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Enquanto o ônibus não chega
A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena
Num final de tarde de novembro de 2004, quando eu cursava o penúltimo ano de jornalismo, caminhei a pé da faculdade até a Rodoviária de Maringá, na Avenida Tuiuti. A garoa caía fria, amenizando o calor irradiado pelos meus pés. Chegando lá, fui até o ponto de vendas da Viação Garcia e comprei uma passagem para Nova Esperança. A atendente me disse que o ônibus metropolitano atrasaria uma hora ou uma hora e meia porque um dos carros quebrou perto de Presidente Castelo Branco.
Como eu estava longe de casa desde às 6h, não gostei do que ouvi. Circulei pelo pátio, olhei alguns assentos e me imaginei deitado sobre eles, dormindo até a hora do embarque. A ideia rapidamente foi ofuscada pela franca possibilidade de eu perder o ônibus e ainda ser assaltado. Então fui até o banheiro, onde o zelador que despejava o sabonete líquido dos refis me observou de uma forma que pensei que tivesse algo de muito errado com minha aparência. Me aproximei do espelho e não notei nada. Lancei bastante água fria sobre o rosto, tentando afastar o sono e a letargia que me dominavam. Depois ajeitei os cabelos longos e pretos atrás da orelha e me dirigi até a lanchonete.
Pedi um salgado assado recheado com palmito e uma garrafa de água mineral. Comi tranquilamente, alheio às conversas ao meu redor e também à grande TV em volume alto transmitindo um jogo de futebol pela ESPN. Divagando, me recordei que a Editora Escala ainda comercializava a coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”. Me agradava a ideia de comprar livros feitos com papel reciclado por não mais do que R$ 7, se encaixando no meu orçamento. Caminhei poucos metros até a banca de jornais e revistas e contei pelo menos 10 títulos de meu interesse. Filosofia me apetecia muito à época. Escolhi “Cartas Persas”, de Montesquieu; “A Gaia Ciência”, de Nietzsche; e “Ensaio Sobre a Liberdade”, de Stuart Mill. Gastei menos de R$ 20, guardei meus novos livros na mochila e inquieto percorri todos os cantos do pátio até a estafa me consumir pela segunda vez.
Diante da plataforma, sentei numa poltrona fria e abri a mochila enquanto choros e gritos de crianças ecoavam por todas as direções. Algumas queriam dormir, outras pediam doces e brinquedos das lojas. Fechei os olhos por alguns segundos, restabeleci a serenidade e abri o livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, um de meus autores preferidos de todos os tempos, que dialogava com minha humanidade juvenil, conflituosa e existencialista mais do que qualquer outra pessoa. Exatamente na página 28, assim que li o trecho “O fim daquele suplício e a minha salvação me chegaram de onde menos esperava, e com isso entrou em minha vida algo novo, algo que até hoje continua atuando sobre mim”, uma moça da minha idade, de aproximadamente 1,68m, pele alva e coruscante como as pétalas de uma margarida, cabelos castanho-claros e olhos que fulguravam a beleza e transparência de um topázio amarelo, sentou-se ao meu lado, mantendo sobre o colo um exemplar de “Viagem ao Oriente”, do mesmo autor.
A observei furtivamente e continuei minha leitura por pouco tempo. Perdi a concentração ao sentir que seu corpo exalava um perfume que era um paradoxo em essência, um bálsamo suave de frutos silvestres. Sem saber, ela me conduziu a um bosque etéreo, onde a natureza suspensa de suas ramas me cobria com uma luz morna e serena. “Lá estava o mundo ofertando-se por completo diante dele. Voltava com novas cores, cheios de vida, pertenciam-no e falavam sua linguagem. Tinha o mundo inteiro em seu coração e cada uma das estrelas do céu resplandecia nele e irradiava prazer em toda sua alma”, murmurava minha mente, parafraseando fragmentos da página 132 de “Demian”.
