mais tarde, os quatro amigos foram até a Brasileira fazer compras num armazém na Avenida Paraná. Lá, ouviram uma história sobre uma família de italianos que estava se mudando para a Brasileira, trazendo um baú de barras de ouro. “A última vez que vi Marcolino, ele me disse que tinha uma proposta a fazer a esses italianos”, falou um senhor de olhos miúdos segurando um copo de cachaça durante conversa com um compadre.
A ideia de que Rufião confundiu os sicilianos com outra família de italianos que nunca chegou ao povoado intrigou Comezzino e Bataglia. Sotero gargalhou tanto na saída do armazém que chegou a esticar uma grande cicatriz que possuía embaixo do queixo. Paolo Vergatti se mantinha disperso, alheio às brincadeiras dos amigos. Em julho de 1943, pediu a ajuda de Alambare e pagou a um advogado de origem polonesa para datilografar uma carta com destino a Palmas, no extremo Sul do Paraná. A correspondência foi despachada pelos Correios de Londrina através do motorista da catita que fazia a linha Londrina – Fazenda Brasileira.
Junto da carta, Vergatti, se passando por Ildefonso Castanho, enviou um pouco de dinheiro. Dois meses depois, recebeu uma correspondência de Júlia Ramalho contando como os filhos estavam crescendo. Paolo se extasiava com o carinho e compreensão embutidos à escrita da moça. Era como se a chegada daquele pedaço de papel fosse a razão de sua existência, mesmo ciente de que as cartas eram destinadas ao falecido, não a ele.
Na segunda carta de Júlia, duas das crianças escreveram seus nomes no rodapé. Com o tempo a mulher ficou muito surpresa. Ela recebia por mês até três vezes mais do que o necessário para as despesas familiares. Era um sonho a possibilidade do marido ter se tornado alguém tão bem-sucedido em pouco tempo. Por correspondência, Vergatti se apaixonou por Júlia e adotou a personalidade de um pai de família. A natureza gentil e fraternal da moça o encantava. Júlia estranhou apenas quando o suposto marido pediu-lhe que banhasse a carta em seu perfume antes de enviá-la a ele. Ildefonso talvez fosse amável, mas não parecia dominado pelos rompantes passionais de Vergatti.
Sempre que o questionava sobre o dia em que poderia partir com os filhos para encontrá-lo, ele inventava alguma desculpa. Júlia suspeitou que o marido tivesse outra mulher na Fazenda Brasileira. A verdade é que Paolo temia a reação de Júlia. “À mesa, imagino ela me pedindo para levá-la à vila. No campo, vislumbro Roberto e Paula [filhos de Júlia] me convidando para brincar de esconde-esconde. Ah, Romeu! [o terceiro filho ainda bebê] O embalo no colo e o levo para conhecer os cafezais, onde seus intensos olhos negros, como pequeninos diamantes abissais, idealizam no solo arenoso o arquétipo de um parque. Sinto-me neste momento como um verme; incapacitado, inútil, infrutuoso! Se ei de pertencer a morte, que me leve para os umbrais rapidamente! Irrita-me a espera, mesmo quando o destino é deixar de ser humano para tornar-me húmus para esta terra”, segredou Genaro, citando trechos do rascunho de uma carta.
Em agosto de 1945, completou dois anos que os italianos se dedicavam à produção de café, milho e algodão. Sem contar com ajuda externa, trabalhavam apenas para ocupar o tempo e evitavam interagir com curiosos. Iam até a área urbana da Brasileira apenas quando necessário, passando despercebidos pela maioria. Em fevereiro de 1946, Júlia se irritou porque não recebia cartas do marido há mais de um mês. Então viajou para a Brasileira com o irmão Agnaldo Ramalho e os três filhos.
Graças à ajuda de um rapaz chamado Pedro, que era balconista em uma casa de secos e molhados, ficou sabendo que ninguém conhecia Ildefonso. Mas o jovem percebeu que a descrição do lugar de acordo com a correspondência era a mesma da propriedade de quatro italianos que faziam compras ocasionais no armazém. Então Julia decidiu se arriscar. Achou a fazenda, se aproximou da entrada da casa e antes que chamasse alguém foi recebida por Gernaro Alambare que trazia uma faixa preta no braço. De aspecto taciturno, não se importou em ser visto pálido, com os olhos inchados e vermelhos de tanto chorar.
Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo e Sotero Comezzino estavam mortos desde janeiro de 1946, vítimas de uma epidemia de leishmaniose tegumentar americana (LTA) que assolou a região. “Meu pai pediu que o irmão de Júlia levasse os sobrinhos para passear pelo pomar e contou a verdade a ela. Disse que Ildefonso Castanho morreu em 1943 e por compaixão Paolo Vergatti se passou por ele. Se apaixonou por Júlia, só que não teve tempo de ganhar coragem para relatar toda a história, preferindo se corresponder por dois anos e meio, enviando até três cartas por semana”, menciona Genaro.
Vittorino a levou para ver os túmulos dos três amigos, enterrados lado a lado, numa área coberta por acácias, a sudoeste da casa principal. Não havia nada escrito nas modestas e pequenas lápides brancas que traziam o mesmo desenho de três punhos unidos. Confusa sobre tudo que ouviu, e com as pernas trêmulas, Júlia agarrou o próprio vestido com as unhas e começou a chorar e soluçar diante do túmulo de Vergatti.
Sozinho, Alambare, que nunca entendeu porque a doença não o matou, retornou para Santos. Antes entregou a Júlia todo o dinheiro de Paolo Vergatti, guardado em uma mala escondida numa tulha. Acompanhada da família, a moça se mudou para a propriedade com o consentimento de Vittorino. Em pouco tempo, aprendeu a amar o homem que nunca conheceu. Todos os dias pela manhã, Júlia carregava um banquinho de cedro até o túmulo de Paolo Vergatti. Sentava ao seu lado e lia as dezenas de cartas enviadas por ele. Foi assim até outubro de 1967, quando Júlia faleceu em decorrência de um acidente vascular cerebral (AVC).
Vittorino recebeu a notícia em dezembro do mesmo ano, junto com a informação de que os filhos dela venderam a fazenda. Em janeiro de 1968, o novo proprietário demoliu a casa, as lápides e as acácias, relegando ao esquecimento a passagem dos amigos italianos por Paranavaí.
Sicilianos articularam o assassinato de um líder da Ndrangheta
Membros de um clã da Cosa Nostra de Messina, na Sicília, Paolo Vergatti, Battaglia Di Carlo, Sotero Comezzino e Vittorino Alambare ocupavam posições de destaque na organização. De acordo com Genaro Alambare, Vergatti e Di Carlo eram caporegimes (capitães) especialistas em minimizarem conflitos entre as famílias, evitando guerras desnecessárias.
Comezzino, conhecido como o “carrasco de sottocapo”, era um dos soldados mais temidos da Sicília nos anos 1930, considerado o responsável pela morte de cinco subchefes da Camorra e da NDrangueta. Alambare era um associado da Cosa Nostra e contrabandista com passagem livre pelo Porto de Santos.
O irmão mais velho de Battaglia, Domenico Di Carlo, foi um guerrilheiro da Resistência Italiana que ajudou a capturar e assassinar o ditador italiano Benito Mussolini. Os três fugiram da Itália após articularem o assassinato de um dos principais líderes da Ndrangheta, a máfia calabresa. O clã de Paolo, Battaglia e Sotero era contra a exploração de crianças que se expandia pelo país.
Curiosidade
Mesmo depois de Paranavaí ser desmembrada de Mandaguari em 1951, muitos ainda se referiam ao município como Fazenda Brasileira por causa do nome que surgiu na década de 1930.
Um filme sobre o fim da liberdade romani
A história de uma família roma que foi perseguida durante a Segunda Guerra Mundial
Lançado em 2009, Korkoro, palavra romani que significa sozinho, é um filme do cineasta franco-argelino Tony Gatlif que retrata a realidade de uma família roma que perdeu a liberdade enquanto viajava pelo interior da França em 1943, quando o país estava sob o domínio Vichy.
Logo no início, a música, a paisagem bucólica e o lirismo introduzem o espectador a uma cena em que as notas de um piano são representadas pela movimentação de arames farpados em paralelo. A princípio, a única perspectiva real que se tem é de um primeiro plano enuviado pelas incertezas de não sabermos o que há antes e depois daquela divisa. É um prólogo referencial do estilo de vida nômade.
Tony Gatlif apresenta uma família romani composta por pessoas de personalidades bem distintas, mas que carregam na essência algumas afinidades que envolvem companheirismo, abnegação, hospitalidade, amor à música, fé e desapego material. Não é uma obra que se limita a combater estereótipos ou simplesmente construir uma imagem bonita sobre a cultura cigana. É bem mais do que isso. Em alguns casos, Gatlif ironiza os clichês justamente para reforçar uma ideia ou parodiar um pensamento comum obtuso.
