Archive for the ‘2008’ tag
Benílio, um tipo de Verlaine travestido de Rimbaud
Como se feito de ironias, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial
Já passei por situações muito incomuns e estranhas na minha vida e hoje vou relatar uma delas. Em 2008, comecei a coordenar um projeto de cinema na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade. O público era modesto, mas bastante participativo, tanto que com o tempo estreitei contato com os frequentadores mais assíduos. Afinal, tínhamos em comum o amor pelo cinema e o interesse em discutir sobre o tema. Os encontros ocorriam às quartas-feiras, quando exibíamos algum filme fora do circuito comercial. Ao final, eu fazia uma análise e em seguida abria espaço para o público fazer perguntas. Foi assim até 2013. Era gratificante ver que até pessoas de outras cidades gostavam do projeto.
Em 2010, um rapaz a quem chamo de Benílio, para preservar a sua identidade, compareceu ao Mais Cinema. Na primeira vez em que participou, se mostrou bastante atento ao filme, a discussão e tudo que o cercava. Basicamente, um sujeito tranquilo, questionador, com bons argumentos e um humor sardônico. Algum tempo depois, Benílio começou a sumir e ressurgir durante as sessões de cinema. Parecia agitado e incomodado, o que contrastava com tudo que notei anteriormente sobre seu comportamento. A expressão ponderada, o olhar quiescente, foram substituídos por uma agitação frequente que o fazia se levantar da poltrona como se o estofamento estivesse dominado por percevejos.
Às vezes mudava de poltrona, até que sem observar lado algum abandonava o local com pressa, coçando os olhos com tanto vigor que mesmo ao longe dava a impressão de que o objetivo era esmagar o globo ocular com pontadas de dedo. Apesar disso, Benílio continuou frequentando o projeto. Sorridente e trocista, aparentava ser mais jovem do que realmente era. Andava sempre à vontade; de camiseta, bermuda e tênis ou sandálias. Mas ostentava um olhar amaneirado para compartilhar com pessoas de quem desgostava. Como se feito de ironias e de uma acidez vocabular inconstante, Benílio era visto por mim como um sujeito vivendo um paradoxo existencial.
Assim como na Gioconda de Da Vinci, seus olhos eram como uma antítese do sorriso, o que relevava mais intransparência e ardil do que insegurança. Com naturalidade dúbia, despertava reticência, principalmente sobre suas intenções e elucubrações durante as conversas. Jupiteriano, pouco se importava em transmitir clareza quando não simpatizava com alguém. Na realidade, fazia até questão de minar a conversa para afastar o interlocutor. Afeiçoado à arte clássica, ele desprezava com poucas ressalvas a arte contemporânea.
Por volta dos 20 anos, Benílio abandonou o curso de medicina da Universidade Federal do Paraná, mais tarde sendo relegado à pária por colegas, amigos e até familiares. Não se importava com as convenções sociais e as postulações de um mundo em que se deve viver sob a égide cronológica dos deveres. Parecia-lhe um despautério a ideia de que o ser humano deveria se limitar a estudar o suficiente para conseguir um bom trabalho, se casar, ter filhos, netos e falecer; assim não fazendo mais do que uma formiga obreira que percorre o chão nu transportando alimentos em horários estratégicos.
Seu nível de inteligência e cultura estava muito acima da média, o que era endossado por décadas mergulhado em livros, música e outras formas de arte. Um dia, me relatou alguns de seus conflitos amorosos com uma jovem com quem rompeu relacionamento de longa data. “Eis uma perda de tempo, uma relação que minora a alma em vez de alongá-la”, dizia. Em complemento e observação, citei que todo o nosso saber se reduz a aprender a renunciar nossa existência para podermos existir, segundo um aforismo de Goethe.