Antes de dizer oi, como se acompanhasse minhas reflexões, a jovem ao meu lado comentou que um novo raio de luz se voltava para ela. “Sinto uma alegria aprazível, patente e sem discórdias, coisas que duram breves minutos ou longas horas”, sussurrou, também citando “Demian”, me surpreendendo a ponto de meus olhos se agigantarem em espavento. A cada palavra, seu sorriso iluminava e aquecia meu rosto, contagiado por satisfação que intrigava e alimentava minha substância. Nos cumprimentamos e perguntei seu nome. Com expressão enigmática, me respondeu que era Gertrude. “Sendo assim, o meu é Kuhn”, declarei com um sorriso enviesado seguido por uma rara gargalhada que atraiu a atenção até de estranhos. Numa brincadeira singela, condutora do desconhecido, nos apresentamos com nomes de personagens indissociáveis da novela Gertrude, de Hesse, transpondo para o mundo material um pouquinho da emoção, espiritualidade e motivação que inebriam os seres humanos imersos na sua ficção.
Não perguntei nem especulei nada sobre sua vida e ela fez o mesmo. Apenas seguimos mergulhados em um mundo totalmente nosso. Em menos de meia hora, eu já pouco enxergava além de seus olhos. A rodoviária desapareceu do meu campo de visão e me senti na orla da existência terrena, sobre uma ponte que vibrava, atraindo meus pés para um quinhão distante, que se projetava para dentro e para fora de mim, fazendo meu coração rufar. Como passatempo, ela sugeriu recriarmos “Gertrude” com base em nossos anseios, desconsiderando o que Hesse teria feito ou pensado. Assim a história renascia através da nossa oralidade. Eu falava por Kuhn e ela por Gertrude. Imaginei mais tarde que ao nosso redor parecíamos dois jovens alucinados, o que não nos incomodava nem um pouco. Nos confortávamos com a completude do momento.
Quando o ônibus chegou, entramos e caminhamos até as últimas poltronas à direita. O veículo estava quase vazio. Ela sentou ao meu lado e tirou algumas folhinhas verdes que se fixaram no meu cabelo como presente de uma brisa. Logo começou a esfriar, e o céu enturvecido fez a noite precoce suplantar o horário de verão. Então tirei uma blusa da minha mochila e ela a vestiu. Sem dizer palavra, escorou a cabeça em meu ombro e assistimos a chuva paulatina escorrer pela janela. Como havia poucos passageiros, ouvíamos até os sons estalados dos pneus do ônibus em atrito com a água. A luz que inexistia lá fora, crescia dentro de nós, iluminando tudo aquilo que a visão ignora na superficialidade. Definitivamente o mundo era um lugar diferente.
Gertrude dormia segurando minha mão esquerda, trazendo no rosto uma expressão maviosa que principiava um sorriso. Seus cabelos claros se misturavam aos meus mais escuros que a noite, por ora, grafitada. Seu perfume atuava sobre mim como um fruitivo calmante que harmonizava o ritmo do meu coração. Em Nova Esperança, a chuva se dissipou. Ela acordou e desembarcamos na rodoviária. Não havia conexão para Paranavaí e tivemos que esperar um ônibus convencional da Garcia que chegaria em 40 a 50 minutos. O lugar estava deserto, tanto que ouvi sons de latões de lixo revirados por andarilhos. Gertrude se aproximou de um cãozinho sujo e lhe acariciou a cabeça e a barriga até que ele deitou no pátio da rodoviária com ar de satisfação e as patas apontadas para cima. “O nome dele poderia ser Knulp. É simples, tem jeito de viajante e tenho certeza que não se importa com nada daquilo que motiva a ganância humana”, brincou Gertrude, citando outro personagem de Hesse, e me abraçando contra uma pilastra.
Mantendo meu queixo levemente encostado sobre sua cabeça, em meio ao silêncio notívago, eu ouvia sua respiração e ela a minha. Ficamos assim até a chegada do ônibus. Sentamos nas primeiras poltronas e ela voltou a encostar sua cabeça em meu ombro. Lá fora, assistíamos o estoico contraste da miséria humana. Em Alto Paraná, um rapaz acompanhado de três amigos em um Alfa Romeo Visconti arremessava garrafas long neck contra as placas de sinalização. Na mesma avenida, logo atrás, um homem de mais de 80 anos, com um problema de coluna tão severo que suas costas formavam um arco, recolhia as garrafas que caíam inteiras. Antes de chegarmos a Paranavaí, Gertrude já tinha se aninhado em meu peito. Quando passamos pela polícia rodoviária, perguntei onde ela morava e me disse que iria passar a noite em um hotel, retornando para casa pela manhã. Não entendi o motivo, mas respeitei sua decisão. Afinal, não queria ser visto como intrometido. Na Avenida Heitor de Alencar Furtado, contei que eu desceria no cruzamento com a Rua Antenor Grigoli, e apontei com o dedo o meu destino.
