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Por que animais criados para consumo chegam a praticar canibalismo
Você já pensou em quais circunstâncias um animal domesticado e criado pelo ser humano com finalidade de consumo pratica canibalismo?
Quando ele passa por um processo visceral de despersonalização, de completa perda de identidade e individualidade. Ele se torna algo desconhecido para os outros e para ele mesmo. E como isso acontece? Como consequência de níveis constantes e excruciantes de privação, ansiedade e estresse, entre outros fatores que podem envolver ou não agressão física.
Animais não humanos, diferentemente de nós, não verbalizam o que sentem e por isso podem sofrer mais perante a incomunicabilidade no contato com seres humanos. Afinal, o seu desespero e ânsia pela vida podem ser facilmente desconsiderados levando em conta as diferenças no código de comunicação. E, evidentemente, podem ser interpretados ou distorcidos à revelia.
Essa incomunicabilidade com o ser humano, logo animal de outra espécie, amplifica o desespero e o sofrimento no esteio de uma vida não natural que tem como consequência ordinária a figuração da violência em suas mais diferentes formas. Afinal, a violência contra um animal está muito além de espancá-lo ou de matá-lo.
A violência pode ser manifestada a partir do simples e iterado ato de privá-lo de sua natureza, do trivial e pernicioso ato de não permitir que ele seja ele mesmo; de não permitir que ele crie vínculos sociais à sua maneira, nem mesmo desenvolva uma rotina condizente com seus anseios inerentes ou atávicos.
A natureza de um animal criado para consumo, logo objetificado, é comumente suplantada para dar lugar a uma natureza de viés mecanicista, em que ao animal não é permitido nenhum direito de escolha no decorrer de sua vida, nem mesmo o direito de escolher com quem se relacionar, como se alimentar. Enfim, nenhum direito em relação a nada.
Assim, seus hábitos são precocemente suprimidos e sua natureza inerente gradualmente obliterada. Dependendo do nível de obliteração, ele pode praticar ou não o canibalismo, que neste caso talvez seja um dos símbolos maiores do aviltamento e da degradação não humana em uma sociedade imersa na desconsideração e na negação de direitos não humanos.
A ressonância magnética e a quimera dos metais
Tive a impressão de que a máquina diminuía e me comprimia na mesma proporção que o som aumentava
Depois de mais de dez anos, voltei a fazer outro exame de ressonância magnética. Chegando na clínica, confirmei meus dados, assinei uma nova guia, recebi um crachá e sentei em uma confortável poltrona na sala ao lado enquanto o programa da Ana Maria Braga exibia a história de um arquiteto enfrentando problemas com cupins. Ao meu redor, ninguém falava nada. Todos se mantinham silenciosos, com a atenção voltada para a TV.
Tentei acompanhar o desfecho daquela tragédia moderna, mas foi impossível. Meus olhos se voltavam para a porta, aberta ou fechada, por onde as técnicas apareciam chamando os pacientes. Nessas circunstâncias a minha ansiedade se sobrepõe a qualquer outra sensação. Apesar da grande movimentação, logo ouvi meu nome. Ajeitei a touca e segui meu rumo porta adentro.
Caminhei até um vestiário e a moça disse que retornaria em dez minutos. Como de praxe, tirei minhas roupas e sentei na poltrona onde constatei outra vez como as clínicas figuram mais glaciais em dias de chuva. Até a mais sutil das brisas parece capaz de atravessar paredes e dar baforadas nos desavisados, lembrando que nada na vida é inatingível e que o momento pode ser tão duro quanto um arremedo de cimento.
Sobre a minha cabeça havia um pequeno cofre para guardar pertences como relógios, telefones celulares e outros objetos. O observei com atenção até que uma frase ecoou pela minha mente: “Deixe aí tudo que contenha metal porque senão pode acontecer alguma coisa ruim”, advertiu antes a técnica em ressonância magnética. Para corroborar, li um aviso ao lado da porta, informando que metais podem danificar a máquina e causar graves lesões nos pacientes.
