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Sete pãezinhos e um fujão

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Peço sete pães e aguardo a atendente selecioná-los na sua rotineira cordialidade (Foto: Reprodução)

Na padaria do mercado, peço sete pães e aguardo a atendente selecioná-los na sua rotineira cordialidade. De repente, escuto um som fofo e morredouro na sua sutilidade – do tipo “ploft” suave. O pãozinho agoniza no chão. Gerado há pouco tempo, já não tem mais razão de ser, caído sem chance de se restabelecer. Posso ver nos olhos da atendente que ela discorda. Me observa de soslaio, esperando apenas uma distração e, quem sabe, numa plena desatenção, uma oportunidade de enfiar no saco o “pãozinho sujo”, privado da própria vocação.

Não tiro os olhos dela. Ela reage virando as costas para mim, e manipula o saco de pão com uma astúcia que parece sem fim. Não desiste! E meus olhos continuam mirando-a. Escuta meus passos. Sei disso porque vejo suas orelhas vibrando e seus olhos titubeando. Estamos mais próximos do que antes. E minha sombra desarmoniza suas intenções. Ela disfarça por mais um ou outro segundo, sorri em minha direção, e encosta o pãozinho na parte externa do saco marrom.

Há um ou dois minutos, ele era igual aos outros. Ninguém pode negar, mas foi maculado, e aos seus irmãos já não pode se juntar. Que assim seja feita a justiça do alimento! Juro que por um segundo vi um traço que parecia um sorriso. Um pão sorrindo? Impossível! Ou não? A moça da padaria me entrega o saco de pão quente. Ruborizada, me dá um último sorriso, sem velar o ar de derrota.

Quando abro o saco, e, descuidado, inalo a fumaça que me esbraseia o salão, vejo sete irmãozinhos parifomes repousando. Do outro lado, o pãozinho fujão se esconde de baixo de um segundo balcão, e desaparece em um buraco do tamanho de minha mão.

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Written by David Arioch

April 9th, 2017 at 12:49 am

A barba

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Nunca imaginei que passaria por situação tão imprevisível e desconfortável

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Ela voltou para casa. Ao lado da cama, havia um pente e uma série de produtos

Acordei e continuei deitado na cama, com sensação estranha. Mesmo que eu não o visse refletindo no teto, notei meu rosto menor. Quando encostei o polegar e o dedo indicador da mão direita no queixo, estremeci. Ele estava liso. Não havia nenhum fio da minha barba volumosa, fechada e preta. Saltei da cama e corri até o banheiro, sem sentir a barba raleando o peito nu.

Diante do espelho, meu rosto parecia tão pequeno. “Não! Este não sou eu! Não está certo! O que aconteceu?” Até minha cabeça tinha encolhido. Cabeça de pombinha, cabeça de alfinete – julguei-me. E para piorar, rejuvenesci pelo menos dez anos, o que me incomodava sobretudo.

Sem pelos, o rosto lucilava tanto que precisei fechar parcialmente os olhos e me proteger com as palmas das mãos em direção ao espelho. Nunca imaginei que passaria por situação tão imprevisível e desconfortável. Saí do quarto e bati a porta. Senti a brisa tocando a pele desacostumada com a ausência de pelos.

Minha face estava vulnerável, extremamente sensível, desprotegida. Enleado, fui ao banheiro e lancei um pouco de água sobre o rosto. “Como é estranho perceber a água tocando a pele com tanta facilidade.” Escovei os dentes e voltei para o quarto. Sentado na cama, pensei, sem velar melancolia.

Definitivamente não fiz a barba na noite anterior. Nem me aproximei de qualquer tipo de lâmina ou barbeador. De onde surgiu a face lisa, como de alguém que nunca teve pelos faciais? Fiquei irritado, crente de que algum cobiçoso tivesse me furtado os pelos na calada da noite.

Lembrei dos invejosos desbarbados, que não eram poucos. Sempre havia um ou outro em cada esquina, observando de soslaio a minha barba à altura do peito, tremulando com os afagos da aragem. Mostravam os dentes fingindo cordialidade. Patifes! Devem ter-se unido na noite passada.

Me debrucei no chão e comecei a observar atentamente o piso, tentando encontrar pelo menos um fio de barba. Não havia nada. Nada! Nada! A conspiração foi tão bem planejada que não restou sequer um vestígio. “Como? Como? Como? Que pesadelo terrível!”, monologuei, desconcertando o sobrecenho.

Vesti calça jeans, camiseta, par de tênis e saí às ruas na tentativa de amenizar a agitação que me consumia. O céu persistia claro e o sol espalhava sua luz sem reservas. Um belo dia. Para minha surpresa, amigos e conhecidos não me reconheciam. Abordei um camarada, ele franziu a testa, cuspiu no chão e esbravejou que nunca me viu.