Assim que me levantei, Gertrude segurou minha mão e, com olhos vibrantes, pediu que eu a acompanhasse. Descemos na Avenida Paraná e fomos para um hotel na Rua Getúlio Vargas. Por sorte, ainda havia uma suíte disponível. Subimos, tomamos banho e passamos a noite juntos, nos redescobrindo nas nossas particularidades. Minha voz começava onde a dela terminava, e tudo que emanava de sua natureza floreava a minha própria. Antes de sermos vencidos pelo sono, enquanto ela repousava sobre o meu peito, deslizei as pontas dos dedos das minhas duas mãos pelo seu rosto delicado e, observando atentamente seus olhos dourados, falei: “Há que se ver no olhar o reflexo de um mar que corre calmo e se arrebata com o aroma mais sereno trazido pelo ar. Acho que nem tudo na vida precisa de nome ou de definição. Se estamos aqui agora é o que importa, essa existência rara de uma conexão.”
Ela sorriu, tapou meus olhos com uma de suas mãos miúdas e percorreu meus lábios com os dedos da outra. Depois se aconchegou entre meus braços e dormimos. Pela manhã, por volta das 8h, senti o sol invadindo a janela e iluminando o quarto. Gertrude não estava mais lá. Vesti minhas roupas e desci até a recepção. Ela pagou a conta do hotel, partiu e pediu ao recepcionista que me entregasse um envelope. Numa folha de caderno, confidenciou que não tinha parentes em Paranavaí, que sequer conhecia a cidade. Somente quis me acompanhar e passar pelo menos uma noite comigo, entregue a algo que segundo ela era mais verdadeiro do que a própria vida.
“Me pergunto às vezes quantas pessoas vêm e vão sem se calar o suficiente para ouvir o som do próprio coração. Tanta gente impaciente buscando profundidade em águas rasas, forçando a semeadura de frutos em árvores desfalecidas. Amam o que não amam e amargam na própria essência a dor da falta de vigor. Distante das aparências, choram caladas porque escolheram o pouco que se revestia de muito, o desespero que se travestia fortuito. Numa noite, tive com você o que muitas pessoas nunca tiveram ao longo da vida. Isso é amor em forma inominada, livre, isento, sem rótulos, que reafirma a ideia de que a vida vale a pena até na efemeridade das horas. Somos feitos de lembranças, de momentos e experiências, não de coisas, alianças e convenções sociais. Me perdoe, eu queria muito te ver novamente, mas não posso. Só que nunca esqueça que a ti carregarei pra sempre em meu ser”, escreveu.
Meu coração disparou e minhas mãos tremularam. Voltei pra casa e passei meses sentindo o perfume da tão conhecida e tão desconhecida Gertrude em meu corpo. Ocasionalmente sua voz se projetava no horizonte da minha mente, onde sua frase final dulcificava um eterno poente. “Ficava-lhe a consolação de encontrando-se, por assim dizer, do lado de fora da vida, poder apropriar-se dela e absorvê-la toda de um trago. Restava-lhe a singular e livre paixão de contemplar e observar…Seu destino era, pois, seguir sua estrela, que não reconhecia desvios em seu curso”, registrou, em referência ao final de Rosshalde, de Hesse, que também era o nosso próprio fim.
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“Com o artesanato, diminuí 90% do meu consumo de remédios”
Vítima de bala perdida, Élcio Caetano aprendeu a lidar com a deficiência física por meio da arte
Na próxima segunda-feira, às 23h35, completa dez anos que Élcio Caetano ficou paraplégico por causa de uma bala perdida. À época, passou mais de um mês tentando assimilar o que tinha acontecido. “Demorou pra cair a ficha e tive dificuldade em aceitar o fato de que nunca mais andaria”, diz o morador do Conjunto Dona Josefa, entre a Vila Operária e a Vila Alta, em Paranavaí, no Noroeste do Paraná.
