David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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As crianças do Cine Ouro Branco

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Vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço

Cine Ouro Branco marcou gerações em Paranavaí (Acervo: Osvaldo Del Grossi)

Não faço parte de uma geração que tem as lembranças mais sólidas e claras do Cine Ouro Branco, um dos grandes pontos de entretenimento da população de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, até 1993. Quando o cinema foi fechado, eu ainda era criança. Apesar disso, frequentei o Ouro Branco por alguns anos da minha infância e tenho boas recordações daquele tempo.

A minha primeira vez no cinema foi numa sessão de “Os Heróis Trapalhões – Uma Aventura na Selva”, num final de semana em 1988. Até então, a maior tela que eu tinha visto era da TV de 21 polegadas, coberta por uma caixa de madeira envernizada, que ficava na sala de casa. Mesmo assim eu era feliz assistindo desenhos animados nela.

Logo que eu, meu irmão e minha mãe chegamos em frente ao Cine Ouro Branco, na Rua Manoel Ribas, no centro de Paranavaí, prestei atenção na grande movimentação de pessoas na fila da bilheteria. Miúdo, eu observava tudo na proporcionalidade da minha estatura. Via mais sapatos, pernas e cintos do que rostos. A não ser, claro, quando as pessoas eram tão pequenas quanto eu.

Antes de entrarmos, caminhei vagarosamente e de costas pela calçada, tentando observar a altura do prédio do Cine Ouro Branco, mas era impossível para mim. Então pensei que aquele fosse o maior cinema do mundo. Quem sabe, atravessasse os céus e tivesse contato direto com o paraíso de que falavam na escolinha.

O gentil pipoqueiro sorria pra mim, percebendo através dos meus olhos grandes, cilíndricos e pretos que aquela era a minha estreia no cinema. “É sua primeira vez? Você vai gostar e vai querer voltar mais vezes”, disse enquanto ajeitava uma pequena quantidade de pipoca doce que tentava se misturar com a salgada.

Quentinha, a pipoca pronta para consumo estalava dentro do carrinho. Por um momento, cheguei a crer, na minha ilusão meninil, que talvez a pipoca tivesse vida própria e também quisesse entrar no cinema para assistir Os Trapalhões. Ao meu lado, prevalecia um aroma adocicado que pacificava as crianças mais buliçosas – sim, era um eficaz calmante açucarado e rubro.

Trazia recordações dos airosos ipês-vermelhos que eu via todos os dias perto de casa, quando apontava com o dedo e gritava: “Olha lá um pé de pipoca-doce!” Do outro lado do carrinho de pipoca, a olência mudava, assim como o público. Os adultos, principalmente os homens, se achegavam para comprar: “Me vê da salgada, por favor!”

Habilidoso, o pipoqueiro sabia como ninguém quantas pazinhas de alumínio eram necessárias para encher um saquinho. Eu assistia suas mãos sulcadas lucilando diante da pequena lâmpada já amarelecida que iluminava e dourava seu rosto crispado. Era desse jeito, sempre que ele se inclinava ou se aprumava. Aquele era seu espetáculo e na entrada do Cine Ouro Branco ninguém era mais importante do que o pipoqueiro.

Naquele dia, antes de entrarmos no cinema, cinco engraxates, com idade entre 6 e 14 anos, se aproximaram, encostaram numa parede ao lado do Cine Ouro Branco e, como os jovens farroupilhas do filme Los Olvidados, de Buñuel, começaram a fumar, observando famílias descendo dos automóveis e atravessando a calçada.

“Se tivesse pai ou mãe não tava nessa vida, irmão! Ser pobre e sozinho não é fácil não. Olha quanto luxo dessa molecada”, comentou um deles com os quatro amigos que o acompanhavam. Sem falar nada, apenas balançaram a cabeça em concordância, esmagando bitucas a pés pequenos.

Sujo, com unhas encardidas e cheiro nauseante de cigarro barato, um engraxate de não mais que 12 anos se aproximou de uma turma de crianças. Como alguém indeciso sobre entrar ou sair, cruzou os braços e ergueu o rosto enquanto uma das luzes da entrada realçava sua dúbia expressão de satisfação.

