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Uma noite alucinante ou fuga de cães raivosos
Escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas

Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente na Rua Getúlio Vargas (Foto: David Arioch)
Houve uma época da minha vida em que eu caminhava todos os dias no mesmo horário, e não para me exercitar, mas somente para espairecer ou refletir. Andar diariamente 10 quilômetros ou até mais no final da tarde ou início da noite me ajudava a ter boas ideias e também a me desligar de tudo que não me interessava naquele momento. Em síntese, era uma excelente forma de manter o equilíbrio.
Na realidade, era imprescindível, já que eu passava muito tempo em frente ao computador produzindo textos e lendo. Então havia dois horários do dia que eram sagrados para me manter longe de qualquer máquina. De manhã, por volta das 5h50, quando eu ia à academia, e após às 17h ou 18h. Eu nunca carregava o telefone celular comigo, hábito que mantenho até hoje.
Conforme eu andava, tentava captar a boa essência ao meu redor, principalmente o aroma sinestésico e verdejante das árvores quando o calor arrebatador do dia partia com o poente. Um dia, saí de casa no início da noite. Desci a Rua John Kennedy até chegar à Avenida Parigot de Souza. Tudo parecia tão tranquilo, difícil crer que era uma segunda-feira. Continuei andando, observando os animais da vizinhança revirando sacolas enquanto os lixeiros não passavam para recolhê-las ao lado do meio-fio.
Mandriões, quatro gatos, não sei se por fome ou capricho, miavam ruidosamente com desejo de se aproximar dos sacos ocultados por três cães. Entendi. Era o dia preferido dos negligenciados, já que as sobras de comida do sábado e do domingo se acumulavam em tantas sacolas, criando um cheiro variegado e sui generis que as narinas dos famintos sorviam com o paroxismo de quem se vê pela primeira vez diante de um banquete etrusco.
Sensibilizado com a cena, chamei a atenção de dois cães e os afastei de uma das sacolas, entre as tantas que monopolizavam, permitindo que os gatos também vasculhassem seu tesouro em meio aos orgânicos detritos da glutonaria. Acredito que ficaram satisfeitos. Silenciaram, e segui meu caminho depois de vê-los com os bigodes sujos de contentamento.
Passei por um trecho da Avenida Paraná e segui em direção ao centro. Na Rua Getúlio Vargas, pessoas saíam do trabalho, embora quase todas as portas das lojas estivessem fechadas. O aspecto de cansaço no rosto de tanta gente a pé, sobre os bancos das motos e no interior dos carros dava mostras do quão intenso pode ser o limiar da semana.
Um ou outro ainda sorria, raros num mar de expressões macambúzias de desânimo. “Será que não gostam do que fazem da vida? Alguns parecem infelizes. Posso estar enganado também. Talvez seja apenas uma má impressão minha”, refleti. Então mirei o céu por entre os galhos e vi um céu ainda avermelhado envolvendo a lua tímida que pouco despontava, mal sendo notada.
A passos rápidos, subi um trecho da Getúlio Vargas e assisti dois homens maltrapilhos, talvez andarilhos ou mendigos, sentados no banco da praça da Igreja São Sebastião dividindo um pão francês e tomando uma bebida escura, provavelmente café, em copos descartáveis. A cada gole e mordida, os dois riam como se nada na vida valesse mais do que o momento, a paradoxal plenitude do efêmero.
Contavam piadas sem sentido um para o outro e gargalhavam como crianças, pressionando as mãos contra suas barrigas cobertas por camisetas em frangalhos. Dois carros pararam em frente à praça e os motoristas testemunharam com espavento a alegria dos dois marginalizados. “Do que esses doidos estão rindo? Que nada a ver, rir nessa situação. Deviam chorar”, talvez pensem alguns.