Ocasionalmente, Benílio me pedia carona na saída da Casa da Cultura. O deixei algumas vezes no cruzamento da Rua Manoel Ribas com a Avenida Paraná, no centro de Paranavaí. À época, eu dirigia ouvindo uma banda romena de rock chamada Travka que curiosamente falava de conflitos de identidade, do recrudescimento humano e da minoração da sensibilidade. Enfim, existentialisme par l’existentialisme.
Notei mais tarde que o rapaz era emocionalmente inconstante e por isso consumia com frequência medicamentos controlados. Solitário, tinha um pai aventureiro que há muito tempo se mudou para Rondônia. A mãe, com quem também pouco convivia, recebia visitas esporádicas do filho no Jardim Santos Dumont. Benílio morava sozinho em uma velha pensão na Rua Amapá, onde dividia o espaço com os mais diferentes personagens marginalizados. A maioria, pessoas que percorriam sob os ditames da penúria um chão de paralelepípedos tão maciço quanto a dor da invisibilidade velada por um sorriso frugal.
Um dia, eu corria pela Avenida Lázaro Vieira, no Jardim Progresso, quando ouvi Benílio me chamando. Olhei para o lado, ele sorriu e se aproximou de mim. Relatou que estava estudando Programação Neurolinguística (PNL) porque acreditava que as ações humanas são motivadas pelas próprias experiências, não pela realidade em si. “A mente e o corpo formam um sistema que a PNL ajuda a harmonizar, estimulando novas formas de pensar, sentir e agir. É um meio de minimizar conflitos entre o corpo e a mente”, comentou.
Na semana seguinte, após mais uma sessão do projeto Mais Cinema, Benílio pediu que eu o deixasse na Praça dos Pioneiros. Eram quase 23h, ele desceu do carro e começou a caminhar sozinho em torno da praça, sem se enfastiar com a solitude e a frágil iluminação precária e açafroada dos postes que atraíam somente insetos. Andou alguns metros e desapareceu no meio da quadra na outonal escuridão enevoada. Ignorava lados e direções, despreocupado em ser expulso da própria introspecção por sacomanos, ladrões, delinquentes ou vadios.
Como já fazia parte da minha rotina percorrer a cidade a trabalho, vez ou outra eu o via vagando sozinho pelos mais distantes pontos da área urbana. Nunca perguntei o que fazia. De qualquer modo, não era difícil perceber que Benílio não se importava em ignorar pessoas e deixar claro que sentia ojeriza pela superficialidade. Demonstrava grande amor por muitas conquistas humanas. Em contraponto, nutria indiferença e desgosto por tanta gente. Julgava o mundo como tornado doente e usava isso como justificativa da pontual ausência de empatia.
Uma vez, há alguns anos, eu e meu amigo Sobhi Abdallah fomos até a casa da mãe de Benílio, onde ele estava hospedado enquanto ela viajava. O objetivo era conversar sobre o roteiro e a pré-produção de um documentário baseado na vida de um eremita conhecido como Negão do Surucuá. Entre tereré e palavras, a tarde até que rendeu bem. Dias depois, Benílio me ligou avisando que precisávamos discutir novamente sobre o roteiro. Segundo ele, a reunião também havia sido acertada com Abdallah e meu amigo Amauri Martineli.
Quando cheguei ao local, estacionei o carro e estranhei que não havia nenhuma movimentação na varanda. De repente, Benílio gritou, pedindo que eu entrasse. Lá dentro, perguntei sobre os outros convidados e ele mentiu afirmando que eles não puderam comparecer. Após minutos, o rapaz se aproximou e me convidou para tomar café. Assim que coloquei os pés na soleira, perguntei o que ele estava preparando. “Não estou preparando nada. O café somos nós dois!”, comentou com naturalidade enquanto penetrava a massa escura de um pão preto com uma longa faca de cozinha. Em seguida, me observou atentamente os olhos, revelando um sorriso narcísico e pela primeira vez naturalmente mórbido.