“Pessoal, escuta aí! Rapidinho! Esse filme dos Trapalhões é bom demais. Só tem uma coisa ruim. O Mussum e o Zacarias morrem no final. Valeu! Tchau!”, gritou e correu rindo, com os cabelos ondulados e escuros esvoaçando. Naquele momento, ele se tornou um antagonista digno do vilão Cicatriz interpretado por Carlos Koppa no filme dos Trapalhões.

O garoto arrastou os chinelos surrados e, acompanhado de seus comparsas, desceu satisfeito em direção à Rua Pará. Algumas crianças não se importaram com a revelação, mas outras ficaram tão irritadas que queriam que seus pais chamassem a polícia ou fizessem algo a respeito. Por bem, ninguém os perseguiu.

Dentro do Cine Ouro Branco, fiquei boquiaberto com as poltronas a perder de vista. “Aqui cabe mil e quinhentas pessoas. Olhe lá em cima, é como numa ópera”, informou minha mãe, observando a minha reação e a do meu irmão Douglas. Sem pressa, giramos ao redor da sala mastodôntica, tentando registrar os detalhes.

Por sorte, havia lugares vagos nas primeiras fileiras. Então caminhamos até lá, atravessando corredores e ouvindo sons de espectadores comendo pipoca, conversando, fazendo troça e se abraçando. Perto de nós, o lanterninha acompanhava tudo com sua aura indefectível de vagalume. Se sentia o líder de um coliseu onde nada aconteceria sem sua autorização, ainda mais quando as luzes se apagavam.

Assim que me sentei, observei um garoto com roupas remendadas sentado ao meu lado, acompanhado de sua mãe. Seu nome era Juscelino e ele era um ou dois anos mais velho do que eu. Também era a primeira vez dele no cinema. Percebi sua ansiedade porque seus pés miúdos não paravam de balouçar, assim como os meus.

Suas mãos trêmulas suavam tanto que toda hora ele as enxugava nas laterais da calça xadrez de barras curtas. Juscelino falava comigo mantendo o rosto em direção à desmesurada tela de projeção. Achei que era empolgação por causa do filme, até que notei algo de diferente em seus olhos, uma clareza cristalina como nunca vi antes. Com naturalidade, a mãe revelou que o filho nasceu cego.

Juscelino não enxergava nada. Ainda assim sua empolgação no Cine Ouro Branco superava até a minha. Os sons e olores que chegavam até ele eram como presentes imateriais, memoriais. Com uma rara acuidade auditiva e olfativa, Juscelino percebia até o que as pessoas faziam ou comiam nas poltronas mais distantes – e comentava tudo comigo.

Filho de um casal de lavradores de Alto Paraná, ele chegou a Paranavaí de ônibus pela manhã e ficou horas esperando a bilheteria abrir. Seu pai não prestigiou o grande acontecimento porque o dinheiro economizado a duras penas só cobria as despesas da mulher e do filho. “Vai começar, mãe!”, disse o garotinho segundos antes do projetor iniciar a rodagem do filme, como se tivesse um dom para presságios.

Do início ao fim, Juscelino ficou em completo silêncio, tentando absorver o máximo possível de informações sonoras. Ocasionalmente, se movia sobre a poltrona sem fazer barulho, preocupado em incomodar. Eu, ele e meu irmão estávamos unidos por uma experiência que jamais se repetiria. As nossas maiores descobertas eram visuais e as de Juscelino auditivas. Talvez até mais ricas, já que ele se colocava na condição de criador para dar vazão à criatividade de tudo que ouvia.

Ainda no escuro, vi as lágrimas escorrendo pelo seu rosto, molhando sua camisa xadrez abotoada até na altura do pescoço. Ao final, com o retorno das luzes, perguntei a ele como era a assistir a um filme no cinema sem poder ver. Minha mãe me repreendeu, mas a de Juscelino não se importou com a pergunta.

“Não sei explicar direito, mas eu vejo sim, só não vejo com os olhos. Vejo tudo que carrego pra dentro de mim”, justificou antes de segurar a mão de sua mãe e caminhar a passos curtos em direção à saída, onde a iluminação artificial contrastava e se harmonizava com a luz anilada e complacente da venusta Lua recém-chegada.

