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Lamartine: “Matar os animais é uma das mais deploráveis enfermidades da condição humana”
“É uma dessas maldições lançadas sobre o homem pelo embrutecimento de sua própria perversidade”
Pioneiro do romantismo francês e considerado um dos maiores poetas da França do século XIX, o escritor e poeta Alphonse de Lamartine era um defensor do vegetarianismo. Em uma de suas obras, “Les Confidences”, ele conta como se tornou vegetariano logo nos primeiros anos de sua vida.
“Minha mãe estava convencida, assim como sempre foi a minha convicção, de que matar os animais para nos alimentarmos de sua carne e sangue é uma das mais deploráveis e vergonhosas enfermidades da condição humana. É uma dessas maldições lançadas sobre o homem pelo embrutecimento de sua própria perversidade”, escreveu na página 59 da obra publicada originalmente em 1849.
Lamartine narra que surpreendeu a todos quando chegou aos 11 anos se alimentando basicamente de pão, vegetais e frutas. Nem por isso ele era menos saudável ou teve sua fase de desenvolvimento comprometida. “Talvez eu esteja em dívida com essa dieta por conseguir preservar requintada sensibilidade e uma doce tranquilidade de humor e caráter”, registrou.
Assim como sua mãe, o poeta francês acreditava que os hábitos alimentares que envolvem exploração de animais endurecem o coração humano e comprometem a capacidade de observá-los como seres gentis. “Eles são nossos companheiros, nossos auxiliares […]. Esses apetites sangrentos, essa visão da carne palpitante, são calculados para brutalizar os instintos do coração, tornando-nos ferozes”, observou.
A nutrição baseada na exploração animal era reconhecida por Alphonse de Lamartine como possivelmente mais suculenta e energética. Por outro lado, ele afirmou que essas supostas qualidades também eram as causas ativas da irritação humana e do seu definhamento físico. “Azedam o sangue e encurtam os dias de vida da humanidade”, declarou em “Les Confidences”.
Desde muito cedo, com a intenção de fortalecer a opinião do filho em relação à abstinência de carne, sua mãe contava-lhe histórias de tribos gentis e piedosas da Índia, que se negavam a se alimentar de seres sencientes. Muitos eram pastores ou camponeses e, segundo Lamartine, trabalhavam mais duro do que qualquer outra pessoa. Também possuíam uma genuína inocência. “Para matar o desejo, que mesmo que tivesse existido dentro de mim, ela não usou argumentos, mas recorreu ao instinto, que em nosso cerne é muito mais poderoso do que a lógica”, explicou.
Um dia, ainda jovem, o poeta ganhou um cordeiro de um camponês de Milly, uma comuna francesa da região da Borgonha. Com um estreito laço de amizade com o animal, ele o ensinou a segui-lo por todos os lados. “Se tornou o mais carinhoso e fiel dos cães. Nos amamos com a mesma ternura que toda criança tem pelos animais e vice-versa”, relatou.
No entanto, em uma ocasião, ele ficou chocado quando ouviu um cozinheiro conversando com sua mãe. “Madame, o cordeiro está gordo e o açougueiro veio buscá-lo. Devo entrega-lo a ele?”, questionou. Quando ouviu aquilo, Lamartine começou a gritar, abraçou o animal, perguntou o que era um açougueiro e o que tal pessoa iria fazer com ele.
“O cozinheiro disse que era um homem que matava cordeiros, carneiros, novilhos e belas vacas por dinheiro. Eu mal podia acreditar nisso. Orei à minha mãe e facilmente a convenci a pouparem o meu amigo”, admitiu. Na realidade, a mãe do poeta não raramente testava suas convicções.
Mais tarde, Alphonse de Lamartine acompanhou sua mãe até a cidade e, no caminho, atravessaram o quintal de um matadouro. Havia um propósito nisso que o jovem só percebeu depois. “Vi um homem com os braços nus e lambuzados de sangue, batendo na cabeça de um touro. Outros cortavam as gargantas de bezerros e ovelhas, separando seus membros ainda palpitantes. O sangue fluía por todo o pavimento. Um intenso sentimento de pena, misturado com horror, se apoderou de mim. Tive que ser levado rapidamente para fora daquele lugar”, revelou.