Me afastei de Benílio, que não reconheci naquela figura tétrica e medonha. Contrariando todas as minhas possibilidades de reação diante de situação tão imprevisível e espantosa, expliquei tranquilamente que iria até o carro buscar o pré-roteiro do documentário. “Já volto. É rapidinho!”, argumentei sem titubear. Ele assentiu com a cabeça e continuou na cozinha. Caminhei a passos curtos e pesados, enojado, sentindo meu olhos queimando e minhas mãos suando. O enorme portão parecia a quilômetros de distância e suspeitei até que Benílio poderia tê-lo trancado. Então me preparei para saltá-lo se necessário. Questionei até se ele não teria deixado ao alcance das mãos uma arma de fogo, caso eu fugisse. Por bem, consegui abri-lo e lá fora senti o sol em todo seu esplendor me revigorando, me banhando com sua energia imperecível.
Por segundos, meus sentidos ficaram mais aguçados do que nunca. Ouvi cães latindo, mãe empurrando carrinho de bebê, homem estacionando carreta e duas crianças brincando de pular corda. Assim que entrei no carro, virei a chave e ouvi o som do motor, meu coração desacelerou. Parti com a sensação de que apesar de tudo o mundo ainda era o mesmo e estava lá para lucilar diante de meus olhos escuros. Nunca mais vi Benílio. Fiquei sabendo apenas que, assim como um tipo peculiar de Verlaine travestido de Rimbaud, foi embora para Rondônia tornar-se desbravador de coisa alguma.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
A superação de Stevie Zee
O fisiculturista com paralisia cerebral que se tornou um exemplo
O estadunidense Stevie Zee estava completamente perdido em 1992. Reprovado na faculdade comunitária e incapaz de encontrar trabalho, o rapaz que sofre de paralisia cerebral (PC) decidiu fazer algo para evitar a depressão e a autopiedade.
Em dezembro do mesmo ano, Stevie foi até um ginásio de musculação em Portland, Oregon, sua cidade natal, onde conheceu o fitness trainer e fisiculturista heavyweight David Hughes. “Ele apareceu para uma sessão de treinamento e logo me disse que queria se tornar um bodybuilder. Me surpreendi com a decisão e me empenhei em ajudá-lo”, conta Hughes que instruiu o rapaz no treinamento com pesos e o ensinou muito sobre nutrição esportiva.
Stevie queria competir no bodybuilding, seguindo o mesmo caminho de David. Porém as limitações impostas pela paralisia cerebral fizeram com que o sonho parecesse distante e utópico. Em função da doença, os músculos de Zee costumavam ser encurtados, rígidos e enfraquecidos, o que tornava tudo mais difícil. Com frequência, o controle dos músculos era interrompido por movimentos espontâneos e indesejados, além dos problemas de equilíbrio, instabilidade em movimentar pés, mãos e até falar. Em síntese, Stevie sofre de paralisia cerebral mista, o tipo mais severo.
“Eu tinha dificuldade em aceitar a doença, mas agora eu sei que eu a tenho para inspirar outros a se tornarem pessoas melhores, a tirarem o máximo proveito da vida, independente de tudo”, afirma Zee. Segundo David Hughes, Stevie é mais motivado que a maioria das pessoas. Apesar das dificuldades, mora sozinho, cozinha, dirige e faz as próprias compras.
A primeira recompensa do atleta veio em junho de 2003, quando surgiu um novo tratamento para paralisia cerebral. Zee passou por um procedimento em que foi instalado um mecanismo especial na parede abdominal, minimizando os extremos espamos musculares que o fizeram sofrer por tantos anos. Em 2006, o fisiculturista recebeu um prêmio da revista MuscleMag no Los Angeles Championships, onde foi aplaudido de pé por centenas de pessoas, entre celebridades do bodybuilding.
“Ele teve a coragem de deixar Portland e se mudar para Hollywood. Tudo isso, para realizar seus sonhos. É como se ele fosse um personagem de uma história em quadrinhos”, comenta o lendário ex-fisiculturista Rich Gaspari, que desde 2008 patrocina Stevie Zee. Para entender a história de superação do atleta é preciso ter em mente que para quem sofre de paralisia cerebral é complicado até mesmo caminhar e realizar pequenas tarefas diárias. “Imagine então fazer musculação? Há milhares de limitações que o dizem para não ir por esse caminho. Isso mostra o quanto ele é um vencedor”, diz David Hughes.