Na esquina, no cruzamento entre a Rua Pará e a Manoel Ribas, os cinco engraxates, crianças vivendo como adultos, tamborilavam suas caixas, sentados no meio-fio, imersos em sorrisos postiços e olhares acabrunhados, tentando existir para um mundo que pouco reconhecia suas verdadeiras intenções.

Retornando para casa a pé, atravessamos a rua. Quando passamos por eles, o mesmo garoto que causou o alvoroço na entrada do cinema me puxou pelo braço e, com um olhar supliciado, perguntou: “Ei, amigo. Você pode contar pra gente a história do filme que tu viu lá no cinema?”

Curiosidade

Fundado em 27 de janeiro de 1961 pela Família Del Grossi, o Cine Ouro Branco foi uma das mais importantes fontes de entretenimento da população de Paranavaí até 1993.

Quando Alex Kidd nos inspirou a viver

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“Por um momento, quis ser admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos”

"Pensamos em prender Pozinho no guarda-roupa para jogarmos Alex Kidd por algumas horas" (Foto: Reprodução)

“Pensei em prendermos Pozinho no guarda-roupa para jogarmos Alex Kidd por algumas horas” (Foto: Reprodução)

A primeira vez que joguei videogame foi em 1988, quando meus pais trouxeram para casa um Atari 2600. O ligávamos em uma TV com caixa de madeira de 21 polegadas. Eu achava o controle engraçado porque me lembrava o estribo de uma bicicleta na posição vertical. No dia do teste, minha empolgação era tão grande que eu não conseguia parar de sorrir. Parecia o Animal do desenho animado Muppet Babies. Também tive uma repentina crise de comichão que só desapareceu depois de 30 minutos jogando Enduro. Para mim, aqueles carrinhos que mais se assemelhavam com aranhas deformadas representavam a mais fidedigna perfeição. “Olha, Douglas! Legal demais, né? Tem até disputa na neve”, comentava com meu irmão mais velho.

Depois de Enduro, conhecemos uma infinidade de outros jogos, como River Raid, H.E.R.O, Keystone Kapers, Space Invaders, Pac-Man, Pitfall, Boxing, Ice Hockey, Freeway, Sneak ‘n Peek, Spider-Man, Adventure, Donkey Kong, Skiing e Mario Bros. O que facilitava o acesso eram os cartuchos multijogos. A maior diferença de se jogar Atari quando o videogame ainda estava no auge era a oportunidade de ver as reações de crianças, adolescentes e adultos. Não era difícil testemunhar pessoas chorando de alegria ao jogar pela primeira vez. O videogame também funcionava como um tipo peculiar de “medidor de solidariedade”. Ou seja, você podia perceber facilmente quem eram seus amigos, colegas e conhecidos mais egoístas. Alguns chegavam a chamar vizinhos apenas para assistir aos jogos, sem oferecer qualquer possibilidade dos convidados encostarem as mãos em um controle.

Participei de um episódio assim na casa do garoto mais rico do meu bairro em 1989. Detentor de um Master System novinho, ele fez questão de chamar a minha atenção e a de mais outras seis crianças. Na tarde daquele dia, brincávamos de esconde-esconde nas imediações de um terreno baldio perto da minha casa, na Rua Pernambuco, em Paranavaí. “Olha, meu pai trouxe pra mim dos Estados Unidos o melhor videogame do mundo. É um Master System. Hum…aposto que nunca ouviram falar dele, né? É muito, muito melhor do que o seu Atari. Quem quiser pode ir lá em casa daqui meia hora que vou mostrar como ele é perfeito”, disse o menino. Imediatamente, sem se despedir, virou as costas e foi embora.

Na hora, nem me importei com o tratamento dado pelo garoto. Ignorei a sua altivez, arrogância e pedantismo. Me preocupei apenas com as palavras Master System. A princípio, o resto foi descartado como se eu jamais tivesse ouvido qualquer outra frase saída de sua boca descarnada. Aquele nome mexeu tanto com a nossa imaginação que paramos de brincar de esconde-esconde. Sentamos no meio-fio e comentei em tom de contemplação: “Master System parece um nome bonito, né? Maaa…sss…teer…Syyysss….teeem. Aaaah, mas será que existe coisa melhor que Atari? Atari é Atari!” Na nossa turma de jovens de quatro a sete anos, todo mundo concordou. Alguns balançaram a cabeça e outros emitiram apenas um monossilábico “aham” seguido por risos. Chegada a hora, fomos até a casa do “Pozinho”, um apelido oculto que atribuímos àquele garoto que vivia no palacete branco da esquina. Como passamos boa parte da tarde brincando de esconde-esconde, escalando árvores e atirando com pistolas de água, não estávamos bem limpos.