A experiência fez com que Lamartine nunca mais deixasse de associar aquela cena à imagem de um prato com carne, tantas vezes visto por ele sobre a mesa. “Embora a necessidade de cumprir as regras da sociedade me fez comer carne [em determinado momento da vida], desde então, tudo que as outras pessoas comem [e que seja de origem animal] me causa repulsa. O que testemunhei me fez sentir completa aversão. Insuflou-me do horror perpetrado pelos açougueiros. Tem sido sempre difícil pra mim não ver no trabalho de um açougueiro a ocupação de um carrasco”, enfatizou em “Les Confidences”.
A importância de Alphonse de Lamartine
O escritor e poeta Alphonse de Lamartine nasceu em Mâcon, na França, em 21 de outubro de 1790. Criado em uma propriedade rural nas imediações de Milly, estudou os clássicos gregos e romanos, além das obras francesas contemporâneas. Sua educação foi uma educação filosófica que ele qualificava como de “segunda mão”, suavizada por sentimentos maternais. Lamartine, que sofreu grande influência de filósofos como Pitágoras, publicou 19 livros, entre poesia, ficção e história.
De todas as obras publicadas pelo francês, “Méditations Poétiques”, de 1820, continua sendo a mais famosa. No livro, o poeta aborda as relações entre o misticismo, a natureza e as emoções. Para ele, a natureza é a mais importante manifestação da grandeza divina.
Despertando para uma formação mais pessoal de espiritualidade, o escritor adotou a simplicidade como estilo de vida, tanto na forma de se vestir quanto de se alimentar. Depois do lançamento de “Méditations Poétiques”, que alçou o nome da Lamartine aos dos grandes nomes da literatura mundial, ele conseguiu uma nomeação para assumir a embaixada francesa na Itália.
Lá, viveu dez anos, e aproveitou o tempo ocioso para produzir literatura, já que seus deveres diplomáticos não exigiam tanto tempo. Em 1828, de volta à França, tentou garantir uma vaga no parlamento, mas foi derrotado. Então tomou a decisão de viajar para o Oriente Médio, onde começou a se interessar por religiões orientais. Reflexo desse período foi registrado no livro “Souvenirs, Impressions, Pensées, et paysages pendant un Voyage en Orient”, escrito em 1832 e 1832, e no romance em verso “La Chute d’un Ange”; obra de 1838 que chegou a ser banida da Igreja Católica pelo viés panteísta e racionalista.
Em um excerto, o poeta diz: “Le plus beau don de l’homme, c’est la Misericorde”. Ou seja, o maior dom do homem é a Misericórdia. Sendo assim, ele jamais deve matar qualquer animal. Lamartine também se inspirava na idealização do amor, suas crenças e sua relação com a natureza. Considerado um dos protagonistas da transição da literatura neoclássica para a romântica, marcada pela paixão e pelo lirismo, ele foi também um historiador. Escreveu sobre a história dos girondinos, importante grupo político que participou da Revolução Francesa entre os anos de 1789 e 1799.
Em 1849, Lamartine teve o privilégio de fazer parte do governo provisório da França na Segunda República, após a deposição de Luís Filipe I. O escritor e poeta liderou as ações que culminaram na abolição da escravidão e no primeiro modelo dos direitos trabalhistas na França, de acordo com o pesquisador Lawrence C. Jennings. Ainda assim, acabou derrotado por Napoleão III na eleição presidencial realizada no mesmo ano. Depois de se aposentar da política em 1851, Alphonse de Lamartine continuou escrevendo até o dia 28 de fevereiro de 1869, quando faleceu em Paris.
Referências
Lamartine, de Alphonse. Les Confidences (1857). Nabu Press (2012).
Lamartine, de Alphonse. Trois Mois au Pouvoir (1848). Nabu Press (2011).
Lamartine, de Alphonse. La Chute d’un Ange (1838). CreateSpace Independent Publishing Platform (2015).
William A. Alcott. Vegetable Diet: As Sanctioned by Medical Men and by Experience in All Ages. Marsh, Capen & Lyon (1838).
Jennings, Lawrence C. French Anti-Slavery: The Movement for the Abolution of Slavery in France, 1802-1848. Cambridge University Press (2006).
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