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Pesquisa revela que sete a cada dez consumidores desconhecem a real violência por trás da carne
Em uma pesquisa concluída esta semana pela World Animal Protection (WAP), sete a cada dez consumidores entrevistados, de um total de mais de dez mil de mais de dez países, informaram que se surpreenderam ao descobrir como os porcos são criados no sistema industrial. Eles classificaram a criação de animais para consumo como “perturbadora”, “errada” e chocante”. A pesquisa apresentou aos participantes detalhes da vida de animais que ainda muito cedo são enviados para os frigoríficos – como práticas em que porcas são mantidas em gaiolas, uso de antibióticos; e cortes de rabo, dentes e castração – às vezes sem anestesia.
Se por um lado, a pesquisa serviu para atender a interesses consideravelmente “bem-estaristas” em oposição à “violência excessiva” contra os animais criados nas chamadas fazendas industriais, exigindo “melhor tratamento” para os animais. Por outro, também serviu como alerta para o fato de que é muito comum as pessoas desconhecerem e não se preocuparem, de fato, com a cadeia de violência e crueldade contra seres não humanos criados para fins de consumo.
E como a maior parte da população mundial não tem condições de comprar os produtos de origem animal considerados “orgânicos” ou “menos antiéticos” por dois fatores – preço e área insuficiente para esse tipo de criação em escala mundial, a verdade é que o predomínio desse sistema é simplesmente um reflexo natural da alta demanda do mercado consumidor. Ou seja, quanto mais pessoas consumindo animais, maiores índices de violência e crueldade contra seres não humanos; já que a quantidade sempre favorece a permissividade.
Certamente, isso ajuda a endossar a ideia de que a mais promissora solução para a redução da violência contra seres de outras espécies que transformamos em alimentos e produtos é uma só – a abstenção desse consumo, não a sua redução ocasional ou sazonal; e menos ainda a busca de alternativas classificadas como “menos inclementes”, já que essas são, claramente, benéfica aos seres humanos (porque ameniza o peso na consciência), mas não aos não humanos que terão o mesmo implacável destino – a morte precoce.
Referências
A Páscoa e o dilema do consumo de carne
Para os cristãos, a Páscoa é uma data de extrema importância que celebra a ressurreição de Cristo três dias após a sua morte por crucificação. A Páscoa também é definida por teólogos do mundo todo como uma “esperança viva” atribuída por Deus. Ou seja, uma data propícia para a restauração da fé em um mundo mais auspicioso, justo e misericordioso.
É exatamente no período que antecede a Páscoa que os cristãos católicos se abstêm de “carne” – na realidade, quase sempre carne vermelha, e jejuam principalmente na Quarta-Feira de Cinzas e na Sexta-Feira Santa. No entanto, é usual o consumo de peixes. Mas não seria o peixe um ser carnoso? Assim como o boi, o porco, o frango?
De fato, e inclusive com níveis de senciência e consciência equiparáveis aos dos mamíferos, segundo o artigo “Fish Intelligence, Sentience and Ethics”, publicado na revista Animal Cognition em janeiro de 2015. Mas, claro, não precisamos de pesquisa alguma para concluir que um peixe sofre antes de morrer – basta testemunhá-lo se debatendo fora d’água enquanto é violentamente vitimado por asfixia.
Porém, é importante ressaltar tal fato porque exemplifica o equívoco da ideia de um “jejum de carne” nesse período – algo tão propalado por tanta gente que ignora o fato de que o peixe também é essencialmente um ser carnoso repleto de vida e interesse em não sofrer e morrer precocemente.
De acordo com o padre Paulo Ricardo, o jejum no período de Páscoa é uma prática plurissecular que mostra aos cristãos católicos a importância de uma vida de ascese. Ou seja, o jejum do consumo de animais, desconsiderando o peixe, é uma forma de se alcançar à virtude da temperança, “uma virtude moral que modera a atração pelos prazeres, assegura o domínio da vontade sobre os instintos e mantém os desejos dentro dos limites da honestidade.”