Ainda em 2004, sem saber que rumo tomar, Caetano aceitou participar de um programa de terapia ocupacional por sugestão de uma vizinha. “Naquele estado, o ócio é perigoso porque a pessoa acaba tendo muitas ideias que não são saudáveis”, comenta Élcio que teve o primeiro contato com o artesanato em um curso para confecção de tapetes com saquinhos de leite. Foi amor à primeira experiência.
Quase dez anos depois, o que começou como uma terapia se transformou em um meio de sobrevivência. Hoje, Caetano é um especialista em aproveitamento e reutilização de materiais. “Gosto de trabalhar com produtos recicláveis e transformar o industrializado em artesanato”, comenta o artista que tem familiares e amigos que o incentivam. A irmã, por exemplo, costuma ir até a rua 25 de Março, em São Paulo, comprar acessórios e adereços para incrementar as peças de Élcio.
Outros parceiros são a Santa Casa de Paranavaí e Clínica Radiológica de Paranavaí que doam radiografias que o artista transforma em belas borboletas. “Também recebo contribuições de uma cooperativa de materiais recicláveis”, declara enquanto exibe algumas peças recém-confeccionadas e de alta qualidade. Élcio Caetano manipula dezenas de matérias-primas, criando peças únicas, tanto utilitárias quanto decorativas. “Faço vaso com cipó e arame, abajour com tampinhas de garrafa, além de coelho e cortina com garrafas pet”, enfatiza, embora tenha predileção pelo trabalho com sementes.
Com base na demanda, Élcio produz levando em conta as mudanças de clima e tempo. No frio, confecciona toucas, cachecóis, boinas e polainas. No calor, se dedica a fazer colares, pulseiras, arranjos de flores, cortinas e bolsas. “Tem muita gente que deveria experimentar uma atividade como essa. Dá uma satisfação imensa. Com o artesanato, diminuí 90% do meu consumo de remédios. E olha que quem tem paraplegia precisa tomar remédio até pra acordar, comer e dormir”, afirma, sem esconder a satisfação e a alegria de estar vivo e fazendo o que gosta.
Sobre a concorrência com produtos industrializados, o artista que trabalha até a hora de dormir não vê motivos para preocupação. “Existe espaço pra todo mundo. A vantagem do artesanato é que as peças são únicas. Uma nunca sai igual a outra. Então atrai quem busca um diferencial nesse sentido”, esclarece. Interessados em encomendar peças ou conhecer melhor o trabalho de Élcio Caetano, podem ligar para (44) 9725-2450.
Roberto Moreira e a tradicional hipocrisia brasileira
Filme de estreia do cineasta mostra a diferença entre olhar e enxergar a realidade
O filme Contra Todos, que marcou a estreia de Roberto Moreira como cineasta, é recheado de críticas sociais que desnudam a hipocrisia da sociedade brasileira a partir de uma caricata família de classe média baixa.
Contra Todos foi o filme brasileiro mais premiado em 2004, quando foi lançado, e não por acaso. A obra apresenta todos os elementos de uma boa história. Na periferia de São Paulo, Teodoro (Giulio Lopes), que tenta preservar uma imagem de homem religioso, interpreta um mercenário e pai de família que bate na filha Soninha (Sílvia Lourenço) e trai a mulher Cláudia (Leona Cavalli) com a companheira de culto Terezinha (Martha Meola).
Infeliz com o marido, Cláudia se relaciona com Júlio (Ismael de Araújo). Aos poucos, a verdadeira imagem da família se descortina. A situação sai de controle quando o amante de Cláudia é assassinado. Perturbada, a mulher destrói a casa e abandona tudo. Depois de fugir e se hospedar em um hotel, Cláudia conhece Lindoval (Dionísio Neto), com quem começa a namorar.
Mais uma vez, o plano de felicidade é interrompido quando Lindoval quase morre após ser espancado. Cláudia acredita que o crime é de autoria do marido. Em meio a tanta confusão, Teodoro decide se casar com Terezinha e mandar a filha morar com a avó. A história ganha outro rumo quando a religiosa recebe uma fita de vídeo do futuro marido tendo relações sexuais com a ex-mulher; Terezinha acreditava que Teodoro era solteiro.