Aquilo me preocupou tanto que mesmo nu continuei deslizando as mãos pelo meu corpo, tentando encontrar algum resquício de metal. “Será que não tem nada de metal no meu corpo? Será? Será?”, me questionei, tão angustiado que não descartei a possibilidade de brotar agulhas de chumbo debaixo das minhas unhas dos pés e fios de alumínio das minhas orelhas.
Cheguei a tirar a touca e esfregar as mãos nos cabelos para me certificar de que não havia granalha de aço no couro cabeludo. Depois de vestir a calça e a camiseta que me deram, fiquei pelo menos cinco minutos em insondável introspecção. E nesse ínterim divaguei tanto que meu corpo ficou dormente, tão letárgico que me senti como semente. Tentei levantar, mas não consegui me movimentar. Meus pés estavam presos num vazio imerso por um todo. “Que estranho! Parece um sinal!”, inferi.
De repente a técnica bateu na porta e me chamou. Então a segui até uma sala enorme. Fazia tanto tempo que eu não passava por uma ressonância que até esqueci como aquela máquina pode ser grande. Assim que deitei e sorri com brevidade, a moça franziu a testa e fez um esgar de desagrado. “Nossa, você usa aparelho! Não tem como tirar?” Respondi que não. Ela me observou por alguns segundos e consentiu.
“Olha, vai fazer um barulho tremendo, terrível, por isso vou colocar esses protetores no seu ouvido. Se você passar mal, é só acionar essa bolinha que tiro você lá de dentro, tudo bem?” Acenei positivamente com a cabeça, deitei fingindo tranquilidade e aguardei o início do exame, já enxergando aquele túnel branco como um crematório disfarçado.
Não me recordava como ele era pequeno visto de dentro. Após dois, três e quatro minutos, minha imaginação já tinha trabalhado como nunca. “Nem faz muito ruído. É um som paulatino e suave. Vou acabar dormindo”, ponderei depois de aproximadamente cinco minutos. Crente de que o exame chegava ao fim, ouvi um estrondo tão grande que meus olhos amiudados pelo sono se agigantaram.
Como fui tolo! O exame nem tinha começado. Junto com o barulho, tive a impressão de que a máquina diminuía e me comprimia na mesma proporção que o som aumentava, fora de cadência. E para agravar mais a situação, um barulho desconcertante soou como uma explosão.
“Caramba, será que aconteceu alguma coisa? E se essa máquina pegar fogo comigo aqui dentro?”, fantasiei, já notando as costas quentes e cogitando mudar de posição. Pior foi quando me recordei do aparelho nos dentes e não encontrei espaço o suficiente para levar a mão à boca. Me limitei a sentir a gengiva esbraseada.
Naquele momento uma salada de filmes macabros e distópicos percorreram minha mente. De “Eraserhead”, de David Lynch, ao trash “O Incrível Homem que Derreteu”, de William Sachs, que assisti escondido na Boca do Inferno quando era criança, divaguei por um universo intempestivo de tragédias.
Não foram poucas as vezes que encostei a língua no meu aparelho para ter certeza de que continuava tudo normal. E o barulho se intensificava. A ansiedade aumentava entre os intervalos porque o silêncio me desconcertava. Havia um tipo satírico de claustrofobia que fazia da minha mente uma refém. Respirei fundo, fechei os olhos e tentei restabelecer a serenidade. Não demorou e percebi que pode existir algo mais até na crua dissonância dos ruídos.
Então o barulho se transformou em música quando associei o que ouvi a filmes como “Corra, Lola, Corra” e “Trainspotting”, e bandas como Ministry, Atari Teenage Riot, Nine Inch Nails e KMFDM. Quando o exame terminou, tive a mais venusta das sensações de quem vê uma luz no fim do túnel. Levantei com o coração acalentado, me despedi da técnica e caminhei ao vestiário, onde uma moça que fez o mesmo exame gargalhava em frente a uma das portas. Vi que ela também usava aparelho nos dentes. Nem nos cumprimentamos. Somente rimos, reconhecendo na criatividade da ficção uma piada em forma de redenção.
A dura realidade de Nelson
Entregue ao vício, pedreiro sonha em se livrar do álcool e do crack
Nelson Ferreira Filho tinha dez anos quando viu a mãe ir embora para nunca mais voltar. Inconformado, seu pai começou a beber pinga todos os dias. “Ele comprava pra tomar no fim da tarde. Só que não percebeu que eu também me sentia abandonado. Então quando ele ia trabalhar eu bebia o litro de pinga inteiro sozinho. Meu pai ficava bravo comigo e eu com ele porque minha mãe sumiu”, narra.