Percorri mais cem metros e notei um automóvel se aproximando vagarosamente. Um homem colocou a cabeça para fora e me chamou. Sem problema. Deveria ser alguém perdido por aquelas bandas. Não, não era. “Ô camarada, você gosta de se divertir?”, questionou o motorista. “Quê?” E ele repetiu a pergunta. “Olhe, eu e minha mulher, dê uma olhada nela aqui do meu lado, estamos a fim de umas aventuras. O que você acha de vir com a gente? Tudo no sigilo, temos local próprio e bem discreto.”
Agradeci o convite e falei que não tinha interesse. “Como não tem interesse na minha mulher? Olha aqui, cara! Isso não existe. Temos altas ferramentas aqui. Vambora que você não vai se arrepender”, falou o homem com a voz alterada, revelando um misto de nervosismo e raiva. De repente, o sujeito se virou em direção ao banco traseiro e retirou uma maça medieval de borracha, mas com um adorno de spikes que parecia muito real. No banco ao lado, a mulher apenas sorria, retocando o batom vermelho com uma das mãos e piscando para mim, sensualizando.
“Você tem cara de bad boy. E minha mulher só curte homem assim. Vem, cara! A gente paga!” Insisti, falei que não aceitava, que tinha namorada e andei a passos céleres, sem ter a mínima ideia do que aquele casal era capaz. Virei à esquerda e para piorar ainda ouvi o som do motor me acompanhando e a sombra de uma pessoa apontando em minha direção. “E se esse maluco sacar um revólver e atirar em minhas costas?”, aventei, rendido a uma criatividade que me assustava e entorpecia. Afinal, me tornei refém de um universo de possíveis impossibilidades.
“Seu viado filho da puta!”, foi a última frase que ouvi antes de sentir uma cálida rajada que repentinamente aqueceu meu corpo álgido. Consegui respirar melhor quando o carro desapareceu no horizonte do Jardim Paulista. Feliz por estar vivo, retomei a caminhada sentindo-me mais leve que o próprio vento que ocasionalmente massageava minhas orelhas.
Perto da antiga Escola Jean Piaget, na Rua Manoel Ribas, fui surpreendido novamente pelo acaso quando dois cães enormes e negros como a noite escaparam pelo portão de uma casa e vieram correndo no meu encalço como duas crianças famintas. Seus olhos amarelos rutilavam como vagalumes graúdos. Só tive tempo de saltar, pendurar e me equilibrar sobre a fragilizada grade da escola que por pouco não cedeu, o que me deixaria à mercê dos meus algozes.
Sem subestimar a astúcia animal, pulei sobre uma árvore no jardim da escola e fiquei observando eles por instantes, limpando minhas mãos repletas de vestígios de cal. Encolerizados, seus músculos se contraíam enquanto seus dentes afiados mal cabiam dentro da boca. A saliva dos dois caía grossa sobre a grama.
Me senti vitorioso, mas não zombei deles porque nunca sei o que o dia seguinte me reserva. Persistentes, mantinham as patas pressionadas contra a grade e os olhos fixos em mim. Eram fortes, ágeis e pouco inteligentes. Só precisei fingir que iria fugir pelo outro lado para despistá-los. Logo ficaram confusos e perderam seu ponto de referência – eu.
Corri até a Rua Chozo Kamitami e não vi mais eles. Um tremendo alívio que fez minhas pernas pararem de bambear. “Nada mais pode acontecer hoje. Acredito que atingi a minha cota”, achincalhei o meu próprio azar. Após restabelecer a serenidade, tudo parecia em harmonia quando ouvi cigarras cantando e corujas piando em meio aos pisca-piscas dos pirilampos.
“Agora é só prosseguir minha caminhada e curtir a noite”, ponderei absorvendo a amorável calmaria notívaga. Voltando para casa pela Avenida Rio Grande do Norte, mais uma vez fui parado por um carro. Um rapaz gritou um nome, vi que não era comigo e continuei andando. “É você, mano! É você! É você mesmo! Calmae, calmae!”, falou com malemolência.
