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Perica
Quando eu tinha dez anos, meu pai me levou para a casa de seu amigo Perica, um senhor já idoso que há mais de 20 anos vivia sozinho no campo com sua biblioteca e seus tonéis. Cheiro de papel e cheiro de vinho, de um lado, do outro, por todos os lados. Perguntou se eu bebia. Respondi que não, que o álcool é nojento. Ele achou engraçado.
“Mas lê pelo menos?”, Sim, leio, respondi. “Então tudo bem! Não esqueça que a morte precoce acontece quando não alimentamos a vida, e sim nos alimentamos dela”, disse. Certo, comentei. Perica foi meu mentor nas férias de verão. Era um sujeito incomum. Bebia e lia, lia ou bebia, e lia e bebia. Mas nunca o vi bêbado. No último dia antes de voltar para casa, perguntei como era possível ele tomar tanto vinho e nunca ficar bêbado.
“Na realidade, eu não bebo.” Como? “Isso, não bebo.” Mas esse cheiro, esses tonéis, o copo na mão?, questionei. “Eu te induzi a acreditar nisso a partir da sua chegada, da nossa conversa, do primeiro dia. O cenário ajuda, mas o que eu trazia no copo nunca era vinho. Não cheguei a produzir vinho, meus pais sim. O que você acha disso?”
Acho que você está me enganando, comentei. “Não…isso seria desnecessário e imprudente.” Realmente havia um copo na mão de Perica, mas não com vinho, e os tonéis, de fato, traziam aroma de vinho, mas era simplesmente sinestesia. “A minha verdade, a sua verdade, às vezes não é fácil distinguir se a mente se liberta para a realidade ou para a criatividade ou constrói a sua própria grade”, disse Perica.
“Você faz mais alguma coisa além de musculação?”
Um dia, na academia, um camarada me perguntou se eu fazia mais alguma coisa além de musculação. Achei a pergunta um tanto quanto estranha, mas tudo bem:
— Sim, eu trabalho.
— Sério mesmo?
— Verdade.
— Você trabalha com que?
— Com jornalismo, sou jornalista.
— Ora, nunca imaginaria.
— É? Por quê?
— Por causa da sua aparência. E também achei que você ficasse horas na academia.
— Não. Na realidade, meu treino tem duração de 40 a 50 minutos, às vezes chegando a uma hora. É o suficiente pra me exercitar e ter um shape razoável.
— Realmente não é muito tempo.
— Sim, o dia tem 24 horas, então me resta um bom tempo pra me ocupar com outras atividades, não?
— É…
“Você não é o Tora-Tora?”
Hoje de manhã, enquanto eu estava aguardando a minha vez no banco, um cara se aproximou.
— E aí, rapaz — ele disse.
— E aí — respondi.
— Tudo bem?
— Sim e você?
— Também. Então, por que você não apareceu na Fazenda Santa Efigênia no sábado?
— Acho que está me confundindo, camarada.
— Você não é o Tora-Tora?
— Como?
— Tora-Tora!
— Não, cara. De modo algum. Foi um engano.
— Ah, me desculpe. É que vocês são parecidos. Na realidade, a barba. Não sei falar o nome dele, nome estranho, então demos esse apelido. Veio pra cá pra trabalhar como lenhador.
— Entendo.
— Então me desculpe.
— Sem problema.
— Mas, olhe, você tem cara de quem sabe cortar lenha. Se um dia quiser experimentar.
— Hum…é lenha de reflorestamento? Se não for, minha religião não permite.
— Qual é a sua religião?
— Sou vegano.
— Já ouvi falar disso. É tipo uma seita, né?
— Sim…
O cara riu; eu também. Nos despedimos.
Você é um daqueles verdinhos?
Na fila do mercado, eu, uma camiseta verde do Type O Negative e uma boina. Uma senhorinha se aproximou e se posicionou atrás de mim aguardando a vez. Expliquei que ela não precisava ficar na fila porque pela idade ela tem preferência no caixa especial.
— Não, filho, eu gosto de ficar aqui. Tenho saúde e não tenho pressa.
— Que bom — respondi com o meu típico sorriso tímido.
— Filho, olhei pra você e pra sua cesta, diferente o que vi, admito. Você é um daqueles verdinhos?