Em uma das viagens, o cigano Taloche (James Thiérrée) percebe que estão sendo seguidos por um garoto – Claude (Mathias Laliberté). Sem família, o menino se junta a eles. Durante o percurso, colocam saquinhos de estopa nas patas dos cavalos para não deixarem rastros. Quando chegam a um vilarejo, onde montam acampamento, são informados de que o nomadismo está proibido em todo o território francês, sob pena de prisão.
Então uma professora, Mademoiselle Lundi (Marie-Josée Croze) – partisan, integrante da resistência francesa, sugere que eles parem de viajar até o fim da guerra. Por ora, continuam no local, embora não tenham planos de fixar residência. Na escolinha, um dos estudantes comenta com Claude, a quem Taloche chama ironicamente de Chororo (garoto pobre), que os romani roubam crianças. Admirador dos ciganos, o ignora.
O filme é pautado por muita música do início ao fim, corroborando a ideia de que não há vida sem música no mundo roma. Bem comunicativos, os ciganos vão até o centro comercial do vilarejo vender produtos e oferecer serviços. Na tentativa de ganhar algum dinheiro consertando panelas, Taloche diz em tom bem humorado: “Todos têm utensílios com buracos em casa, o que acontece é que às vezes os buracos estão escondidos.”
Em uma cena, o médico veterinário e prefeito do vilarejo, Théodore Rosier (Marc Lavoine), socorre um dos cavalos do acampamento na ausência dos ciganos. Por azar, Rosier é mordido pelo animal e cai com o braço ensanguentado. Pouco tempo depois, chegam para socorrê-lo. Enquanto uns cuidam de seu ferimento, outros prestam atendimento ao equino. Movidos pela fé, tradição e superstição, tratam do braço do veterinário com uma pasta de estrume. Ao mesmo tempo, oram pelo cavalo caído que em um rompante se levanta como se jamais tivesse adoecido.
Mais tarde, Rosier, o prefeito que deu abrigo a petit Claude, evitando que os ciganos tivessem problemas por terem entre os seus um jovem de origem desconhecida, pede ao garoto para perguntar qual foi o remédio usado em seu tratamento. “Foi estrume de cavalo. Mas diga a ele que até uma vassoura pode lançar fogo se for o desejo de Deus”, enfatiza um dos roma.
É profunda a relação dos ciganos com outras formas de vida não humanas. Em outra situação, a família toca uma canção festiva para elevar o ânimo de dezenas de galinhas. No filme, a música ajuda a superar muitos problemas – um recurso que manifesta uma liberdade frugal.
Em contraste ao paisagismo rústico, Gatlif parte de uma condição coletiva para a individual quando aborda o lirismo de Taloche, personagem cuja inocência, aparente dislexia e hiperatividade, parece experimentar um incessante conflito existencial. Há uma exaltação da hipersensibilidade do cigano que destoa da idade e, por vezes, remete ao humor pastelão dos tempos do cinema mudo.
Mas não há nada mais bem representado em Korkoro do que a necessidade de liberdade, até nas cenas mais simples. Outro momento inesquecível surge quando Taloche vai até a casa de Rosier. No banheiro, ele se inebria com a água que sai da torneira. Enche a pia e a faz deslizar por todo o cômodo, como se a conduzisse à emancipação. Quando a água desce em abundância, Taloche se lança escada abaixo, sem o menor temor de se ferir.
O filme assume um caráter documental em algumas cenas-chave. Traídos pelo amigo Pierre Pentecôte (Carlo Brandt), um simpatizante dos nazistas, a família é levada para um campo de concentração, onde há centenas de romani. Lá, Darko (Arben Bajraktaraj) pergunta a Pentecôte por que estavam trancando eles como cachorros. O traidor então responde: “Para livrar a França de seus vermes.”
Ao saberem o que houve, Rosier e Mademoiselle Lundi decidem intervir. O prefeito transfere a escritura de uma propriedade familiar para o patriarca roma. Em seguida, os dois vão até o campo de concentração e apresentam o documento, obrigando que a família seja libertada. Quando retornam ao vilarejo, os ciganos se surpreendem com a nova morada. Alguns concordam em viver provisoriamente no local, já outros preferem partir. No fim, prevalece a decisão do patriarca que considera mais prudente continuar no povoado.