Não o reconheci e pensei que fosse um bêbado querendo confusão ou jogar conversa fora. “Ué, Mafud! Vai tirar na cara dura? Vai dar de louco pra cima de mim, manon?”, replicou. Fiquei sem reação e depois declarei que ele me confundiu com outra pessoa. Em seguida, olhei atentamente e vi que em sua mão direita, parcialmente velada na altura da barriga, tinha um revólver de calibre 38.
“Conheço essa sua barba em qualquer lugar, manon. Tem erro não. Quero saber se tu tá metido nos esquemas da gravataria lá ainda ou se já deu linha. Conta pro seu manon aí!”, indagou. Não consegui pensar com clareza e de repente as luzes dos faróis de um segundo carro foram sinalizadas em nossa direção. Outro rapaz acenou com a mão através da janela, chamou a atenção do jovem que me abordou e gritou:
“Esse não é o Mafud, cara! Tá fazendo merda de novo. Simbora!” Antes de partir, ele sorriu, abriu a carteira e lançou cinco notas de R$ 100 em minha direção. “Mal aí, meu chapa! Esquece a parada que tudo segue de buena”, sugeriu. Fui embora e deixei um repentino vento sortido arrastar as notas para longe de mim. Com receio de novas abordagens, equívocos e confusões, respirei fundo e voltei para casa correndo, mergulhado em um turbilhão de pensamentos. Sem dar margem ao azar e ao acaso, sequer olhava para o lado, agulheado pela ferocidade do imponderado.
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Quando Vico planejou a própria morte
Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos

Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas (Foto: David Arioch)
Não me esqueço de um amigo que quando éramos adolescentes planejou a própria morte. Naquele tempo eu o chamava de Vico porque ele era fã do filósofo italiano Giambattista Vico. “A razão é a consciência do ser, não o conhecimento dele. A partir do nosso raciocínio, podemos ter conhecimento da nossa existência, mas não o conhecimento total de quem realmente somos”, dizia meu amigo inquiridor que cada vez mais parecia o filósofo que tanto admirava.
Vico, assim como seu mestre homônimo, levava uma vida frugal. Rendido ao desejo do saber, pouco se interessava em socializar. Era casto por natureza e da vida aspirava o entendimento do que definia como pequenas coisas existenciais. Quando andávamos pelas ruas com a simples motivação de respirar o mundo e sentir a vibração da vida que habita a singeleza, parávamos, sentávamos no meio-fio e fazíamos anotações.
No centro de Paranavaí, algumas pessoas riam e de longe zombavam do nosso comportamento julgado extemporâneo. E nós ríamos também, sem precisar abrir a boca e mostrar os dentes. Afinal, a fantasia é a memória dilatada e para sorvê-la é preciso convidá-la. E a nós estrambótica era a deletéria incompreensão, menos digno de zombaria e mais de comiseração. Escrevíamos sobre pessoas, animais, plantas e objetos. E todas as constatações eram discutidas livremente em um grupo pequeno que fundamos através da internet com o nome de Caballaria.
Principalmente nos finais de tarde, observar a vida ao longo de uma hora era um exercício recompensador, porque era o único período do dia em que nos tornávamos alheios a nós mesmos, nossas fragilidades, falhas e cegueiras. “Olha esses moleques à toa! No meu tempo, não tinha essa vagabundagem juvenil”, comentou um senhor engravatado de meia-idade levando a amante para almoçar em um restaurante na Rua Manoel Ribas.
Observávamos sem reagir às críticas e piadas que ouvíamos com certa frequência. Não faria sentido estar lá para intervir, mas tão somente inferir. Do contrário, tudo deixaria de ter um propósito. A maior lição subentendia a missão de nos tornarmos aquilo que nos furtava a atenção. Num primeiro momento, éramos como voyeurs. E creio que aos olhos que nos miravam, não passávamos disso, embora não nos incomodasse sobretudo. A verdade é que logo não existíamos apenas dentro de nós, mas também fora, não mais reduzidos aos ocos limites da nossa canhestra individualidade.