Mas se o “jejum de carne” representa algo em tão alta estima pelos cristãos, sendo apontado como uma grande virtude moral, por que não se abster completamente desse consumo, e não somente no período de Páscoa? Por que não incluir os peixes nessa abstenção fundamentada na virtude moral, já que eles também são animais? E como são sencientes, será que não inspiram a misericórdia da renovação da fé cristã? O exercício da violência contra outras espécies não é inclemente, em oposição ao desejo de um mundo justo e misericordioso?
Francisco de Assis, uma referência para milhões de católicos do mundo todo que se alimentam de animais, dizia que “todas as criaturas são nossos irmãos e irmãs”, e que eles não são seres com menos direito à vida do que os humanos – tanto que ele compartilhava suas pregações com pessoas e animais. Discursava que o seu amor por Deus se manifestava por meio de seu amor e respeito por criaturas humanas e não humanas.
Independente de seus hábitos alimentares, não seria uma mensagem de que não devemos endossar a violência contra outras espécies? Animais que domesticamos e tornamos vulneráveis para atender aos prazeres que não controlamos? À volúpia do paladar? Embora símbolo inquestionável do antropocentrismo no seio da civilização cristã ocidental, Tomás de Aquino escreveu na “Suma Teológica” que “o jejum [de ‘carne’] foi estabelecido pela Igreja para reprimir as concupiscências da carne, cujo objeto são os prazeres sensíveis da mesa.”
Mas não é isso que a maioria dos cristãos faz o ano todo, quando se alimentam desnecessariamente de animais? E, claro, para além da questão da virtude moral vaticinada pela Igreja Católica, sabemos que o consumo de carne não é essencial à vida; basta considerarmos a existência de veganos e vegetarianos saudáveis. Sendo assim, resta-nos uma conclusão – não há nada de nobre e equânime em comer animais, porque representa basicamente a primazia do paladar, ou seja, os “prazeres sensíveis da mesa”, que normalmente as pessoas não controlam por condicionamento, hábito e conveniência.
Como Tolstói rejeitou o consumo de animais
Se você já leu “O Primeiro Passo”, considerado na Rússia como um manifesto contra o consumo de animais, e que inclusive teve grande influência sobre o ressurgimento do vegetarianismo entre os povos eslavos do final do século 19 e início do século 20, você sabe que a influência de Liev Tolstói estava muito além do campo literário ficcional. Inclusive ele não raramente dizia que preferia mais ser lembrado por seus ensaios filosóficos e pela contrariedade ao consumo de animais do que por suas obras-primas como “Guerra e Paz” e Anna Karenina”.
No entanto, não foi por um despertar casual que ele decidiu parar de comer animais. Mas sim por uma série de eventos – talvez o mais importante deles quando recebeu em sua casa em Yasnaya Polyana, no Oblast de Tula, a visita do senhor William Frey em uma tarde de outono de 1885. Frey, ou Vadim Konstantinovich Geins, deu uma verdadeira palestra a Tolstói abordando desde os benefícios da dieta vegetariana até as implicações morais da exploração de animais. Inclusive essa conscientização sobre o sofrimento animal foi o que o motivou a escrever o ensaio “O Primeiro Passo”, publicado em 1892.
As ideias de William Frey foram trazidas dos Estados Unidos, onde ele viveu por 17 anos em comunidades protovegetarianas e vegetarianas nos estados do Missouri, Kansas e Oregon. Frey inclusive declarou a Tolstói que no decorrer da história da humanidade chegará um dia em que todos, seja por conscientização ou inevitabilidade, terão que adotar uma alimentação vegetariana. O escritor russo não se surpreendeu, mas apenas aquiesceu e exclamou:
“Sim, meu amigo, você está certo! Obrigado por suas palavras sábias e honestas. Certamente, seguirei o seu exemplo e abandonarei a carne.” Antes desse encontro, Tolstói já havia ensaiado a abstenção desse consumo. Segundo o livro “The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind”, de Janet Barkas, publicado em 1975, ele começou a reduzir o consumo de carne logo depois de escrever “Confissão”, de 1879, e então foi mudando a sua alimentação até adotar definitivamente uma dieta que não incluía o consumo e a exploração de animais.