Taloche é o último a entrar na casa. Para ele, a ideia de viver entre paredes é uma forma de privação, embora não manifeste isso com palavras. Dias depois, Rosier os visita e encontra a propriedade abandonada. Novamente na estrada, rumam para a Bélgica, acompanhados mais uma vez por Claude. Não chegam tão longe. São surpreendidos pelos homens do Governo Vichy, a serviço dos nazistas.
Enquanto são obrigados a formarem uma fila e apresentarem registros de identificação, Taloche se esconde. O arrastam, mas ele estapeia o líder da operação – uma versão de Adolf Hitler, em uma cena caricata digna de Charlie Chaplin. Foge em direção à floresta e sobe em uma árvore enorme. É alvejado a tiros, até que numa queda poética e acrobática cai sobre um córrego. Deitado, mas ainda vivo, é vítima de um tiro certeiro na testa.
A morte de Taloche simboliza o fim da liberdade romani e a iminência do Porajmos, o genocídio cigano perpetrado na Segunda Guerra Mundial. O desespero da família é geral, mas, apesar dos prantos, nada pode ser feito diante de tantos homens armados. O corpo é abandonado, assim como os animais e os pertences. Dali, não levam nada. Um longo tempo passa em questão de segundos. Aquela família não retorna mais. Em uma cena estática, tudo se esvai: o som, o fogo, a fumaça, a luz e a vida.
É muito interessante o cuidado que Tony Gatlif teve aos detalhes das expressões e particularidades de alguns personagens, embora talvez fosse mais impactante tornar outros romani da obra igualmente menos anônimos. De qualquer modo, fica clara a intenção de não deixar o individual, por mais peculiar que seja, se sobressair ao coletivo. O cineasta não tem intenção de se aprofundar na guerra. O foco é outro. É um filme sobre pessoas tentando exercer o direito de existir, não apenas habitar o mundo. Há uma bela construção do espaço em profundidade.
Korkoro se divide em dois ritmos. Onde existe alegria, há movimento e velocidade. Onde há tristeza, prevalece a lentidão de retratos quase estáticos das agruras de um tempo nefasto. Outro diferencial é a trilha sonora sempre pontual, um belíssimo trabalho capitaneado por Gatlif e a compositora Delphine Mantoulet.
Tony Gatlif é um dos poucos cineastas que se dedica a produzir obras que evidenciam ou flertam com a cultura romani. Como autor de filmes de longa-metragem, o primeiro grande destaque surgiu com Latcho Drom, de 1993; seguido por Mondo (1995), Gadjo Dillo (1997), Je Suis Né D’une Cigogne (1998), Vengo (2000), Swing (2001), Exils (2004), Transylvania (2006), Korkoro (2009) e Indignados (2012). Vale a pena se aprofundar um pouco mais na filmografia desse autor de origem roma.
Saiba Mais
Não há dados precisos, mas acredita-se que de 250 a 500 mil ciganos foram assassinados pelos nazistas até o fim da Segunda Guerra Mundial.
Curiosidades
Korkoro é baseado em uma história real. A professora Lundi é inspirada na combatente da resistência Yvette Lundi.
James Thiérrée que interpreta Taloche é filho de Victoria Chaplin e neto de Charlie Chaplin.
Quando Paranavaí superou Maringá
Paranavaí quase se tornou a “terceira capital do Paraná”
A partir de 1946, a colonização na região de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, ganhou tanta força que anos depois superou as regiões de Maringá e Umuarama. À época, o que contribuiu para o desenvolvimento local foi o trabalho das colonizadoras de capital privado.
Hoje em dia, o que a população mais jovem de Paranavaí não sabe é que a cidade já foi um dos destaques do Paraná, se tratando de povoamento e desenvolvimento. De acordo com dados do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), a região de Paranavaí somou 90 milhões de pés de café antes do final da década de 1950, uma marca que deu visibilidade nacional ao Noroeste Paranaense.
Tudo começou nos anos 1930, quando a Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) teve a concessão das terras de Paranavaí revogada pelo Governo Getúlio Vargas. Naquele tempo, muitos investidores se interessaram pela região considerada ideal para a cafeicultura em função das grandes áreas de solo virgem. Um dos colonizadores que apostou no progresso do Noroeste do Paraná foi o engenheiro Francisco Beltrão, da Sociedade Técnica Engenheiro Beltrão, que começou a comercializar lotes da Colônia Paranavaí em 1946.