Muitos dos acontecimentos do filme são motivados pelo malandro e persuasivo Waldomiro (Aílton Graça), amigo e confidente da família de Teodoro. Além disso, também chama atenção a busca por isenção e impessoalidade. O cineasta não interfere nos acontecimentos, se limita a apresentá-los da forma mais crua possível, deixando para o espectador a tarefa de refletir e tirar conclusões.
O autor usa recursos que corroboram o realismo da trama – como planos com a câmera na mão, evitando a plasticidade. Moreira ainda escolheu locações que fogem aos clichês da periferia paulistana. Para dar mais naturalidade às cenas, optou por um elenco que concordou em participar do filme sem ter contato com o roteiro antes do início da produção.
Crime e Castigo à brasileira
Heitor Dhalia e a interpretação moderna da obra de Dostoiévski
Lançado em 2004, Nina foi o filme de estreia do cineasta Heitor Dhalia. A história, que se desenrola a partir da difícil condição psicológica e emocional de uma jovem mulher, é uma livre interpretação moderna da obra literária Crime e Castigo, do existencialista russo Fiódor Dostoiévski.
Nina (Guta Stresser) é uma moça que vive em um mundo obscurantista e psicodélico, onde o convívio social se resume à exaltação de emoções efêmeras e superficiais. Ciente de sua condição, se mantém viva por meio da interiorização e do ato de desenhar, atividade explorada por Dhalia com a intenção de evidenciar a sensibilidade da personagem e despertar reações. Há uma clara referência ao expressionismo alemão e ao gekiga.
Do início ao fim, o filme ressalta as negatividades que a modernidade impõe aos humanos extraordinários através dos ordinários, usurpando-lhes a vivacidade. Como consequência, surge uma solidão avassaladora, envolta por uma redoma de sentimentos como humilhação e ausência de autoestima. Tudo isso se soma a uma austera descrença na humanidade.
A personagem principal, uma versão brasileira à imagem de Rodion Românovitch Raskólnikov, protagonista do romance russo Crime e Castigo, se aproxima da sociedade apenas em momentos de embriaguez ou sob efeito de alucinógenos. Aí se materializa o mundo eletrônico, falsamente colorido, onde as dores da alma encontram refúgio em uma artificial luz de néon. É uma plasticidade que representa fuga e reforça a negação da natureza.
A história tem momentos perturbadores, como nas cenas em que a fragilizada Nina, mesmo calada, admite a si mesma a intemperança emocional, o incólume desejo de matar ou se autodestruir. São situações trazidas à tona, na maior parte do tempo, pela antagonista Dona Eulália (Myrian Muniz), de quem a protagonista é inquilina e por isso se submete a muitas humilhações.
A idosa mesquinha, uma versão 2004 da odiosa usurária Aliena Ivánovna, de Dostoiévski, personifica não apenas as imperfeições do mundo contemporâneo, como a imoralidade do capitalismo selvagem ou as injustiças da sociedade de consumo, mas também valores retrógrados como o despotismo.
Com a primazia de uma estética cinematográfica revolucionária, que materializa emoções a partir de peculiares transformações de cenário e cinegrafia dissonante, Dhalia estreou como cineasta ofertando um inesquecível registro sobre um câncer invisível; doença que reside na existência humana, mas não pode ser aniquilada em uma mesa de cirurgia, nem mesmo tratada com quimioterapia ou radioterapia.
Além das excelentes interpretações de Guta Stresser e da memorável Myrian Muniz, Nina ainda conta com a participação de um grande elenco formado por Milhem Cortez, Abrahão Farc, Juliana Galdino, Heitor Goldflus, Ailton Graça, Sabrina Greve, Luiza Marini, Altamiro Martins, Selton Mello, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Matheus Nachtergaele, Walter Portela, Renata Sorrah, Eduardo Semerjian, Nivaldo Todaro e Guilherme Weber. A trilha sonora é do renomado compositor Antonio Pinto, filho do famoso cartunista Ziraldo, que já compôs para mais de 30 filmes, entre obras brasileiras e até hollywoodianas.