Quando chegamos à esquina, do alto de seu quarto, contíguo a uma sacada romanesca, Pozinho nos observou com um olhar displicente e sobranceiro. Talvez nos enxergasse como formigas obreiras que estavam ali para cultuá-lo, levá-lo ao êxtase com nossa inferioridade reafirmada na falta de acesso a um videogame, um objeto de desejo recém-despertado em nós por ele mesmo, na gana de tentar ferir nossos sentimentos. Sim, lá em cima estava uma criança de seis anos, mas com anseios perniciosos tão sobressaltados que despertava admiração até em adolescentes celerados. Assim que Pozinho se afastou da janela, fiquei na ponta dos pés para acionar o interfone. Martinha, uma senhora negra, alta, simpática e de pele reluzente que trabalhava como empregada doméstica na casa há mais de 20 anos, destravou o portão. Quando coloquei meus pés sobre um tapete felpudo dourado que ornava o antepasso da sala, percebi como meu tênis chinesinho branco estava demasiado sujo.

Os cadarços encardidos me deixaram constrangido ao ver tudo brilhando no interior daquele cômodo. Um aroma suave e cítrico, simbolizando a mais devotada das limpezas domésticas, amplificava o meu pré-remorso. “Que vergonha! Ela limpou aqui agora”, pensei comigo mesmo. No canto, um vaso grande com lírios-da-paz, uma das plantas preferidas da minha mãe, realçava ainda mais o perfume do ambiente. Ao ver minha hesitação, Martinha disse que não tinha problema nenhum. “Entre, menino! Não vão ser seus pés miúdos e menores que a palma da minha mão que vão atrapalhar o meu trabalho. Pode ficar sossegado!”, garantiu ela com um sorriso tão confortável que fez sucumbir o meu mal-estar.  Na mesma esteira, seguiram-me as outras crianças. Martinha então nos levou até o quarto de jogos do Pozinho, situado no terceiro piso.

Éramos como os sete anões seguindo os comandos de Martinha, a nossa laboriosa Branca de Neve nos guiando aos aposentos da Rainha Grimhilde. Antes de abrir a porta e se despedir, ela recomendou que ignorássemos o jeito grosseiro e a metidez do juvenil patrão. Assim que entramos, Pozinho nos deu uma olhadela e comentou: “Todos vocês vieram? Certo! Só não fiquem muito perto de mim nem da TV porque preciso de espaço pra me concentrar.” Olhamos uns aos outros e seguramos o riso com as mãos, ignorando nossas unhas com resíduos de terra e de cascas de árvore. Sem perceber nossa reação, o garoto ligou o videogame e se acomodou em uma confortável poltrona inclinável que trazia uma etiqueta com a bandeira dos Estados Unidos. Ao alcance de sua mão direita, havia uma bandeja com Dadinho, Ice Pop, balas Fizz, pirulitos do Zorro, 7 Up e Sukita.

Ensaiando uma centelha de educação, sugeriu que sentássemos onde quiséssemos. Não havia lugar para todo mundo, então fomos todos para o chão. Em poucos minutos, nos mostrou Alex Kidd, um jogo de plataforma em que um garoto orelhudo destrói pedras com os punhos. Nossos olhos brilhavam ao ver tantas cores em um game. O que era aquilo? Quem era aquele herói cabeçudo serpenteando por bosques e cavernas? Pensei que estivesse sonhando. Quis morar naquele quarto para sempre. Não! Por um momento, quis viver dentro do jogo, sendo admirado por explodir tijolos e saltar sobre balões vermelhos. Como o jogo estava em inglês, Pozinho fez questão de dizer sem base alguma que ele entendia tudo e nós não entendíamos nada.

