David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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O valor de uma promessa

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A história do homem que viaja sete léguas com uma cruz nas costas para cumprir um voto

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Zé carrega a cruz em retribuição a cura do seu burro (Foto: Reprodução)

Lançado em 1962, O Pagador de Promessas, do cineasta Anselmo Duarte, é um dos maiores clássicos do cinema nacional. A obra inspirada na peça de Dias Gomes conta a história de um homem do campo que viaja sete léguas (42 quilômetros) com uma cruz nas costas para pagar uma promessa.

No filme, Zé do Burro (Leonardo Villar) chega à cidade machucado pelo peso da cruz sobre o ombro, resultado de um voto que fez à Santa Bárbara para que o seu fiel companheiro, um burro, fosse curado de uma grave enfermidade. Mas o grande problema surge quando o agricultor tenta entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz, sendo impedido pelo Padre Olavo (Dionísio Azevedo) ao saber que Zé fez uma promessa à santa em um terreiro de candomblé.

Tenta justificar o episódio falando que não havia nenhuma igreja ou capela próxima. Intransigente, o sacerdote não aceita a explicação de Zé e pede que o homem saia das imediações do templo. O pagador de promessas se recusa e decide ficar na frente da igreja até conseguir entrar, honrando o compromisso feito à Santa Bárbara.

Aproveitando-se da inocência do matuto homem do campo, uma infinidade de pessoas tentam se aproximar com as mais diversas intenções. Um exemplo é o inescrupuloso personagem Bonitão, um cafetão que finge ajudar Zé apenas com a intenção de conquistar Rosa, a mulher do pagador de promessas.

Outra figura digna de destaque é o jornalista interpretado por Othon Bastos que explora com sensacionalismo e inverdades a figura de Zé como um revolucionário messiânico. A repercussão da publicação atrai visitantes, líderes religiosos, patrocinadores oportunistas e até mesmo a polícia que começa a encarar o produtor rural como um contraventor e agitador social.

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

Filme apresenta o contraste entre símbolos religiosos europeus e africanos (Foto: Reprodução)

É trágica e cômica a cena do comerciante estrangeiro pedindo para o fotógrafo do jornal mostrar ao fundo o seu comércio enquanto em primeiro plano aparecem Zé, a cruz e Rosa. Anselmo Duarte aborda com riqueza visual e informacional a relação conturbada entre o catolicismo e as religiões afro-brasileiras, avaliadas pelo padre como “práticas demoníacas”.

A beleza de O Pagador de Promessas está na simplicidade, objetividade e linguagem canhestra do protagonista, alheio ao materialismo e malícias da modernidade. Em alguns aspectos, o filme lembra a crítica social das fases mexicana e espanhola do cineasta Luis Buñuel e também o cinema neorrealista de Pier Paolo Pasolini, principalmente a passagem da mercantilização da fé do clássico Uccellacci e Uccellini.

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

O pagador de promessas ostenta valores maiores que a própria vida (Foto: Reprodução)

No início da obra, símbolos religiosos europeus e africanos se misturam no mesmo ambiente, evocando uma ideia de unidade da fé sustentada em amor incondicional e livre de preconceitos. Ao mesmo tempo, a percussão arcaica e dissonante da cena introduz o espectador ao caos que ainda vai ser vivido por Zé do Burro. Outra característica marcante do filme é o contraste entre o barulho e o silêncio total, além da aridez do cenário e a fotografia angustiante que em vários momentos aspira ao desconforto e ao derrotismo.

O Pagador de Promessas é uma obra antológica que apresenta um personagem ímpar com valores maiores que a própria vida. Extremamente atual, o clássico discute assuntos ainda controversos como o preconceito religioso, reforma agrária e má distribuição de renda. O elenco conta com outros grandes nomes do cinema e da TV nacional como Glória Menezes, Geraldo Del Rey, Roberto Ferreira, Norma Bengell e Antonio Pitanga.

