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“Mas ele era soviético, e não se pode confiar em soviéticos…”
Em 2009, quando eu coordenava o Projeto Mais Cinema, passei uma maratona do Tarkovsky na Casa da Cultura Carlos Drummond de Andrade, e um cara apareceu no final da sessão.
— Vim aqui porque quero saber se você está desenvolvendo algum tipo de arquitetura intelectual em favor do socialismo e do comunismo.
— Como é? Arquitetura intelectual? Do quê?
— Não sei…acho que é muito suspeito você exibir filmes dos tempos da União Soviética…
— Será mesmo? Tarkovsky era um escultor do tempo, um artista da fragilidade humana. A vida para ele era como um espelho, um sonho. Se não me engano foi em 1979 que o governo soviético impediu que um dos filmes dele, Stalker, fosse enviado para o Festival de Cannes; e por julgar que era uma crítica aos gulags, os campos de concentração da União Soviética. Independente de qualquer coisa, ele não era e nunca foi um partidarista. A humanidade dele estava acima de tudo.
— Mas ele era soviético, e não se pode confiar em soviéticos…
— Ok…
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Um manifesto sobre a fragilidade
Ivanovo Detstvo e o sonho da infância espoliada
Lançado em 1962, Ivanovo Detstvo, que chegou ao Brasil com o título A Infância de Ivan, é um filme do cineasta humanista russo Andrei Tarkovsky e aborda o estado de introspecção de uma criança órfã dividida entre o pesadelo da Segunda Guerra Mundial e o sonho da infância espoliada.
Ivanovo Detstvo conta a história de Ivan (Nikolai Burlyayev) que teve a inocência dilacerada quando soldados nazistas assassinaram seus familiares. Ignorando a própria condição existencial como criança, o garoto ingressa no exército soviético em busca de retaliação. Sob a perspectiva de Tarkovsky, a guerra assume um caráter individualista a partir das ações de Ivan.
A animosidade da contenda e a ausência de relações familiares levam o protagonista a um endurecimento e negação da juventude. Mesmo quando outros combatentes soviéticos tentam protegê-lo e o lembram de sua idade, o garoto age como se não estivessem se referindo a ele. Uma das cenas mais intensas da obra surge quando Ivan se torna refém de uma tormenta psicológica.
Consumido por desespero e delírio, o jovem armado com uma faca circula pela escura, gélida e sombria base militar a procura de nazistas. Mas não encontra nada, pois naquele ambiente a sua única companhia é a solidão. Incapaz de aceitar e lidar com a realidade, Ivan luta para velar a fragilidade e a sensibilidade com um manto de frieza. No entanto, ao dormir, é vencido por sentimentos e lembranças que retornam para reafirmar a sua condição infantil e conflitante.
O jovem soviético tenta ultrapassar a etapa da vida que deveria ser marcada pela ingenuidade justamente porque simboliza o momento mais doloroso de sua existência. Rejeitar a infância na fase de transição para a adolescência é uma forma de Ivan se desvincular do passado – uma tentativa sem sucesso. Ainda assim, não são poucos os momentos em que o garoto é transportado a um universo de nostalgia, onde se sente plenamente livre, estimulado por imagens de beleza e candura protagonizadas pela mãe, até pouco tempo seu maior elo com o mundo.
Ivan sofre sempre que acorda. Apesar disso, conta com o humanismo projetado na figura do capitão Kholin (Valentin Zubkov), um homem com quem estabelece uma difícil, mas alentadora relação. Kholin se torna a ponte entre o velho e o novo mundo do garoto, tentando mantê-lo em uma linha de equilíbrio, onde a sobriedade precisa ser nutrida com sonhos e expectativas.
Sobre a estética e os planos de filmagem da obra de Tarkovsky, o tempo todo a câmera assume papel de personagem, transmitindo sentimentos e emoções em meio a uma contumaz escuridão desértica. No chão, a consternação é marcada pelo solo improdutivo. No céu, onde há muito tempo as estrelas não brilham, as nuvens são substituídas por cortinas de fumaça cor de chumbo. A natureza parece sepultada, assim como tantas vidas representadas por escombros e ruínas. Em suma, Ivanovo Detstvo é um manifesto sobre a fragilidade humana.