O ignoramos e trocamos olhares maliciosos. Nos comunicamos muito bem sem precisar abrir a boca. Havia um desejo unânime, não verbalizado, de tapar a boca de Pozinho com esparadrapo e trancá-lo dentro do guarda-roupa. Jogaríamos Alex Kidd por algumas horas e então o soltaríamos. Sim, na teoria parecia plausível. Só que a realidade era muito diferente. Não tínhamos coragem, nem achávamos aceitável fazer algo assim. Fabiano e Mariana, dois da nossa turma, não resistiram, se levantaram e pediram para jogar. Pozinho desdenhosamente declinou a proposta com um olhar de desprezo seguido por uma careta de nojo. A negativa os emocionou sobremaneira que ao longe se podia notar a transparência e o aspecto orvalhado de seus olhos. “Rá! Até parece! Chamei aqui só pra vocês passarem vontade mesmo. Agora podem sair daqui. Tchau!”, declarou sem velar o sorriso sardônico e a intenção capciosa.

Nos levantamos, abrimos a porta e descemos os degraus. Olhei para trás e mais uma vez ele estava nos observando. Se regozijava com a nossa pequenez, já que a sua anormal baixa estatura para alguém de seis anos não permitia tal comportamento tão empertigado quando estávamos de pé diante dele e sobre o mesmo piso. Para quebrantar sua satisfação, acenei, sorri e agradeci o convite. Lá embaixo, a iluminada Martinha nos aguardava com doces e refrigerantes. “Olha o que separei pra vocês. Coloquem em seus bolsos ou escondam em suas roupas e vão com Deus”, sugeriu numa despedida afetuosa. De volta ao meio-fio, entre goles de Soda Limonada, dividimos sorvete fura bolo, arrozinho em flocos, azedinho de morango e balas. Ao escurecer, fomos para casa. No dia seguinte, eu soube que três amigos adoeceram de tanta vontade de jogar Alex Kidd no Master System. Ficaram febris e passaram dias sem consumir alimento sólido.

Irritado, me senti tentado a retornar à casa de Pozinho para destruir o seu videogame a marteladas. Consegui me controlar e também evitei de contar a algum adulto o que aconteceu. Ninguém da nossa turma relatou nada. Uma semana depois, já não nos importávamos muito com o Master System. Continuamos jogando Atari, realizando pequenos torneios de jogos de corrida e luta. Quando enjoávamos, saíamos para escalar árvores, colher frutas ou brincar de esconde-esconde, pega-pega e “balança, caixão”. Em frente à Sanepar, subíamos em um muro alto que permitia uma visão privilegiada da baixada do Jardim Paulista, onde mais tarde desceríamos com carrinhos de rolimã.

Azul e límpido ou enuviado e chovediço, o céu nunca nos mostrou limites, assim como as sibipirunas, os ipês, as sete-copas e os jamelões que se refaziam conforme as estações do ano. Os muros e as escadas cada vez maiores também reconduziam nossas aventuras. As novas construções instigavam nossas visitas tanto quanto as casas e os barracões abandonados. Cães de diversos tamanhos ainda nos perseguiam, não por maldade, mas porque no dia a dia eles eram personagens dos jogos de plataforma que eram nossas vidas. No final de 1989, Pozinho ainda me observava ao longe. Tentando me provocar, um dia balançou o controle retangular do Master System para fora da sacada do seu quarto. O cumprimentei e sorri brevemente. Não, não quis ser irônico. Senti pena e compaixão ao ter certeza de que enquanto ele simulava ser um personagem aventureiro de um videogame, nós éramos felizes por sermos os Alex Kidd do mundo real.

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Lou Ferrigno, de vítima de bullying a campeão de fisiculturismo

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Stand Tall, mais do que uma versão Pumping Iron do ítalo-americano

Filme foi lançado em 1996 por Mark Nalley (Foto: Reprodução)

Filme foi lançado em 1996 por Mark Nalley (Foto: Reprodução)

Embora muitos digam que o ex-fisiculturista e ator Lou Ferrigno foi ofuscado por muito tempo pelo também ator e ex-fisiculturista Arnold Schwarzenegger, a verdade é que o primeiro filme estrelado pela dupla, o documentário Pumping Iron, de 1977, de Robert Fiore e George Butler, serviu para alavancar ainda mais a carreira do ítalo-americano, mesmo que a película tenha se pautado mais na carreira e personalidade de Arnie.