O interesse de Beltrão pela região surgiu bem antes, no final da década de 1930, porém, só recebeu o aval do Ministério da Justiça em 14 de dezembro de 1943. Depois ainda teve de aguardar a expedição do título de propriedade liberado pelo Ministério da Agricultura em junho de 1946, segundo informações do livro “História de Paranavaí”, do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva.
Todos os documentos diziam respeito a compra de 17 mil hectares de terras que até então pertenciam ao Governo Federal em área próxima as propriedades da Companhia Norte do Paraná. Boa parte das posses do engenheiro na região de Paranavaí se situava em áreas que mais tarde se tornariam o município de Tamboara, Seara, Suruquá e Anhumaí.
Na década de 1950, foi a vez de pioneiros como Carlos Antônio Franchello e Enio Pipino, da Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná (Sinop), apostarem no progresso da região de Paranavaí. Franchello investiu na Gleba 27-A, da Colônia Paranavaí, que se tornaria Querência do Norte, e Pipino no povoado que deu origem a Terra Rica. Na região, as colonizadoras se comprometiam a elevar a economia, proporcionar mais qualidade de vida e de sociabilidade, além das promessas de construção de escolas, unidades de saúde, igrejas e melhores vias de acesso e tráfego.
As campanhas publicitárias veiculadas por todo o Brasil, mas principalmente em cidades do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, surtiram tanto efeito que em Paranavaí foram vendidos milhares de imóveis entre lotes urbanos, chácaras e sítios. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), isso justificou os 307 mil habitantes da região de Paranavaí em 1960. “A terra era barata e os lotes rurais eram grandes, então todo mundo que vinha pra Paranavaí ou trazia dinheiro para comprar um imóvel ou logo arrumava um serviço pra adquirir uma propriedade o mais rápido possível”, comentou o pioneiro catarinense José Matias Alencar, complementando que parecia a “Corrida do ouro na Califórnia”, tão grande era o fluxo de pessoas na cidade.
Muitos moradores diziam que Paranavaí tinha tudo para ser a “terceira capital do Paraná”, logo atrás de Curitiba e Londrina. Os habitantes se baseavam no fato de que a região de Maringá somava 237 mil habitantes e a de Umuarama cerca de 253 mil, conforme registros do IBGE. Em 1960, com exceção de Curitiba, se tratando de desenvolvimento, Paranavaí só perdeu para a região de Londrina que chegou aos 600 mil moradores.
Curiosidade
Até o início da década de 1950, Paranavaí somava 45 mil hectares, subdivididos em Gleba-1, Gleba-2 e Gleba-3.
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Pioneiro forneceu eletricidade a Paranavaí
Thomaz Estrada iluminou as ruas da colônia e forneceu energia elétrica para muitos profissionais
Nos anos 1940, o imigrante espanhol Thomaz Estrada forneceu energia elétrica para a população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná. À época, as ruas da cidade foram iluminadas graças ao gerador do pioneiro.
No tempo em que Paranavaí ainda não contava com o fornecimento de energia elétrica, o espanhol Thomaz Estrada decidiu intervir. O pioneiro tinha um posto de combustível entre a Rua Getúlio Vargas e a Avenida Paraná, sentido ao antigo Terminal Rodoviário. Lá, Estrada mantinha um gerador de energia que poderia ter se limitado a abastecer o empreendimento. Mas o espanhol foi além, estendeu ao máximo a área de fornecimento, beneficiando muitos profissionais que dependiam de energia elétrica para trabalhar.
Em parceria com outros moradores, Estrada também criou alguns esquemas para a iluminação de ruas e avenidas. “O motor ficava dentro do posto e iluminava até o Banco Noroeste”, lembrou o espanhol em entrevista à Prefeitura de Paranavaí há algumas décadas. Para os pioneiros, Estrada fez muito mais que uma benfeitoria, dissipou a escuridão que impedia a colônia de existir no fim do dia. “Com o brilho daquela luz, Paranavaí ganhou nova dimensão, coisa que não se traduz, alegria arredia que destoa coração”, poetizou o pioneiro cearense João Mariano.
O abastecimento de energia deu novo sentido à vida em comunidade. Os moradores se beneficiavam da iluminação noturna realizando atividades que até então dependiam da luz solar. “As crianças aproveitavam a claridade pra brincar um pouco mais na rua”, relatou Mariano. Para o pioneiro mineiro José Alves de Oliveira, conhecido como Zé do Bar, a iniciativa do espanhol, que vivia numa residência ao lado de onde é hoje o Cartório Tomazoni, fez a diferença na colônia.