— Como?
— Um daqueles verdinhos.
— Me desculpe, mas não sei, senhora. O que é um verdinho?
— Que não come carne, leite, ovo…
— É por aí. Acho que vou um pouquinho além inclusive.
— Olhe só, que honra! Um verdinho de verdade!
— É, acho que sim — comentei, entregue a um sorriso encalistrado.
— Olho esses carrinhos e cestas, só consigo pensar em uma coisa. Você sabia que antigamente não existia toda essa comilança de carne? Muita gente do meu tempo, criada em sítio, chegava a ficar até um ano sem comer carne. E vivia bem, realmente bem, com muita energia, lavourando.
— Isso é bom.
— Papai e mamãe deixaram a Polônia durante a guerra e eles viram tanto sangue e morte naquele lugar que quando chegaram ao Brasil falaram que iriam criar os filhos longe de qualquer tipo de morte. Dito e feito. Tenho 78 anos e não como carne desde os cinco anos quando chegamos aqui em 1944.
— Que história interessante. Se a senhora quiser me contar um dia em detalhes, posso transformar em alguma coisa.
— Quem sabe — ela respondeu sorrindo.
— Seria muito legal — comentei.
— Olhe, o conteúdo da minha cestinha é parecido com o da sua. Estamos apenas em um espectro diferente de gerações, pelo menos nesta vida — disse sem desvanecer o sorriso.
— Não duvido — comentei sorrindo.
— É, sempre enxergo um verdinho de longe.
— Por causa da minha camiseta? — questionei com um sorriso enviesado.
— Não — respondeu rindo.
— Hum…
— Meu pai dizia que os nossos melhores hábitos são sempre translúcidos diante dos nossos olhos e dos olhos dos outros quando existe boa vontade. Claro, desde que nós e os outros queiramos enxergar — explicou a senhora antes da despedida.
“Vixi, mano! Vegano?”
Voltando para casa, encostei o carro rente ao meio-fio e atendi uma ligação. De repente, um cara em outro carro, e do outro lado da rua, esticou o pescoço para fora. Ele parecia levemente (ou não) embriagado.
Onde você vai?
Saindo do Teatro Municipal, passei em uma loja de conveniência. Na saída, observei uma coruja que me assistia. “A noite é sua”, disse a ela.
— Onde você vai? — perguntou uma moça dentro de um carro estacionado.
— Quê? — respondi.
— Onde você vai.
— Vou pra casa.
— Por quê?
— Porque sim.
— Quer carona?
— Não, obrigado. O meu carro está logo ali — expliquei.
— Venha aqui.
— Não entendi.
— Rapidinho, querido.
— Você me conhece?
— Claro.
— Como?
— Já ficamos juntos há algum tempo.
— Acho que não.
— Ficamos sim.
— Não creio, tenho boa memória.
Fiquei em silêncio.
A moça abriu a bolsa, tirou o celular e mostrou algumas fotos.
— Não entendi.
— Nós lá em casa.
— Quê?
— A nossa festinha.
— Tudo bem, mas não sou eu na foto.
— Isso não vem ao caso.
— Como não? Você disse que sou eu.
— Mas é você. Tenho mais uma coisa pra te mostrar.
— Hã?
— Que isso?
— É seu — afirmou segurando um pequeno tufo de barba que mais parecia um pedaço de Assolan envernizado.
— Isso não é minha barba.
— Claro que é, querido. Você está me chamando de mentirosa?
— Não, mas por que está guardando isso?
— Lembrança.
— Hum…
— Tá. Então, vamos tomar alguma coisa?
— Não posso. Tenho que acordar cedo.
— Nossa, você é chato, hein? Por acaso, você é antissocial?
— Sinceramente? Acho que não tenho como negar.
Silêncio.
— Você pareceu bem comunicativo e desinibido aquele dia em casa. Quando você dormiu, cortei um pedacinho da sua barba. Nem percebeu, né?
— Tenho certeza de que não sei onde você mora.
— Eu, você, Cláudia e Roberta. Tem certeza que não se lembra?
— Quê?
— Vai ficar de palhaçada? — insistiu a mulher.
— Não, mas preciso ir. Me desculpe, mas não sou quem você imagina.
— Tudo bem, querido. Mas vou continuar de olho em você.