Exemplos não faltam. Após o lançamento de Pumping Iron, Lou Ferrigno estrelou o filme The Incredible Hulk, seguido pela série homônima de sucesso que foi ao ar pela CBS até 1982. Depois, Ferrigno foi protagonista de The Incredible Hulk Returns, de 1988; The Trial of the Incredible Hulk, de 1989; e The Death of the Incredible Hulk, de 1990. Ainda trabalhando com a sétima arte, interpretou o mitológico Hércules em 1983 e 1984, além de Sinbad of the Seven Seas em 1989.

Dos anos 1990 para cá, o fisiculturista aposentado teve poucas participações no cinema e na TV. Os trabalhos mais populares incluem a voz do Hulk nos remakes mais recentes e muitas dublagens para os desenhos animados da Marvel. No Brasil, o filme Stand Tall, de 1996, do cineasta Mark Nalley, é desconhecido da maior parte do público aficionado por musculação e fisiculturismo.

Obra mostra que Ferrigno sofreu muito em função da surdez (Foto: Reprodução)

Obra mostra que Ferrigno superou grandes obstáculos para se tornar um atleta (Foto: Reprodução)

Curiosamente, é o único que mostra quem é e quem foi o maior adversário de Arnold Schwarzenegger no antológico Mr. Olympia de 1975. Ainda assim, é preciso ressaltar que talvez por ser um docudrama com caráter de tributo ou homenagem, Stand Tall omite informações sobre o final da carreira de Ferrigno como bodybuilder, quando amargou em 1992 e 1993 as posições de 12º e 10º colocado.

O filme de Mark Nalley tem boa estrutura, em acordo com uma proposição humanista que visa despertar a identificação do público com um dos maiores ícones da era de ouro do bodybuilding. Na obra, Louis Jude Ferrigno é uma criança do Brooklyn, em Nova York, que aos três anos é diagnosticada com surdez causada por uma infecção. Restando apenas 15% da audição, o jovem Ferrigno cresce retraído. As cenas sobre a infância difícil do atleta são apresentadas em forma de vídeos caseiros registrados no final dos anos 1950.

A musculação ajudou Lou a superar a baixa autoestima (Foto: Reprodução)

A musculação ajudou Lou a superar a baixa autoestima (Foto: Reprodução)

Vítima constante de bullying, apenas anos mais tarde consegue ouvir e falar com clareza. São emocionantes as cenas de Lou contando como foi ridicularizado na infância por ser um garoto magricela surdo-mudo. Mas tudo começa a mudar aos 13 anos, quando descobre o fisiculturismo como forma de superar a timidez e a baixa autoestima. O amor pela modalidade é quase instantâneo, tanto que Ferrigno trabalhava como engraxate para comprar revistas de musculação.

Um dos momentos mais inesquecíveis de Stand Tall surge quando o ex-fisiculturista lembra dos episódios em que disse aos seus clientes que se tornaria um campeão mundial de bodybuilding. A narrativa vigorosa e a construção clara e objetiva do filme conquistam a atenção do espectador. Mesmo quem não gosta de musculação ou fisiculturismo começa a entender e respeitar a complexidade e o rigor da construção corporal, seja em nível competitivo ou não.

O filme que conta a história de superação do ítalo-americano também tem algumas semelhanças com Pumping Iron. No clássico de 1977 o adversário que o protagonista Arnold Schwarzenegger precisa superar é Lou. Já em Stand Tall, Ferrigno, com mais de 40 anos, tem de vencer o veterano Boyer Coe. A obra que levou um ano e meio para ser produzida tem bom material de pesquisa e apresenta entrevistas com familiares e amigos de Lou, além de Arnold, o maior ídolo do fisiculturismo.

O atleta se tornou Mister Universo em 1973 e 1974 (Foto: Reprodução)

Em Stand Tall, o atleta tenta superar o adversário Boyer Coe (Foto: Reprodução)

Nalley quase desistiu de ter Schwarzenegger no filme por causa das dificuldades em convencê-lo a participar. Para o bem do cineasta, as regulares insistências garantiram um final feliz. Em troca da participação, Arnie pediu apenas uma caixa de charutos. “Sabíamos como seria determinante para o filme ter alguém famoso como o Arnold”, diz o cineasta Mark Nalley que precisou se desdobrar com um orçamento modesto de 200 mil dólares, considerado minúsculo para os padrões estadunidenses. Uma das poucas queixas sobre o filme diz respeito a iluminação. Há algumas cenas escuras que denunciam uma certa falta de cuidado e de recursos da produção.