— Afaste-se, senhor, afaste-se ou chamarei a polícia – advertiu outro.

Tudo bem. Cruzei a Rua Marechal Cândido Rondon e entrei no Banco do Brasil da Rua Getúlio Vargas. Atravessei a porta com detector de metais e, como sempre fiz, me aproximei do segurança para cumprimentá-lo. O homem se esquivou e ameaçou me golpear.

— Nunca mais se aproxime desse jeito! Nunca mais, senhor! Eu poderia machucá-lo – declarou.

Sem dizer palavra, recuei, peguei uma senha para atendimento no caixa e sentei em uma poltrona azul, observando o painel eletrônico. Preocupado com o tempo, abri minha carteira, mas não encontrei o cartão do banco. “O que vou fazer? Mais tempo perdido, francamente…” Ansioso e irritadiço, respirei profundamente e mirei meus olhos num ponto fixo em um pequeno espaço transparente da divisória que separa a clientela dos guichês do caixa.

Não acreditei no que vi. Condenei-me à insanidade. Algo peludo e esguio na sua pequenez caminhou do outro lado da divisória carregando um cartão alaranjado. Não tinha mãos humanas, mas improvisava dedos com os próprios pelos. Quando percebeu que eu o observava, adiantou-se numa correria fremente por entre as pernas do segurança. Era como um pequeno rei das balizas.

Bastardo! Ingrato! Desgraçado! Seu pequeno filho da puta! Como pôde fazer isso comigo? – gritei dentro da minha própria consciência, sentindo comichão na boca.

Era a minha barba! Na saída do banco, balançou o meu cartão e correu em disparada com seus pés pelosos que mantinham higiênica distância do chão, como se flutuassem. Com receio de chamar atenção, ou com medo do constrangimento de ser ignorado, caminhei disfarçadamente. Lá fora, minha barba corria com ligeireza, quase desaparecendo na esquina.

Desesperado, levei as mãos à cabeça e vociferei:

— Parem! Parem essa barba aí na esquina! Olhem! Parece um homenzinho felpudo! Mas não é! Está fingindo! É um ser dissimulado! É uma barba! Não deixem esse bandido de pelos fugir! Ele furtou meu cartão! Seu pilantra maldito!

Quase ninguém me ouviu. Os poucos que assistiram meu clamor, gargalharam e gritaram: “Mais um bêbado nesta cidade! Sai daí, seu louco! Era só o que faltava! Estou de saco cheio desses estrupícios!” Um deles chamou uma viatura da polícia enquanto eu corria pela calçada. Perto de encostar minhas mãos na barba fujona, senti alguém me puxar pelo braço.

O aroma da barba se desvaneceu como a mais efêmera das ilusões. Travessa, ela parou de correr e começou a caminhar lentamente, chacoalhando meu cartão e fazendo troça da minha situação. Antes de entrar na Casa do Cabeleireiro, esticou as extremidades do longo bigode, empinou a bunda peluda e a balançou diante da soleira.

Minha vontade era esganá-la e afiná-la a socos e pontapés, mas eu não poderia fazer isso com a minha barba. Eu precisava dela inteira. Dela? Não sei! Como definir um substantivo feminino de forma masculina? Tanto faz! Fui levado para a delegacia. Fizeram o boletim de ocorrência, qualificando-me como infrator, perturbador do sossego. Encontrei três colegas de trabalho e, mais uma vez, não fui reconhecido por ninguém.

— Não, nunca o vi. Conheço uma pessoa com esse nome, mas não é ele. Deve ser mera coincidência – comentou um dos camaradas.

Paguei a fiança e fui liberado. Sem nada a perder, narrei ao investigador tudo que aconteceu naquela manhã. Ele recomendou uma consulta com seu cunhado, um psiquiatra. Enfezado, voltei para casa reconhecendo a derrota e decidi escrever uma história sobre o desaparecimento da minha barba. O jornal não quis publicá-la, qualificando-a como inverossímil. Tudo bem. Me contentei em publicar uma nota nos classificados online.

Procura-se barba preta, volumosa e fechada. Tem perfil independente, forma masculina, porte atlético, andar espaçoso, bigode alongado, tipo handlebar, e oculta entre os pelos um cartão alaranjado do Banco do Brasil. Paga-se boa recompensa.
Somente os mais ardilosos oportunistas responderam ao anúncio, trazendo-me barbas de terceiros e das mais variadas cores e formas. A maioria, provavelmente colhida do chão das barbearias.

Ao final da tarde, desisti de procurá-la. Na manhã seguinte, quando levantei e cocei o queixo, corri em direção ao espelho do banheiro. Apenas sorri. Ela voltou para casa. Ao lado da cama, havia um pente e uma série de produtos. Pois é. Deveria ter cuidado mais da minha barba.





Written by David Arioch

October 16th, 2016 at 2:44 pm