“Era tudo sertão e havia bicho pra todo lado”
O pioneiro Thomaz Estrada, que nasceu em 2 de julho de 1901, na Espanha, chegou à Fazenda Velha Brasileira, atual Paranavaí, em 1942, por sugestão de Francisco de Almeida Faria, inspetor de terras que conheceu em Londrina. “Me mudei pra cá em 1943. Aqui era tudo sertão e havia bicho pra todo lado. Veados andavam pelas ruas”, ressaltou Estrada.
O pioneiro admitiu que a fama da Fazenda Velha não era das melhores. “Um dia, ali em frente de onde eu morava, mataram dois”, confidenciou. A única estrada que existia naquele tempo era a que ligava a colônia ao Porto São José, o mesmo picadão para onde o capitão Telmo Ribeiro partia em direção ao Mato Grosso em busca de peões. “O Capitão Telmo tinha uma invernada onde é hoje o Jardim São Jorge”, disse o espanhol. De acordo com Estrada, no início, havia muita gente que não “prestava”. “Tinha muitos enguiços, mas decidi ficar. Coloquei um armazém pra sustentar a família”, pontuou e acrescentou que comprou uma fazenda na Brasileira e a vendeu em seguida.
O documento era a foice e o machado
Segundo o pioneiro espanhol Thomaz Estrada, o documento no período da Fazenda Velha Brasileira era a foice e o machado, ferramentas emblemáticas da colônia entre as décadas de 1930 e 1950. A verdade é que representavam mais do que instrumentos, um paradoxo semeado sob metáforas de luta, força, perseverança, injustiça, fragilidade humana e todas as agruras da colonização.
A Família Estrada viu exemplos disso tudo em Paranavaí. Enquanto o desenvolvimento trouxe mais qualidade de vida, em contrapartida, se intensificou a animosidade, até mesmo por banalidades. “Um dia na nossa loja, o Zé Capataz e o Zé Tabuinha começaram a beber. Eles puseram a faca e o revólver em cima da balança. Pedi pelo amor de Deus para que não brigassem. Daí pegaram eles e levaram pra fora. Outra vez foi o Joaquim das Éguas que tirou os briguentos daqui”, enfatizou Ana Maria Estrada.
Por muitas vezes, a pioneira passou medo no tempo da colonização. Quando o marido viajava, Ana Maria e o filho tinham de atender todos os fregueses. À época, muitas vacas dormiam em frente à casa comercial dos Estrada. “Também tinha muito mato em volta. Só foi mudando depois de 1950″, garantiu a pioneira.
Demarcação da Brasileira foi feita a pé
Primeiras vias de Paranavaí foram demarcadas em 1942
Quem vê hoje as ruas, avenidas e estradas de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, nem imagina que toda a área foi demarcada a pé, sem auxílio de qualquer meio de transporte. Tudo começou no início dos anos 1940, quando a colônia ainda era conhecida como Fazenda Brasileira.
Em 1942, Ulisses Faria Bandeira, funcionário da Inspetoria de Terras do Governo do Paraná, dirigida por Francisco de Almeida Faria, foi transferido de Londrina à Fazenda Brasileira para demarcar a primeira via da colônia, a Avenida Paraná. O trabalho de Bandeira teve relação direta com a chegada de migrantes.
Aparentemente, a demarcação simbolizava o interesse do Governo do Paraná em investir no desenvolvimento do povoado, o que atrairia a atenção dos migrantes que por aqui passavam. A estratégia deu certo e em setembro de 1943 muitas pessoas chegaram ao povoado.
Naquele tempo, atrair quem buscava melhores condições de vida era uma tarefa complicada, pois o acesso a Paranavaí era tão precário que nenhum caminhoneiro de Londrina [cidade por onde passavam os muitos migrantes que vieram para cá] aceitava realizar um frete até a Brasileira por menos de 1,5 mil cruzeiros, preço muito elevado se comparado a outros destinos.
Ainda assim, muitos insistiam na viagem, pagavam o que fosse para chegar ao povoado do qual se ouvia falar muito bem em Londrina. Mas como a propaganda sempre supera a realidade, a verdade é que a Brasileira era bem desorganizada, se resumia a um amontoado de pessoas de diferentes etnias dispersas por todos os lados. “Quando cheguei aqui só a Gleba 1-A tinha sido demarcada, um trabalho do engenheiro Alberto Gineste”, lembrou o pioneiro Ulisses Faria Bandeira.