Felizmente, nada disso é o suficiente para ofuscar o brilho do documentário sobre um dos atletas mais importantes da história do fisiculturismo. Se tratando de estatura física, Ferrigno, que tinha 1,96m e 130 quilos, ultrapassou os padrões do bodybuilding profissional e conquistou dois títulos de Mr. Universo em 1973 e 1974, além de uma terceira colocação no Mr. Olympia de 1975. Em síntese, Stand Tall é um filme feito para todos os seres humanos, amantes ou não de atividade física resistida. “Ele tinha tudo. Boas costas, bons ombros e sabia como posar”, comenta um admirador do atleta no filme.

A história de frei Estanislau

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 Hobby do frade era se aventurar na selva de Paranavaí

Frei Estanislau se mudou para Paranavaí em 1951 (Acervo: Ordem do Carmo)

Frei Estanislau é um personagem histórico de Paranavaí. Se mudou para o Noroeste do Paraná em 1951 e viveu aventuras inesquecíveis numa época em que a mata virgem envolvia a cidade.

O pernambucano Agripino José de Souza, conhecido como frei Estanislau, deixou muitas lembranças. Carismático, o frade tinha o poder de cativar os mais jovens. “Ele brincava com as crianças como se pertencesse a elas, e os pequenos o obedeciam como se fosse o pai deles”, relatou o frei alemão Ulrico Goevert no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.

O frade foi noviço do frei Ulrico na Ordem do Carmo, em Recife, Pernambuco, onde recebeu o convite para vir a Paranavaí trabalhar com o frade alemão. Chegou aqui em outubro de 1951 e estranhou as dificuldades em se conseguir carne. “Só havia carne na cidade uma vez por semana”, frisou Goevert.

Foi aí que Estanislau disse ao frade alemão que conseguiria carne sem gastar nenhum centavo. No dia seguinte, o pernambucano saiu cedo e retornou às 20h. Frei Ulrico se surpreendeu ao ver a mochila cheia de aves e outros pequenos animais caçados por frei Estanislau. “Ele mesmo preparou e por vários dias tivemos uma mesa farta. Eu lhe dava licença para caçar duas vezes por mês”, revelou Goevert. Além de pássaros silvestres, o frade caçava veados, queixadas e pacas.

Um fato jamais esquecido pelo frei pernambucano foi uma caça a um grupo de macacos que comiam todo o milho da plantação de um colono local. “Acertei um dos animais e ele caiu ferido aos meus pés. Gritava igualzinho a uma criança e ainda estendia as mãozinhas ensanguentadas, pedindo ajuda. Foi terrível! Nunca mais atiro em macaco, mesmo que roubem todo o milho”, desabafou frei Estanislau quando retornou para casa.

Frade pernambucano (segundo da esquerda à direita) era ótimo caçador (Acervo: Ordem do Carmo)

A caça era o grande hobby do frade pernambucano que sempre reunia um grupo para se embrenhar na mata virgem do Noroeste Paranaense. Iam a cavalo e as caçadas duravam de dois a três dias. No entanto, um acontecimento desestimulou o frei. “Uma vez, amarramos os cavalos nas árvores e providenciamos as coisas para passar a noite. De repente, escutamos o rugido de uma onça. Ficamos muito assustados e pegamos nossas espingardas. Duas luzes esverdeadas brilharam e desapareceram”, contou frei Estanislau.

Com o susto, o frade e os companheiros não conseguiram se mover. Mais tarde, ouviram mais um esturro de onça. A experiência foi tão impactante que ninguém dormiu. Desde então, as caçadas se tornaram cada vez mais raras e o frade pernambucano nunca mais dormiu na mata.

As velas do frade 

Nos anos 1950, nenhuma casa comercial de Paranavaí vendia velas, então com a proximidade do feriado de Páscoa, o frei Estanislau teve a ideia de buscar cera na selva que cercava a cidade, onde havia muitas colmeias de abelhas silvestres. “Ele foi para o mato na Semana da Paixão. Com a ajuda de dois amigos, derrubou em dois dias uma peroba parecida com o carvalho alemão”, assinalou frei Ulrico.