O filme de Anselmo Duarte foi o grande vencedor do Festival de Cannes de 1962, recebendo a Palma de Ouro, título jamais conquistado por outra película brasileira. Também foi premiado em duas categorias no San Francisco International Film Festival, onde recebeu o Golden Gate, além de outras premiações no Festival de Cartagena, na Colômbia, e uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1963.

O declínio econômico de Paranavaí

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Quando o desenvolvimento foi comprometido pela monocultura e ausência de políticas públicas

Município se tornou símbolo de progresso nos anos 1950 (Acervo: Fundação Cultural)

A história mostra que Paranavaí, na região Noroeste, poderia ser um dos municípios mais importantes do Paraná, no entanto, em função da falta de diversificação econômica e ausência de políticas públicas para o setor agrícola, a cidade entrou em declínio a partir de 1970.

Paranavaí teve um progresso exemplar até o início da década de 1960. À época, a cidade era vista como símbolo de progresso no Paraná, uma imagem que ganhou solidez em 1956, quando uma pesquisa da Associação Brasileira dos Municípios apontou Paranavaí como uma das cinco cidades com maior índice de desenvolvimento do país.

As consequências humanas

Contudo, como tinha um perfil essencialmente agrícola, baseado na monocultura cafeeira, a ex-Fazenda Brasileira experimentou um declínio sem precedentes. As primeiras geadas que castigaram as lavouras da região de Paranavaí e atingiram profundamente a economia local foram registradas em 1962 e 1964, de acordo com informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil. “Na segunda geada, o prejuízo foi tão grande que tive que vender meu sítio. A partir do acontecido, nunca mais quis mexer com a cafeicultura”, revelou o pioneiro paranaense Orlando Otávio Bernal.

Para piorar, a intempérie voltou a devastar as propriedades do Noroeste Paranaense em 1969, destruindo pelo menos 80% da produção cafeeira regional. “Quando meu pai viu aquela camadinha fina de gelo sobre o cafezal, ele entrou em pânico. Nunca o tinha visto chorar daquele jeito, jogado sobre um pé de café. Perdemos tudo, não deu pra recuperar nada”, confidenciou o empresário Fabrício Gomes Soares. Dias depois, a mãe de Soares flagrou o pai se preparando para ingerir um rodenticida conhecido como chumbinho. Felizmente, conseguiu evitar o pior.

Em 1964, a economia local foi castigada pela geada (Acervo: Ordem do Carmo)

A mesma sorte não teve o pai da aposentada Catalina Prado Ruiz que tinha uma propriedade rural às margens da Rodovia BR-376. “Ele contraiu muitas dívidas com as geadas anteriores, então quando veio a mais forte, em 1969, não aguentou”, enfatizou Catalina com a voz calma e pausada, sem velar os olhos marejados. O homem foi encontrado morto, após um ataque cardíaco fulminante, agarrado à base de um cafeeiro.

O agricultor capixaba Orlando Brás de Mello, radicado em Paranavaí desde 1957, preferiu não citar nomes, mas contou que teve vários conhecidos que não superaram os prejuízos, se endividaram e cometeram suicídio. “Meu cunhado quase enlouqueceu. Ele pôs fogo no cafezal e num barracão enorme onde costumava estocar o café”, complementou.

As consequências econômicas

Como consequência econômica das geadas, o preço do café subiu, surgindo um ciclo de especulações que pareceu infindável. “A situação era preocupante demais, muito triste. Quase ninguém tinha ânimo pra continuar porque aqui a gente já tinha outro problema grave que era o solo empobrecido”, relatou o pioneiro cearense João Mariano, se referindo também ao surgimento das erosões hídricas que se intensificaram a partir dos anos 1960.

