David Arioch – Jornalismo Cultural

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À noite

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À noite, quando já não precisava mais ouvir ninguém, gostava de deitar no chão e observar o teto. Imaginava que se abria e permitia que todos os desconfortos do dia fossem purificados pela vontade. Pássaros, morcegos e corujas se acomodavam na curta distância lá de cima. Ninguém ansiava por mais proximidade. Parecia suficiente. Observar, sentir e inferir. Não era preciso compreender.

Seria presunção acreditar que somos seres de contemplação. “O que há para ser contemplado?” Mas não importava tanto, para ninguém. Bastava estar ali, diante de um buraco retangular que fazia um pedaço de céu enuviado parecer um chapéu com pontinhos móveis. Imaginava como seria carregá-lo na cabeça – indo de lá pra cá, de cá para ali.

“E se algo muito pesado, intenso e célere voasse em direção à minha cabeça? Sobreviveria? O que restaria?” Depende, seria um avião, um bicho ou um humano voador? São tantas possibilidades plausíveis ou impensáveis nas limitações da consciência – coisas que já se chocam contra a cabeça na ausência do chapéu de céu.

E se, aproveitando o silêncio tardio, eu corresse o máximo que pudesse e o chapéu se transformasse em um sumidouro? Balançaria a cabeça com força e, em resposta a cada comando, faria com que engolisse toda a indignidade ao meu alcance. Quando já fosse inalcançável, cortaria um pedaço do chapéu e entraria eu mesmo dentro do sumidouro para ressurgir em outros lugares.

Vagaria pela breve eternidade da vida, realocando, sem aparecer, pessoas, animais e coisas. Realmente, há algo de muito grave e errado em um mundo com tantas coisas fora do lugar. Depois voltaria ao chão e deitaria outra vez. O céu poderia se abrir ou não. Os pássaros, morcegos e corujas já não estariam na curta distância lá de cima, e eu poderia acordar ou não.