Da colmeia de um metro de diâmetro que estava próxima ao topo da árvore extraíram cinco litros de mel. O restante escorreu pelo chão com o impacto da queda. Segundo o frade alemão, os três caçadores fizeram uma bola enorme com a cera derretida em uma caçarola.

Frei Estanislau (sentado à esquerda) passava até três dias na mata (Acervo: Ordem do Carmo)

“Na noite do Domingo de Ramos, o frei Estanislau voltou para casa com o rosto tão inchado que nem o reconheci. Levou muitas ferroadas. Mesmo assim, ele sorriu e disse que trouxe quase dez quilos de cera”, enfatizou Goevert. O frade pernambucano confeccionou as velas e deixou toda a igreja iluminada. Pioneiros lembram que sentiam de longe o cheiro de mel tomando conta da igreja no Domingo de Páscoa.

Um presépio à brasileira

A primeira comemoração pública de Natal realizada em Paranavaí foi preparada pelo frei Estanislau. Para a criação do presépio, o frade foi até a mata acompanhado de crianças e adolescentes para buscar matéria-prima. “Ele fez um presépio com 24 figuras de 10 cm de altura. Quando a cortina caiu durante a Missa do Galo não gostei muito do que vi. Mas percebi que a população adorou e contemplou”, salientou frei Ulrico.

Logo o frade alemão se deu conta que a obra foi feita de acordo com as tradições brasileiras. “Por ser alemão, num primeiro momento achei que muitas coisinhas não tinham nada a ver com o presépio de Belém. Depois refleti e percebi que o presépio não foi feito para um missionário alemão, e sim para o povo que mora aqui”, pontuou frei Ulrico que parabenizou o frei Estanislau durante a celebração.

Frei Estanislau, Dom Geraldo, frei Ulrico e as crianças que participaram da primeira celebração de Natal (Acervo: Ordem do Carmo)

No mesmo dia, o frade pernambucano reuniu cem crianças vestidas de branco para levarem o Menino Jesus de 40 centímetros, ladeado por duas velas, até a igreja. “Enquanto os demais cantavam ‘Noite Feliz’, de acordo com a velha melodia alemã, coloquei Jesus na manjedoura”, ressaltou o frei alemão.

Frei se dedicou à Vila Operária

Agripino José de Souza, conhecido como frei Estanislau, chegou a Paranavaí durante a Festa de Santa Terezinha, no dia 3 de outubro de 1951. Conforme informações do livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”, o frei Ulrico Goevert ficou muito feliz em recebê-lo. “No dia seguinte, fomos ao comércio comprar um fogão a prestação, utensílios para a cozinha e roupas de cama”, lembrou o frade alemão.

Frei Estanislau construiu igreja, salão de festas e paróquia da Vila Operária (Acervo: Ordem do Carmo)

Estanislau ajudou Goevert até dezembro de 1955, quando deixou a Ordem do Carmo para trabalhar no Rio de Janeiro. Retornou a Paranavaí, concluiu o ginásio na Escola Paroquial, atual Colégio Nossa Senhora do Carmo, e o clássico no Colégio Estadual de Paranavaí (CEP). Em 1970, se mudou para Curitiba, onde estudou filosofia e teologia.

Se tornou sacerdote aos 50 anos, em 16 de março de 1975. Então retornou a Paranavaí, onde se dedicou à Vila Operária. frei Estanislau construiu a igreja, o salão de festas e a paróquia do bairro. Em 1988, foi convidado a trabalhar em Querência do Norte, até que faleceu em 17 de maio de 1989. O corpo do frade foi trazido a Paranavaí e sepultado na cripta da Igreja São Sebastião.

Frases do frei Ulrico Goevert sobre o frei Estanislau

“Frei Estanislau tinha uma alma sem mácula e um coração de ouro.”

“Nunca esquecerei como preparou a primeira festa de Natal.”

“Com o seu humor sadio, me tirou muitas preocupações da cabeça. Nas dificuldades, era tão engenhoso que eu fiquei muitas vezes admirado.”