Em pouco tempo o barulho trivial e a movimentação rotineira de carros, motos, caminhões e pessoas não mais equacionavam nossa concentração. Sentados, ouvíamos tudo se perdendo em meio a um barulho tão difuso e pleonástico que o próprio som cotidiano se tornava irrelevante. Não exigia mais respostas dos nossos sentidos. E ficávamos lá, atentos ao que chamávamos de Orquestra do Mouco, nada mais que o silêncio que soava como o próprio rearranjo da natureza. E assim como as coisas mais simples e implícitas da vida, ele ganhava formas ocasionalmente pouco perceptíveis.
Lugares, pessoas, animais e objetos requeriam de nós um exercício diário de elucubração e compreensão. Eles mudavam diante de nós e nós mudávamos diante deles, provando que um olhar desatento poderia nos entorpecer. Acreditávamos que se tudo que víssemos a cada dia transparecesse comum ou ordinário era porque nos faltava habilidade para ir além. Em síntese, o pouco da percepção corria o risco de se confirmar como um danoso arquétipo da insipiência, isso porque ele nos empurrava para as armadilhas das nossas limitações.
Numa dessas longevas observações, uma vez um filhote de bem-te-vi caiu em cima da minha mochila posicionada na calçada, atrás das minhas costas. Não vi nem ouvi nada, mas senti a repentina aragem que tocou minha nuca como um sopro. Quando me virei, um gato siamês estava prestes a abocanhar o filhote. Consegui afastá-lo com as mãos apesar da sua ruidosa resistência. Percebendo que o passarinho não apresentava ferimento, escalei a árvore e o coloquei novamente no ninho antes de partir.
Depois, caminhando perto da Igreja São Sebastião, notei que o farto felino continuava nos acompanhando e se ocultando entre os arbustos. Só que era barulhento demais para passar despercebido. Perto da Sanepar, ele pendurou na minha mochila, fugindo de um cão grande e mestiço, com características de rottweiler, que tentou atacá-lo. Então o cachorro recuou assim que Vico lhe lançou um grande biscoito canino. Ele sempre carregava petiscos para animais dentro da mochila.
Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas. E o cachorro maior veio logo atrás, remansoso e mantendo os olhos em nossos passos. Mais adiante, outros cães e gatos endossaram a marcha. Contei doze animais. De repente, para minha surpresa, um jovem no quintal da própria casa arremessou com violência uma grande manga verde contra nossos seguidores. Errou o alvo e atingiu Vico na cabeça.
Ele caiu de frente com o corpo estendido sobre o asfalto e os braços abertos. Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos pelos cabelos castanhos, e as mãos e pernas levemente raladas. Os cães começaram a uivar e os gatos se esfregaram na cabeça e no dorso de Vico. Desesperado, o agressor adolescente levou as mãos à cabeça e correu para dentro de casa.
Me aproximei do portão, bati palmas e vi o rapaz escondido logo abaixo da janela. “Você matou meu amigo, cara! Sua brincadeira tirou a vida dele! Como você atira manga na cabeça das pessoas que passam perto da sua casa? Qual é o seu problema?”, questionei energicamente. Dois cães se aproximaram da grade, como se quisessem invadir a casa. O garoto não respondeu, mas ouvi seu choro suprimido e ele balbuciando consigo mesmo que seu pai iria matá-lo.
No chão e cercado por animais, Vico ainda não se mexia. O cão grande e mestiço tentou empurrá-lo em vão com o focinho. Alguns curiosos assistiam de longe, indecisos em se aproximar. Cinco minutos após a queda, ele se levantou e sorriu apesar das escoriações e do galo na cabeça. Dei uma gargalhada e seguimos nossa caminhada.
Atraídos pela ração e pelos petiscos que vazavam por um pequeno furo proposital no fundo da mochila, os animais começaram a se dispersar quando perceberam que já não restava mais alimento. Subindo a Avenida Distrito Federal, notamos que a turma se foi – ficou apenas a dupla. Chacoalhei a minha mochila também vazia, onde eu guardava o caderno em um compartimento menor, e sorri. “Amanhã eles voltam. Eles sempre voltam”, comentou Vico.