Em 1942, já não havia mais casas disponíveis. As que restaram da época do Distrito de Montoya [nome de Paranavaí até 1930] foram desmanchadas e realocadas em outras áreas. Por muitas vezes, os colonos pensaram em ir para o mato derrubar árvores para aproveitar a madeira. Porém, ninguém na colônia tinha equipamento e veículo necessário para o serviço. “A madeira ainda era trazida de Marialva [no Norte Central Paranaense], então sugeri a construção de uma serraria”, relatou Bandeira.
“Só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros”
Aos poucos, a Fazenda Brasileira ganhou contornos de cidade, graças ao empenho do inspetor Ulisses Faria e do administrador da colônia, Hugo Doubek, que fizeram o trabalho de demarcação territorial a pé, tendo como referência a localização de todos os moradores do povoado. “Recebi a ordem para achar toda aquela gente, obedecendo certa metragem que margeava córregos e rios. Foi tudo feito sem condução, e só achei os primeiros colonos a vinte quilômetros da Inspetoria de Terras”, destacou Doubek.
Em 1944, a Gleba 1-A, ocupada principalmente por paulistas, mineiros, cearenses e pernambucanos, já somava 30 quilômetros de estrada que a ligavam a Paranavaí. Em uma antiga entrevista ao jornalista Saul Bogoni, Bandeira revelou que havia inúmeras colônias em Paranavaí porque muitos pioneiros chegaram antes de 1940, o que foi percebido somente durante o trabalho de campo.
A Gleba 2 foi a única área da Brasileira não demarcada por Doubek e Bandeira. Quem se encarregou do trabalho em janeiro de 1944 foram os engenheiros Artur Oliva e Lota Chimoca que percorreram área superior a 15 mil alqueires, onde ainda havia muita vegetação primitiva. “A Gleba 2 tinha como ponto de partida a estrada que vai para o Porto São José”, salientou Ulisses Faria que naquele ano tomou a iniciativa de investir no abastecimento de água. Bandeira conseguiu uma bomba com motor a gás para fazer a captação. A ideia beneficiou mais de cem famílias.
Curiosidade
Um registro de propriedade da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco) prova que Paranavaí já era habitada em 1910, à época a região era chamada de “Pirapó”.
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O primeiro administrador de Paranavaí
Hugo Doubek, o marceneiro que cuidou dos enfermos e tentou promover a paz na colônia
O curitibano Hugo Doubek foi o primeiro administrador de Paranavaí e mesmo tendo deixado o distrito em 1948 fez muito pela população local ao longo de cinco anos.
A viagem
Em 1943, o marceneiro Hugo Doubek estava participando de uma exposição de artes em Curitiba quando conheceu o diretor do Departamento de Geografia, Terras e Colonização (DGTC) do Governo do Paraná, Antonio Batista Ribas. O diretor convidou Doubek para ser o administrador geral da Fazenda Velha Brasileira, então o marceneiro aceitou. Hugo Doubek já conhecia a Brasileira, onde trabalhou desmanchando casas em algumas áreas para reconstruí-las em outros pontos.
Acompanhado da mulher e de cinco filhos, o marceneiro viajou de trem até Marques dos Reis, distrito de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense. “Lá, pegamos um trem até Londrina, onde ficamos hospedados na casa do inspetor de terras”, relatou Hugo Doubek em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás. Por causa de uma grave sinusite, o marceneiro teve de passar por uma cirurgia de emergência.
Dias depois, já recuperado, seguiram viagem de caminhão até Maringá, distrito de Mandaguari, onde pararam em um barracão para descanso de viajantes. Levaram mais de três horas para achar a saída do distrito, quase um labirinto por causa da mata primitiva que cercava o povoado. “A próxima parada foi em Cala Boca [atual Mandaguaçu], onde a estrada parecia um campo de batalha cheio de trincheiras”, avaliou o pioneiro, acrescentando que em alguns trechos, as rodas desapareciam, cobertas pelo solo arenoso.
Muitas vezes, Doubek teve de descer do caminhão e procurar galhos para desenterrar as rodas. E para piorar a situação, não havia nenhuma moradia na estrada. “Nem riacho para mitigar nossa sede”, comentou. Chegaram à Brasileira em dia chuvoso e se instalaram em um barracão que se tornaria sede administrativa da colônia. “Onde hoje está Paranavaí, quando cheguei aqui era só um capoeirão, uma densa mata cheia de rastros de onça”, destacou Hugo Doubek.