— Você é muito gentil. Tenha uma boa noite.
Sem olhar para trás, entrei no carro e minutos depois me dei conta de que eu estava sendo seguido. Mantendo os vidros fechados, estacionei e observei a aproximação de um carro pelo retrovisor. Alguém cutucou o vidro com as pontas dos dedos.
— Boa noite, desculpe o incômodo. Você pode me dizer qual é o melhor caminho para o Jardim Oásis?
Como você entrou aí?
Na semana passada, andando perto da Catedral, ouvi uma voz estridente.
— Ei, você aí.
Tive que olhar várias vezes para ter certeza de onde vinha aquela voz.
— Aqui, mano. Cola aqui.
— Que isso? Como você entrou aí?
— Como cheguei aqui não interessa, parceiro. A verdade é que vamos ficar rico hoje.
— Quê?
— Bora caçar um tesouro. Tem coisa boa aqui dentro. Chega aí.
— Não, obrigado. Pode ficar com o tesouro pra você. Preciso trabalhar.
— Trabalhar pra que, mano? Você é bobo?
— Agradeço a consideração, mas vou indo.
— Azar o seu, louco.
O sujeito estava dentro de um bueiro, e entre as grades eu conseguia ver apenas sua testa lambuzada, sua boca se movendo e seus dedos cobertos de fuligem.
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Você anda falando com a minha mulher no Facebook
— Você anda falando com a minha mulher no Facebook.
— Depende, falando o que?
— Conversando, ora.
— Imagino que se for verdade, seja uma conversa normal.
— Não é pra ter conversa normal com ela.
— Não?
— Não.
— E?
— E aí que não é pra falar com ela. Conversa de nenhum tipo.
— Senhor, converso com inúmeras pessoas diariamente. Até porque o meu trabalho é escrever. Se escrevo e publico, isso atrai pessoas, e pessoas conversam.
— Mas não com minha mulher. Não é pra falar com ela.
— Onde o senhor conseguiu o meu número?
— Isso não vem ao caso.
— Não fale com minha mulher.
— Ok.
— Tá avisado.
— Sem problema. Obrigado pela gentileza de me ligar e tenha uma boa noite.
— Não fale com minha mulher, viu?
— Uhum.
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“Tio, você já deve ter matado muita gente”
Há algum tempo, eu estava na Oficina do Tio Lu, na Vila Alta, na periferia, quando um garotinho veio conversar comigo. Curioso, sorria e não tirava os olhos dos meus braços.
— Tio, você já deve ter matado muita gente.
— Por que você acha isso?
— Por causa do tamanho do seu braço, ué. É muito forte.
— E você acha que braço forte é pra matar pessoas?
— Se não é pra matar, é pelo menos pra bater, né?
— Não, claro que não.
— Ué, não?
— Não…
— Ué, pra que então?
— Pra abraçar.
Ele ficou em silêncio me olhando.
— Não é melhor?
— É sim… — respondeu com um sorriso amarelecido.
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“Você é um ladrão de ar, um ladrão!”
No banco, enquanto eu aguardava a minha vez, um senhor perscrutou um rapaz:
— Você não tem ideia do mal que está fazendo.
— Como?
— Isso mesmo!
— Isso mesmo o que?
— Você inspira e respira alto, com uma intensidade absurdamente desconfortável e desrespeitosa. Isso é ultrajante!
— Como?
— Isso mesmo!
— Isso mesmo o que?
— Você não acha que deveria inspirar e respirar um pouco menos? Não se dá conta de que está me roubando um pouco de ar? Não só meu, mas de todos que estão próximos de nós.
— Respiro normalmente. De boa.
— Não mesmo. Sinto que o ar não está fluindo corretamente desde que você se aproximou. Você é um ladrão de ar, um ladrão! — bradou o homem, chamando a atenção das pessoas mais próximas.
Assustado, o rapaz se levantou e caminhou até o outro lado do banco, temendo que o homem se aproximasse.
O sujeito de meia-idade ainda o assistia à segura distância com um olhar reprovador, ajeitando os óculos sobre o nariz. Cutucou o vizinho e disse:
— Agora ele vai roubar o ar daqueles outros infelizes, é um tremendo ladrãozinho de ar.
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