O que também chama atenção sobre Stevie Zee é a sua capacidade em seguir dietas restritivas, outro ponto considerado impossível para quem sofre de PC. Ao longo de 20 anos, o atleta não apenas ganhou em condicionamento e qualidade de vida, minimizando os problemas com a doença, como se tornou referência de novos estudos sobre a medicina da encefalopatia crônica não progressiva nos Estados Unidos. “Devo tudo isso a David Hughes que foi quem me transformou em uma pessoa totalmente diferente”, declara Stevie emocionado. Vale lembrar que o fisiculturista é tema do documentário Hang On To Your Dreams, lançado em 2008.
Contribuição
Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:
Museu preserva fragmentos da colonização de Paranavaí
Espaço reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros
O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí, que funciona nas dependências da Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, foi criado em 2007 e deste então se consolidou como importante referência para quem quer aprender um pouco sobre a colonização de Paranavaí, no Noroeste do Paraná
Mantido pela Fundação Cultural, o museu reúne um acervo de mais de 600 peças doadas por pioneiros. A coordenadora da Casa da Cultura, Rosi Sanga, explica que o espaço do museu conta com uma exposição permanente e uma temporária. “Há desde fotografias, objetos do cotidiano, instrumentos de trabalho, da história do café, itens numismáticos, documentos, obras de arte e coleções. É um acervo muito rico”, avalia Rosi, acrescentando que as fotos estão entre os maiores atrativos do museu e chamam a atenção de crianças e adultos.
Para muitos visitantes, principalmente aqueles que viveram o pioneirismo paranavaiense nos anos 1940 e 1950, estar em contato com tantas peças familiares evoca um tempo de muita saudade e nostalgia. “Enquanto as crianças se surpreendem, animadas com os instrumentos usados pelos avós, os mais velhos saem daqui chorando, muito emocionados”, revela a coordenadora, ressaltando que apenas de visitas aleatórias já receberam este ano milhares de pessoas, sem contar os estudantes que frequentam as oficinas da Casa da Cultura. Um dos destaques é a oficina Literarte que atende turmas de crianças e adolescentes no museu com o objetivo de reviver o passado a partir de brincadeiras, histórias e atividades artísticas.
No Museu de Paranavaí, as peças estão contextualizadas e organizadas por categorias. Há inclusive reproduções de espaços que remetem a um estilo de vida pautado pela luta. Exemplo é uma estrutura montada pela coordenadoria do museu para transmitir às novas gerações a sensação de viver em um rancho no período de colonização. Objetos pessoais e do cotidiano dispostos com esmero num ambiente rústico dão a tônica de uma peculiar fidelidade. Há instrumentos muito bem conservados usados por parteiras e pelos peões que trabalhavam na derrubata de mata.
O Museu Histórico, Antropológico e Etnográfico de Paranavaí funciona de segunda à sexta das 8h às 11h30 e das 13h30 às 17h. Entretanto, caso haja pedidos de abertura em outros dias e horários, Rosi Sanga deixa claro que basta agendar uma data. “A ideia do museu nasceu de uma parceria com a professora doutora Luciana Regina Pomari, do Departamento de História da Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (Fafipa). Desde então, fomos reconhecidos por todos os órgãos representativos nacionais e estaduais”, enfatiza Rosi. O Museu de Paranavaí também está em todos os catálogos e guias de museus do Brasil. Em 2007 e 2008, tiveram o acompanhamento da Coordenação do Sistema Estadual de Museus (Cosem) que ministrou cursos e treinamentos em Paranavaí. Para mais informações, basta ligar para (44) 3902-1049.
Site do Museu de Paranavaí: http://museuparanavai.webnode.com.br/