Com a queda da cafeicultura, que preservava um caráter familiar na região Noroeste do Paraná, houve grande abertura para a formação dos latifúndios, o que intensificou mais ainda as desigualdades sociais. Logo as lavouras começaram a ser substituídas por pastagens e, como a pecuária absorveu pouca mão de obra, milhares de trabalhadores rurais ficaram desempregados. “Que eu me lembre, quando deixei o trabalho na lavoura e não consegui nada na área urbana de Paranavaí, pelo menos da fazenda onde eu trabalhava e de outra propriedade vizinha mais de 200 pessoas foram embora pra Maringá”, disse o taxista Jurandir Romano de Paula.

Índice populacional estagnou nos anos 1970 (Acervo: Ordem do Carmo)

No Noroeste do Paraná, entre as cidades mais prejudicadas pela intempérie estavam Paranavaí, Tamboara, Paraíso do Norte, Nova Aliança do Ivaí e Mirador que em 1960 representavam 1/3 de toda a produção agrícola regional, conforme registros do extinto Instituto Brasileiro do Café (IBC). Em 1970, a região de Paranavaí somou 336 mil habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dez anos depois, em 1980, perdeu quase 50 mil habitantes, somando 288 mil moradores.

Foi um retrocesso para a região que em 1960 contou com mais de 307 mil habitantes. “Em 1970, tive que fechar minha mercearia porque fazia mais de seis meses que estava trabalhando no vermelho. Teve mês que não vendi nada porque ninguém tinha dinheiro. Nem conseguia mais honrar os compromissos com fornecedor”, destacou o ex-comerciante Geraldo Marques.

Em 1980, a produção cafeeira do Noroeste Paranaense foi quase reduzida pela metade, caindo de 30 milhões de cafeeiros para 16 milhões. O solo frágil e comprometido pela falta de técnicas adequadas de plantio, manejo e cultivo fez com que o milheiro de pés de café rendesse apenas 27 sacas, quantia muito inferior as 150 da década de 1960, revelou estatísticas do extinto IBC.

Do melhor ao pior índice de desenvolvimento

Orlando de Mello frisou que a lavoura era o “carro-chefe” da economia regional de Paranavaí, por isso, o impacto foi tão grande. “Eu mesmo não tinha nenhum conhecido, amigo ou parente que trabalhasse com outra cultura que não fosse o café”, assinalou Jurandir de Paula. A falta de diversificação econômica deu ao Noroeste Paranaense reflexos muito negativos. Nos anos 1970, a região encabeçada por Paranavaí teve os piores índices de desenvolvimento do Paraná.

Na década de 1980, a região de Paranavaí perdeu quase 50 mil habitantes (Acervo: Ordem do Carmo)

O que ilustra bem esse fato é uma pesquisa do IBGE que foi lançada em 1980 sobre industrialização e geração de empregos. A microrregião de Paranavaí ocupou a última posição, com uma ínfima contribuição estadual de 0,5% enquanto as regiões de Ponta Grossa e Londrina despontaram com 10,4% e 9,5%. “Na cidade, não tinha emprego, então a gente tinha que ir pra onde dava. Cheguei a passar uma temporada trabalhando em lavouras em Minas Gerais pra poder sobreviver. Tinha mulher e filhos pra sustentar”, argumentou o aposentado Bernardo Ricardi Proença.

Conforme a pecuária se desenvolveu, o homem se afastou cada vez mais do campo. Um estudo do escritor Paulo Marcelo Soares da Silva indicou que nos anos 1980, o gado já ocupava mais de um milhão de hectares na região de Paranavaí enquanto as lavouras mal ultrapassavam 180 mil. “Eu era acostumado a ver muitas plantações e muita gente trabalhando no campo. Isso acabou. O que a gente viu depois foi só boi e deserto”, desabafou Proença.

Paulo Marcelo apontou ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial (Foto: Estúdio Guto Costa)

No livro “História de Paranavaí”, o escritor Paulo Marcelo levantou duas hipóteses sobre o declínio econômico de Paranavaí a partir de 1969. A primeira foi a ausência de uma política oficial para o setor agroindustrial. Já a segunda, a adoção de um sistema tributário centralizador que prejudicou os municípios da microrregião, inviabilizando o surgimento de novos incentivos fiscais.

