David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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Cachorro também cansa de não existir

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Revirava o lixo quando levou o primeiro golpe no dorso. Teria vomitado se tivesse comido bem, mas só conseguia expelir uma pequena porção de plástico mole com raspas de goiabada e água da chuva que bebeu minutos antes de quedar na calçada de tijolinhos.

Quase ninguém via, sabia, menos ainda contava as dezenas de cicatrizes pelo corpo seviciado. Cinco anos nas ruas não são cinco dias, e continuar em pé deveria ter feito dele um ícone de resistência à violência. Tinha perdido um olho há mais de ano quando tentava atravessar a língua por um portão para comer um pedaço de pão francês caído no chão.

Não teve tempo de ver a ponta da vara de pesca atravessando o olho como agulha. Correu gritando o que ninguém ouvia. Já não funcionava e apodrecia, até que um dia, o olho caiu. Dizem que ficou observando o olho morto com o que restava – passava a pata com estranheza. Suave no desconhecimento. Não entendia o que entendia.

Mais de 20 companheiros mortos em menos de um ano. Atropelamento, envenenamento, espancamento. Talvez mais. Turma morria e renascia. Alguém teve a ideia de chamar de “Bando dos Sem” – sem casa, sem comida, sem atenção, sem nome, sem vida. Às vezes, quando encontravam outros famintos, se desse briga, dependendo do dia, alguém morria, não por maldade – por fome.

Logo estava sozinho de novo – a cinomose levou os dois últimos companheiros. Ninguém sabe como sobreviveu. Dizem que já teve casa, foi vacinado e abandonado com alguns meses de idade porque a criança “que o ganhou enjoou”. Terreno baldio murado, mato alto – pareceu um bom lugar para o papai descartar um jovenzinho. “Alguém o adotaria”. Conclusão da abstenção de culpa. Ninguém quis.

Ainda revirava o lixo quando se levantou e recebeu o segundo, terceiro, quarto e quinto chute. Pela primeira vez, não correu nem reagiu. Deitou no chão e a violência seguiu. “Cachorro também cansa de não existir”, picharam de branco no chão, onde sem nome, e por pouco, jazia um cão.

Vagando de uma esquina à outra

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Pintura: Gabriel Glaiman

Desconcertados, com olhos perdidos, vagando de uma esquina à outra, revirando os sacos de lixo que logo mais os catadores recolheriam. Àquela hora da tarde, sempre uma oportunidade. Tudo ficava ao chão; era a chance de encontrar alguma coisa comestível que pudesse aplacar a fome.

Quando alguém se aproximava, os sacos de lixo viravam esconderijos, pelo menos para os pequeninos. Os maiores só tinham tempo de correr (os mais agitados) ou se encolher em vão (os mais assustados).

Um deles trazia no dorso o carimbo doloroso de uma sola. Se pudessem, acho que gostariam de ter dois olhos que pudessem mirar coisas diferentes – a comida e quem se aproxima. É difícil escolher entre comer ou correr, porque das duas ações dependem a sobrevivência.

Os mais fracos vão resfolegando na correria – imunidade baixa que se intensifica. As costelas à mostra revelam mais do que fome – medo, terror, desamor. A miséria estimula solidariedade entre alguns e violência entre outros. Personalidades distintas, assim como o peso do trauma.

Passam-se os olhos de lá pra cá, e de cá pra lá. Dizem que falta tempo ou dinheiro. “Não é problema meu nem seu” – mantra da omissão. Os corpos vão se acumulando e apodrecendo em qualquer lugar. O mau cheiro revela mais sobre nós do que sobre eles.

Hoje havia dois misturados aos entulhos em uma caçamba – dizem que foram atropelados de madrugada enquanto rasgavam sacos de lixo numa esquina.

Chernobyl, a história dos cães que não envelhecem

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“Os olhos do cachorro brilham quando Igor agarra um graveto e joga na árvore”

“Hoje os cães de Chernobyl confiam nos trabalhadores da estação para se manterem vivos” (Foto: Sean Gallup/Getty Images)

No dia 26 de abril de 1986, o reator da Unidade 4 da Usina Nuclear de Chernobyl explodiu e espalhou materiais radioativos no meio ambiente. Em reação a esse desastre, a antiga União Soviética estabeleceu uma Zona de Exclusão de 30 quilômetros ao redor da usina e garantiu a evacuação de mais de 120 mil pessoas de Pripyat, no norte da Ucrânia, e das vilas vizinhas. Ninguém pôde levar nada, nem mesmo os animais de estimação, que foram obrigatoriamente abandonados, mesmo com a resistência dos moradores.

No livro “Chernobyl Prayer: A Chronicle of the Future”, publicado pela Penguin Classics em 2016, a autora Svetlana Alexievich relata que os cães latiam e uivavam tentando entrar nos ônibus que partiam de Pripyat, mas os soldados do Exército Soviético os chutavam para longe. “Eles correram atrás dos ônibus por muito tempo. Famílias desoladas fixaram notas em suas portas: ‘Não mate nossa Zhulka. Ela é uma boa cadela.’” De nada adiantou. Os esquadrões da morte exterminavam todos os animais que encontravam.