Mais tarde, Nelson conseguiu se afastar do alcoolismo. Porém, retornou ao antigo vício quando a esposa deixou claro que queria a separação. “É a mãe de um de meus filhos. Quando a perdi há 15 anos, mergulhei no álcool de uma maneira que você nem imagina”, admite. Quem o conhece de longa data, relata com pesar a degradação de Ferreira Filho.
No auge da profissão, acostumado a circular pelas ruas da Vila Alta, na periferia de Paranavaí, com motocicletas caras, o pedreiro Nelson chegou a ter quatro casas, dois terrenos e uma boa grana na poupança. “Sou pedreiro bom, tenho tanta ferramenta que a maioria nem sabe para que serve. Trabalhei no ramo por quase 25 anos. Eu era o cara da Vila Alta, o pessoal me via como exemplo de sucesso. Tinha vida boa e gostava de ajudar todo mundo”, garante enquanto chora.
Há sete anos, quando perdeu outra esposa, Nelson encontrou na rua um garoto oferecendo “um negócio de fumar”. “Era crack. Me acostumei com a droga e vendi dois terrenos. Gastei tudo comprando pedra. Rapaz, já fumei até mil reais numa noite. Depois vendi minhas ferramentas de trabalho pra comprar droga”, revela.
Chegou a não se importar mais em ser flagrado fumando crack. Às vezes o desespero de Nelson era tão grande que ele invadia terrenos baldios e matagais para fumar pedra. “Eu fumava muito com um colega. Um cara levava todo dia 50 gramas na casa dele e a gente alucinava. Graças a Deus, ele se livrou da droga. Fico feliz por aquele cara. Ele não vem mais pra cá. Não gosta nem de lembrar. Só o encontro lá pra cima da Vila Operária”, assegura chorando.
A situação de Nelson piorou nos últimos cinco anos, quando se entregou completamente ao alcoolismo. Hoje em dia, o pedreiro acorda às 5h para beber. “A minha vida é essa. Bebo o dia todo se deixar. Tomo fácil dois litros de pinga, então quando quero cortar os efeitos do álcool eu fumo uma pedra de crack. Esta semana fumei quatro, mas o lance é que só fumo quando bebo. Se eu não bebo, eu não uso droga”, confidencia.
Por mês, Ferreira Filho gasta em média R$ 400 em dois bares onde compra pinga. Como a garrafa custa R$ 10, o acesso é fácil. “Muitas vezes o cara ‘tomba’ antes de terminar a garrafa, por isso não é difícil virar alcoólatra. Agora pra quem usa droga, R$ 10 não é nada. Outra facilidade é que toda hora tem gente te oferecendo bebida de graça. O povo bate até na porta de casa pra acordar pra beber. E se não tiver dinheiro, é só vender as coisas pra comprar o ‘goró’”, informa.
As muitas lembranças de Nelson na casa onde viveu com a família o motivou a sair de lá para morar em uma residência alugada. No local, há apenas duas camas, um fogão e uma geladeira. “Lembro de tudo que fiz de errado na minha vida. Seis mulheres que tive moraram lá, além dos meus filhos. E como eu já vivia sozinho, eu quis sair. Hoje fico por aí, pelas ruas. Quando caio bêbado em algum lugar, sempre tem alguém que me puxa pelos braços, me arrasta e me deixa em casa”, destaca.
O estado do pedreiro é tão grave que ele não consegue dormir quando não bebe. O consumo constante de álcool o obrigou a interromper o uso do sedativo Diazepam porque a combinação poderia ser desastrosa. “Já bebi e tomei remédio ao mesmo tempo e me deu um branco daqueles. Fiquei com medo de não acordar mais. Passa muita coisa pela minha cabeça. Quero ver meus netos crescendo. Esses dias uma nora trouxe um pra eu ver. Eu estava sentado em frente ao portão. Amo todos eles”, afirma.