Pesquisadores e pioneiros são unânimes em afirmar que o retrocesso de Paranavaí nos anos 1970 e 1980 teve raízes na supervalorização da monocultura. “Muita gente fez o mesmo depois com a pecuária. Mas o problema é que criar gado só beneficiou uma minoria, não teve um aspecto social, ao contrário da cafeicultura, apesar da exploração do trabalho rural ter surgido na nossa região logo nos primórdios da colonização”, avaliou o sociólogo Otávio Bernal Filho, acrescentando que os nordestinos foram os mais lesados pelas injustiças sociais que transcorriam no campo.

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A peste que assolou a Brasileira

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Doença dizimou centenas de porcos na década de 1940

Salatiel Loureiro: “A peste acabou com a minha porcada. Fiquei no zero” (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

No início da década de 1940, muitos dos pioneiros que chegavam à Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, trouxeram gado, porcos e cabras, visando incrementar renda com a criação de animais. O que ninguém imaginava na época é que alguns anos depois um surto de peste suína dizimaria centenas de porcos.

Em 1944, muitos migrantes e imigrantes que fixaram residência na colônia tiveram a ideia de investir na suinocultura, motivados pela escassez de carne. Um exemplo é o pioneiro paulista Salatiel Loureiro que naquele ano construiu o terceiro rancho da Brasileira.

Logo que fixou residência no povoado, Salatiel Loureiro sentiu falta de comer carne, então decidiu ir a pé até Campo Mourão, no Centro Ocidental Paranaense, comprar animais para criar. Lá, comprou porcos e os tocou a pé até a Brasileira, numa viagem que durou dias. “Vim pela estrada mesmo, não tinha condução”, contou. A via percorrida por Loureiro era um picadão precário envolto por uma mata densa e fechada.

À noite, o pioneiro, acompanhado dos porcos, se abrigava diante de uma fogueira para descansar e também evitar o confronto com animais selvagens. “O ruim era que tinha muito mosquito”, comentou, acrescentando que as agruras eram superadas pelas belezas naturais. Segundo Loureiro, as novas gerações nunca imaginariam como a região de Paranavaí era bonita nos anos 1940.

População local já venerava muitos santos nos anos 1950 (Acervo: Ordem do Carmo)

Em 1947, Salatiel tinha uma das maiores criações de porcos da Fazenda Brasileira, o que era motivo de orgulho para o pioneiro. No entanto, no mesmo ano a peste suína chegou à colônia e dizimou centenas de suínos. “A peste acabou com a minha porcada. Fiquei no zero”, lamentou Loureiro que nunca mais quis saber de investir na suinocultura. Conforme palavras dos pioneiros, a doença vitimava animais todos os dias.

Poucos suínos resistiram à doença. A sobrevivência desses é creditada a uma promessa feita pelos pioneiros. “Eles se juntaram e rezaram. Falaram que se Deus os livrasse da peste suína, eles fariam de São Sebastião o padroeiro da igreja. A peste desapareceu e o povo cumpriu o prometido”, revelou o padre alemão Ulrico Goevert no pequeno livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.

Um dos moradores da Brasileira foi de caminhão até São Paulo, de onde trouxe a estátua de São Sebastião feita em gesso e com 1,30m de comprimento. A imagem doada pelo imigrante italiano Genaro Pienaro foi guardada na residência de um agricultor, pois a igrejinha ainda não tinha telhado. Se chovesse, a estátua corria risco de ser danificada. Não foram poucas as vezes em que o colono recebeu visitas de moradores que pediam autorização para orar em frente ao padroeiro da cidade.

Foi assim até a estátua ser remanejada para a Casa Paroquial. De acordo com Frei Ulrico, quando o telhado da igreja ficou pronto, São Sebastião foi colocado no seu devido lugar. “Durante o período de reformas, as estátuas ficaram desabrigadas, no mais verdadeiro sentido da palavra”, enfatizou o padre alemão que se surpreendeu com o fato da população local venerar tantos santos.