Porém, como havia muitos cães, dispersos por toda Prypiat e por outras aldeias que faziam parte da Zona de Exclusão, uma parcela significativa sobreviveu, inclusive migrando para as florestas, onde desenvolveram uma capacidade singular de sobrevivência. Claro, com o tempo esses cães tiveram seus descendentes, e são esses animais que hoje povoam Chernobyl e toda a Zona de Exclusão. Eles criaram a sua própria comunidade e vivem principalmente entre os de sua espécie. No entanto, ocasionalmente têm contato com trabalhadores ou visitantes.

Há alguns anos, um homem foi contratado para capturar e matar os cães de Chernobyl, sob a alegação de que não havia recursos para cuidar dos animais. Ele se recusou a fazer esse serviço. Atualmente, só na área da Usina Nuclear de Chernobyl há mais de 250 cães que vagam o dia todo. Quem trabalha na localidade, e está acostumado com a presença canina, geralmente reserva uma parte de sua refeição para alimentá-los.

Os cães de Chernobyl tiveram de deixar as florestas da Zona de Exclusão porque começaram a ser perseguidos e mortos por matilhas de lobos. Também se tornou cada vez mais difícil encontrar alimentos. Em 18 de fevereiro deste ano, o jornal britânico The Guardian publicou na reportagem “Meet the dogs of Chernobyl – the abandoned pets that formed their own canine Community” que há 300 cães vivendo na Cidade de Chernobyl.

Já a estimativa da organização não-governamental Clean Futures Fund, que ajuda cidades afetadas por acidentes industriais, é de que há mais de 250 cães vivendo em torno da usina nuclear, outros mais de 225 cães na Cidade de Chernobyl e centenas de cães nos postos de controle de segurança e em outras localidades da Zona de Exclusão.

“Os cães de Chernobyl são desnutridos, foram expostos à raiva por causa de predadores selvagens [como lobos]”, garante a Clean Futures. Em Chernobyl, a expectativa de vida dos cães é bastante reduzida por causa da exposição à radiação. A maioria tem no máximo quatro ou cinco anos. Poucos ultrapassam os seis anos de vida. Para piorar, há aqueles que enfrentam o rigoroso inverno ucraniano, que chega a 30 graus negativos, sem um abrigo apropriado.

Por outro lado, os cães que moram perto dos postos de controle têm cabanas feitas pelos guardas de Chernobyl. Com o tempo, eles aprenderam também que a presença humana pode significar sempre uma chance de ganhar comida. Prova disso é que vários podem ser vistos na entrada do Café Desyatka, onde normalmente esperam receber dos clientes um pouco de borscht, uma tradicional sopa de beterraba.

“Hoje os cães de Chernobyl confiam nos trabalhadores da estação para se manterem vivos. Alguns os levam para dentro e cuidam de seus ferimentos. Mas eles também correm o risco de exposição à raiva ao interagir com os cães”, informa a Clean Futures.

Há poucos meses, a jornalista britânica Julie McDowall viajou para a Zona de Exclusão da Ucrânia. Ela narra que quando estavam nos bosques atrás da Usina Nuclear de Chernobyl, um cachorro correu em sua direção – um animal magrinho, com pelos tigrados e olhos amarelos. Igor, o guia, tocou o focinho dele com a mão:

“Eles resistem na neve e a água gelada balança das árvores. Os olhos do cachorro brilham quando Igor agarra um graveto e joga na árvore. Distraído, o animal o persegue e nosso pequeno grupo está livre para se mover. Mas o cão reaparece e joga o graveto aos pés de Igor. Ele joga novamente. O cachorro traz de volta.”

O nome do cãozinho, que tentava mastigar as bolas de neve arremessadas por Igor, segundo Julie, é Tarzan. Ele é mais um dos que passam o dia vagando pela Zona de Exclusão desde que sua mãe foi morta por um lobo. Quem cuida dele são os guias que levam os visitantes para Chernobyl. É uma dura realidade, considerando que os cães de Chernobyl vivem não apenas entre humanos, mas também entre animais como alces, linces, lebres e lobos, animais que acabaram adotando Chernobyl como lar após a evacuação de 1986.

Saiba Mais

O que ajuda a levar um pouco de alento aos centenas de cães de Chernobyl é o trabalho da ONG Clean Futures Fund, dos Estados Unidos, que montou clínicas na localidade para lidar com emergências e doenças como raiva, parvovirose, cinomose e hepatite, além de estabelecer um programa de vacinação e castração.

Referências

Alexievich, Svetlana. Chernobyl Prayer: A Chronicle of the Future. Penguin Classics (2016).

Clean Futures Fund. Dogs of Chernobyl.

McDowall, Julie. Meet the dogs of Chernobyl – the abandoned pets that formed their own canine Community (5 de fevereiro de 2018).





 

Breve reflexão contra a vivissecção (experimentação animal)

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A vivissecção passou a ser considerada “prática comum” no mundo ocidental a partir do século 19. Muito tempo se passou, estamos em 2018 e animais continuam sendo torturados e mortos desnecessariamente em nome da ciência. O que ajuda a postergar o banimento dessa prática já considerada obsoleta é o lobby e a politicagem que caminham lado a lado.