Os conflitos
Quando se mudou para Paranavaí, o pioneiro tomou algumas precauções. Trouxe uma espingarda de calibre 16 e dois revólveres: um winchester e um H.O., de calibre 38, para garantir a própria segurança e a dos familiares. Na colônia, o administrador teve de resolver conflitos de grilagem de terras.
Sobre o assunto, há algumas décadas, o pioneiro admitiu que no início cometeu injustiças por acreditar que o reclamante sempre tinha razão. A situação só melhorou quando Doubek ponderou que seria melhor ouvir todos os envolvidos antes de tomar uma decisão. Em casos mais graves, o administrador contava com o apoio do sargento Marcelino, o chefe de polícia do povoado. “Naquele tempo, isso aqui parecia um acampamento de ciganos. Era feliz quem tinha uma lona e podia armar uma barraca”, enfatizou o administrador.
Na época em que a colônia era dividida em glebas e cada uma somava 15 mil alqueires, Hugo Doubek foi designado a percorrer o povoado a pé até as margens dos rios para localizar todos os moradores. ”Lembro que a 2ª Gleba começava a 10 quilômetros da área urbana e tive que percorrer 20 quilômetros para achar os primeiros colonos”, revelou.
Os enfermos
Ao assumir a administração da colônia, Doubek teve de lidar com a falta de assistência médica. O marceneiro costumava cuidar dos enfermos com chás de ervas, álcool, água oxigenada, pomada Riclei e ataduras que trouxe de Curitiba.
Certa vez, o administrador atendeu um rapaz com um ferimento de oito centímetros causado por um galho. A ferida estava cheia de pus e tinha odor de carne em decomposição. “Havia sido infeccionada por mosca varejeira”, explicou o marceneiro que submeteu o rapaz a um tratamento a base de creolina. Em um mês, o ferimento cicatrizou.
Outro caso nunca esquecido por Hugo Doubek foi de um jovem que carregava um machado sobre o ombro quando estava atravessando um tronco sobre um riacho (pinguela). “O rapaz caiu e se feriu. Como sangrava muito, seus companheiros queimaram um chapéu de feltro e colocaram o chumaço sobre o ferimento, parando o sangue”, disse o pioneiro.
Doubek fez curativos no ferimento do rapaz todos os dias até ele se curar. Segundo o marceneiro, para não desanimar ninguém era preciso fazer semblante doce mordendo maçã azeda. Muitas pessoas foram tratadas pelo pioneiro, principalmente moradores que contraíam doenças, como malária e leishmaniose, além de peões que se machucavam na derrubada de árvores.
A partida
Hugo Doubek deixou Paranavaí com a família em 1948, quando, por motivos nunca declarados, pediu transferência para Curitiba. Alguns pioneiros supõem que a partida do marceneiro foi motivada por pressão política do capitão Telmo Ribeiro, que era o líder local do Partido Social Democrata (PSD). “Aqui houve muita alegria, mas depois que começou a política, eu desgostei muito. Tive muita tristeza e até medo”, ressaltou a pioneira fluminense Palmira Gonçalves Egger.
Em apenas dois anos morando na colônia, Hugo Doubek viveu a transição da Fazenda Velha Brasileira para Paranavaí. De acordo com pioneiros, um nome que ajudou a escolher. Além disso, o marceneiro tentou promover a paz na colônia, realizando acordos entre os moradores e também salvando muitas vidas quando ainda não havia nenhum médico em Paranavaí.
Curiosidade
O pioneiro era o responsável por investigar as causas das mortes que aconteciam na colônia.
Hugo Doubek foi o primeiro inspetor de terras de Paranavaí, depois substituído por Ulisses Faria Bandeira.
Frases dos pioneiros sobre Hugo Doubek
Enéias Tirapeli
“A maior autoridade aqui era o Hugo Doubek.”
“Para conseguir terra tinha que ligar na casa do Hugo e esperar um tempo para eles cortarem o terreno.”
Izabel Andreo Machado
“Quando cheguei aqui só tinha umas três ou quatro casas, e uma era do chefe da colônia, o Hugo Doubek.”
José Alves de Oliveira (Zé do Bar)
“Acho que foi o Hugo Doubek e o Ulisses Faria Bandeira que colocaram o nome de Paranavaí.”
“Quando a gente fazia o requerimento de terras para o Hugo Doubek, ele dava mais ou menos 42 alqueires para cada famíllia.”