Nelson diz que se sente mal pelo sofrimento que causou à família, sonha em se livrar do vício e em viver novamente com a esposa. “É muito amor. Preciso me curar. Tenho cinco filhos. Três são casados e dois são pequenos”, enfatiza sorrindo e enxugando as lágrimas do rosto.
Ouvia gente cochichando no quintal e corria com foice ou facão
Morador da Vila Alta desde 1986, Nelson Ferreira Filho se orgulha da profissão de pedreiro e também de ter trabalhado como segurança de prefeito. No entanto, quando fala do presente reconhece que a única solução para se livrar do alcoolismo, vício que inclusive o motiva a usar drogas, é o internamento em uma clínica de reabilitação. “Preciso de uma psicóloga pra trabalhar na minha cabeça. Sou explosivo e não quero mais essa vida. Fico perigoso e violento quando bebo demais”, confessa.
Sofrendo de ansiedade e depressão há anos, não se esquece do dia em que subiu na moto e foi a Alto Paraná [a 20 quilômetros de Paranavaí] à toa quatro vezes consecutivas. “Fiz isso na ‘noia’, na ‘pira’. Achei que se ficasse parado iria enlouquecer. Já fiz coisa mais estranha ainda. O crack me dá alucinação, coisa do diabo. Direto eu ouvia gente cochichando no quintal, daí eu corria em volta da casa com foice ou facão e via que não tinha ninguém. Quando decidi parar com a droga, a minha mulher já tinha ido embora. Há pouco tempo mesmo tive alucinação e fiquei três dias sem dormir”, conta Nelson que é aposentado por invalidez.
Apesar dos problemas com o alcoolismo, Ferreira Filho deixa claro que não tem coragem de ir atrás da família porque tem vergonha da própria situação. “Você tem poucos amigos quando bebe e usa droga. Quase todo mundo se afasta de você. Não me considero mais dependente químico porque chego a ficar até meses sem usar crack”, argumenta e lembra que está devendo R$ 40 reais em uma boca de fumo.
Dois encontros com a morte
Há 20 anos, antes de ser demitido de uma construtora, o pedreiro Nelson Ferreira Filho trabalhou até a noite em uma obra. No dia seguinte, discutiu com o patrão por causa da demissão. Bastante irritado, foi até um bar, comprou uma garrafa de pinga e bebeu tudo sozinho. Depois subiu na moto e dirigiu até as imediações da Serpavi, atual Secretaria Municipal de Infraestrutura, onde foi atropelado por um caminhão da prefeitura que atravessou a preferencial.
“O motorista sumiu de Paranavaí com medo de mim. Não vi nada depois da pancada. Tive uma fratura exposta tão grave que o médico queria amputar minha perna. Aí implorei pra ele não cortar. Fizeram uma gambiarra lá e não perdi a perna, só que ela não levanta mais. Ando mancando, puxando a perna”, relata e exibe uma grande cicatriz que começa no pé e termina quase no joelho. Além disso, perdeu os movimentos de um braço.
O que também afetou muito o estado psicológico e emocional de Ferreira Filho foi a declaração do juiz durante uma audiência para conseguir a aposentadoria por invalidez. “Ele disse que eu não tinha como provar que era inválido. Eu nem andava na época, pra você ter uma ideia. E mesmo assim o juiz falou isso. Quando chove, não consigo caminhar. A outra perna tá boa”, pontua.
O acidente foi o segundo encontro do pedreiro com a morte. O primeiro aconteceu quando ele tinha 20 anos e estava trabalhando como lenhador. Nelson era um dos sete passageiros de um caminhão que retornava de Nova Olímpia, na região de Umuarama, também no Noroeste do Paraná. Antes que o motorista percebesse, o veículo ficou sem freio no trevo perto de Cianorte. “Até uma criança, filho do motorista, estava com a gente. O caminhão foi parar no canavial. Ainda bem que ninguém morreu. Quando saí do hospital, falaram que não sobrou nada do caminhão. Aquele dia foi Deus que abençoou”, comenta.
Frase de Nelson Ferreira Filho
“Tive uma esposa que foi morta na mesa de cirurgia por um médico daqui de Paranavaí. Hoje ele continua trabalhando como se nada tivesse acontecido.”