David Arioch – Jornalismo Cultural

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Treinados (ou não) para matar

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Full Metal Jacket mostra a desumanização dos fuzileiros enviados à Guerra do Vietnã

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Durante o treinamento, Gomer Pyle perde a própria identidade (Foto: Reprodução)

Lançado em 1987, Full Metal Jacket, conhecido no Brasil como Nascido Para Matar, é um filme do cineasta estadunidense Stanley Kubrick sobre um grupo de fuzileiros navais que passa por um processo de desumanização até serem enviados à Guerra do Vietnã.

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Sargento Hartman instrui os fuzileiros a agirem como assassinos (Foto: Reprodução)

Nas primeiras cenas do filme, dezenas de jovens estão em um campo de treinamento onde se submetem aos mandos e desmandos do sargento Hartmann (R. Lee Ermey). Embrutecido pelo meio, a expressividade do personagem é assombrosa. Politicamente incorreto, o sargento traça comparativos entre fuzileiros navais e criminosos, deixando transparecer a ideia de que um bom soldado sempre está apto a matar alguém com naturalidade, assim como um assassino.

Joker

Joker, um soldado que despreza lutar (Foto: Reprodução)

Carrasco incondicional, Hartmann escolhe o jovem Gomer Pyle (Vincent D’Onofrio) como vítima logo no início do filme. Gordinho, o rapaz é estigmatizado como símbolo do fracasso em um universo onde a boa forma é enaltecida. As frases ofensivas do verborrágico sargento percorrem os tímpanos de Pyle com a rispidez de uma lâmina. Aos poucos, o jovem tenta se moldar de acordo com o ambiente e a necessidade de sobrevivência. E mais, sofre uma lavagem cerebral tão truculenta que a sensibilidade desaparece e dá vazão a um hermético comportamento psicopata.

Na segunda parte do filme, os garotos são enviados ao Vietnã. O destaque então é Joker (Matthew Modine), um soldado que carrega um broche do “Movimento da Paz” preso ao colete. Em paradoxo existencial, o fuzileiro está em uma das extremidades, se somando a um sem número de soldados norte-americanos lutando em uma guerra que tanto desprezam. Há vários momentos em que Joker se expressa como um racionalista.

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Kubrick mostra que não há vencedores em uma guera (Foto: Reprodução)

Em contraponto, muitos tipos não veem os outros como semelhantes, mas apenas alguém habitando o plano terreno. Logo matar se torna nada mais que um trivial exercício diário, ratificando assim a banalização da vida. O humor cáustico que dá a tônica do filme também é usado por Stanley Kubrick para transmitir a insignificância da vida em um contexto beligerante, e também deixa claro um posicionamento antiguerra, mas não simplesmente pacifista.

Do início ao fim de Full Metal Jacket, o cineasta mostra, em etapas, a decadência humana, tanto coletiva quanto individual. Transmite a ideia de que com o fim da guerra não morre apenas quem sucumbe no front, mas também os soldados que, psicologicamente despreparados para vivenciar tanta violência, retornam para casa, onde não reconhecem mais o lar e se entregam primeiro à morte social.

A trilha sonora do filme também se destaca por contar com nomes como Johnnie Wright, The Dixie Cups, Sam The Sham, The Pharaohs, Chris Kenner, Nancy Sinatra, The Trashmen, Goldman Band e The Rolling Stones que surge exatamente ao final com Paint It Black, quando os créditos sobem envoltos por uma atmosfera de cortejo fúnebre. Entre 1987 e 1989, a obra cinematográfica foi indicada a onze prêmios.

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Era uma vez um sonho americano

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Down By Law, confinados a uma realidade marginal

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Filme conta a história de três detentos alheios ao sonho americano (Foto: Reprodução)

Lançado em 1986, Down By Law, do estadunidense Jim Jarmusch, consagrado nome do cinema independente, conta a história de três detentos alheios ao sonho americano. Mesmo sem perspectiva de futuro, eles conseguem fugir, mas fora da cadeia se dão conta de que continuam presos, confinados a uma realidade marginal.

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John Lurie, Roberto Benigni e Tom Waits são os protagonistas de Down By Law (Foto: Reprodução)

Zack (Tom Waits) e Jack (John Lurie) são dois personagens condenados a prisão por crimes que não cometeram, embora ganhem a vida praticando atividades ilícitas. Enviados para a mesma cela, os dois se evitam como se fossem pessoas antagônicas. Mas a verdade é oposta. Não se gostam por serem semelhantes; um parece refletir a imagem do outro. A convivência é difícil, inclusive o diretor Jim Jarmusch explora a situação com tomadas longas e uma fotografia em preto e branco que privilegia tons mais escuros.

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Jim Jarmusch explora a incomunicabilidade dos personagens (Foto: Reprodução)

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Mesmo após a fuga, os foragidos não se sentem livres (Foto: Reprodução)

Aos poucos, a história toma outro rumo, até estético. Os diálogos se tornam mais densos e as cenas mais curtas com a chegada do detento Roberto (Roberto Benigni), um verborrágico imigrante italiano, mas bem humorado, que leva luz e vida ao mórbido e opaco ambiente. A princípio, Zack e Jack tentam evitá-lo. Entretanto, cedem quando Roberto afirma ter um plano para fugirem da prisão. Dos três, o único que realmente foi preso por um crime que cometeu é o italiano. Jarmusch destaca a subjetividade e o paradoxo ao mostrar um homicida ingênuo enquanto os outros dois condenados, mesmo inocentes, personificam o estereótipo de um criminoso.

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Cenário onde o imigrante Bob se depara com o sonho americano (Foto: Reprodução)

O cineasta mostra a incomunicabilidade com uma peculiaridade assombrosa. Bob, que mal sabe falar inglês, é efusivo e raramente fica em silêncio. Já Zack e Jack, autênticos estadunidenses, têm dificuldades de se relacionarem. No decorrer da trama, o imigrante italiano, admirador da cultura norte-americana, consegue uma esposa. Jarmusch faz o espectador crer que o abestalhado Roberto encontrou um “lar” na América, quem sabe a concretização particular do american way of life. Em contraponto, os dois americanos da Louisiana continuam vivendo nos EUA como se fossem estrangeiros; vagam em rumo de um objetivo existencial.

Uma das cenas mais impactantes de Down By Law surge quando os três criminosos encontram uma casa durante a fuga. No interior, Jim Jarmusch recria o ambiente de uma cela, com beliches típicos de penitenciárias e colchões cobertos por lençóis iguais. O objetivo é transmitir a ideia de que mesmo livres ainda estão presos, não a um espaço material, mas a uma condição existencial que os acompanhou por toda a vida. É uma referência a responsável por privar-lhes de sentirem-se livres – a marginalidade.

A trilha sonora do filme foi composta especialmente pelo ator, músico e artista plástico John Lurie que fez parte do grupo The Lounge Lizards, um clássico do jazz estadunidense. Outra curiosidade sobre Down By Law é que o filme venceu importantes festivais de cinema e disputou em 1986 o prêmio Palme d’Or, o mais importante do Festival de Cannes. Vale lembrar ainda que a influência da obra se estende ao cenário musical. O exemplo mais emblemático é a banda de punk-rock Down By Law, muito famosa nos EUA e que já se apresentou no Brasil algumas vezes.