Em 1882, Tolstói já havia descrito em um de seus diários o seu interesse em se alimentar apenas de kasha, geleias e conservas. Além do escritor, suas filhas Tanya e Masha também adotaram imediatamente uma alimentação livre de carne após os relatos bem convincentes de Frey argumentando que é possível viver muito bem consumindo apenas cereais, frutas e castanhas. Segundo a obra “Vegetarianism in Russia: The Tolstoyan Legacy”, de Ronald D. LeBlanc, de 2001, outra pessoa a quem é creditada a conversão de Tolstói ao vegetarianismo é o seu discípulo e amigo Vladimir Chertkov, que se tornou vegetariano quando viveu na Inglaterra nos anos de 1884 e 1885, e que levou à Rússia tudo que encontrou relacionado ao tema. Naquele tempo, a literatura vegetariana inglesa ou voltada aos direitos animais era publicada na Inglaterra pela Humanitarian League, fundada em 1891 pelo pioneiro dos direitos animais Henry Salt, o que curiosamente revela a estreita relação entre os humanitaristas e os vegetarianos da época.
O livro “A Dieta Humana no Presente e no Futuro”, escrito pelo cientista Andrey Nikolaevich Beketov e lançado em 1878, também teve considerável influência sobre Tolstói. Na obra, Beketov apresenta razões morais e psicológicas sobre o porquê seres humanos na sua progressão de um estado primitivo para um estado verdadeiramente civilizado devem se abster do consumo de animais.
Em 1890, Tolstói escreveu o prefácio de um panfleto sobre os males da caça – intitulado “Um Passatempo Maligno: Reflexões Sobre a Caça”, publicado por Chertkov em 1890. No texto, Vladimir Chertkov argumenta que não é mais necessário, em termos de evolução, o ser humano ter que matar animais para se alimentar. “A matança de animais não é mais uma forma natural de luta pela existência, mas sim um retorno voluntário a um estado primitivo e bestial.” Segundo Chertkov, a caça instiga no ser humano civilizado instintos animais que a consciência humana superou há muito tempo. Esse posicionamento foi endossado por Tolstói.
O escritor russo passou a interpretar que o ato de se alimentar de animais é imoral na medida em que envolve a realização de um ato contrário ao sentimento moral, ou seja, a matança. LeBlanc narra que um dia a tia de Tolstói se juntou a eles para o jantar e encontrou uma faca e uma galinha viva sobre a cadeira. O escritor justificou que sabia que ela gostaria de comer galinha, mas que nenhum deles a mataria, assim delegando a ela o ato de matar o animal se quisesse comê-lo – o que naturalmente ela não o fez.
“Para uma senhora de classe alta de seu tempo, isso passou perto de um escândalo”, avalia Ronald D. LeBlanc. Porém, Tolstói era pacífico e tais ações tinham apenas a intenção de conscientizar, não de ofender. Inclusive ele sempre permitiu que seus familiares, amigos e conhecidos tirassem as suas próprias conclusões a respeito de seu posicionamento em relação ao não consumo de animais.
Pouco tempo antes de falecer, Tolstói disse que preferia ser celebrado por suas obras voltadas à sua filosofia de vida e filosofia moral, o que incluía a sua defesa de que os animais não humanos também têm direito à vida, do que pelos seus romances. Claro que o alcance de seu trabalho como romancista o levou muito mais longe em popularidade, mas de alguma forma a sua filosofia teve um impacto muito significativo. Exemplos?
“O Primeiro Passo”, que deu origem às bases do vegetarianismo ético russo e a sua obra “O Reino de Deus está em vós”, de 1894. Esta segunda traz uma abordagem espiritual não dogmática e que teve grande influência sobre a juventude de Gandhi, tanto que depois o líder pacifista fundou nas imediações de Joanesburgo, na África do Sul, a Fazenda Tolstói. Gandhi, que foi influenciado pelos ensaios de não violência de Tolstói, que incluía animais humanos e não humanos, se considerava um tolstoiano.
Referências
Barkas, Janet. The Vegetable Passion: A History of the Vegetarian State of Mind. Scribner; First Edition (1975).
LeBlanc, Ronald D. Vegetarianism in Russia: The Tolstoy(an) Legacy. The Carl Beck Papers in Russian and East European Studies. No. 1507 (2001).
Gregory, James. Of Victorians and Vegetarians: The Vegetarian Movement in Nineteenth-century. I.B.Tauris (2007).
Alston, Charlotte. Tolstoy and Vegetarianism (junho de 2014).