David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

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O que aprendi com meu pai vale por uma vida

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Arte: Min Suh

Meu pai faleceu quando eu tinha 13 anos, mas o que aprendi com ele vale por uma vida; e isso nem o tempo é capaz de apagar. Sou grato por ter sido uma criança curiosa, atenta e observadora, assim os ensinamentos da minha infância podem me acompanhar até o fim dos meus dias.

Written by David Arioch

June 21st, 2017 at 11:36 pm

Posted in Reflexões

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Sobre uma grande decepção

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Arte: Azraelengel

Ontem, eu tive uma grande decepção com uma pessoa bem próxima de mim. Ela fez algo que eu jamais seria capaz de fazer. Por ser alguém em quem eu confiava, senti um imenso mal-estar nas primeiras horas. Fiquei atordoado tentando processar o que aconteceu, que mais parecia um pesadelo do que realidade. Não senti raiva nem ódio; não ofendi, não xinguei, só lamentei. Sou grato à vida por ter me feito assim.

O que as pessoas me oferecem de ruim, não ofereço a elas, porque não é algo que condiz com a minha natureza. Muito pelo contrário, seria somente eu não sendo quem sou, mascarando a minha própria identidade. Achei melhor optar pela distância, mas em vez de praguejar ou dizer qualquer coisa negativa, o que nunca foi do meu feitio, preferi desejar votos sinceros de que ela receba o melhor da vida, porque é isso que realmente desejo. Eu me recupero e a vida continua.

Written by David Arioch

June 14th, 2017 at 1:54 am

O que aprendi frequentando a periferia

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É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida

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Alguns dos jovens com quem aprendi muito na Vila Alta (Foto: David Arioch)

Por meio de um amigo, o artista plástico Jesus Soares, comecei a conhecer melhor a periferia em 2009. Desde então, devo dizer que aprendi muito. Tem sido uma grande oportunidade de entendimento, sabedoria e desenvolvimento moral e ético. Gostei tanto da experiência que em 2014 produzi um documentário sobre a história da Vila Alta, um dos bairros mais pobres e marginalizados de Paranavaí, no Noroeste do Paraná.

Ao longo dos anos, conheci muitas crianças e adolescentes naquele lugar. E logo que comecei a observar seus hábitos e registrar suas experiências de vida, reconheci o balaio cultural que é a periferia. Na Vila Alta, os jovens têm linguagem própria, uma mistura curiosa de sotaques e gírias do Sul e do Sudeste do Brasil, além de neologismos tipicamente locais, o que renderia um bom trabalho de pesquisa em linguística.

Lá, os moradores buscam meios de se destacarem. Se não através da educação formal e do trabalho, pelo menos esteticamente. Crianças, adolescentes e jovens adultos pintam os cabelos com cores chamativas, fabricam brinquedos e maquininhas de tatuagem – se tatuam à sua maneira, personalizam os próprios tênis e roupas, e criam adereços jamais vistos em qualquer outro lugar, como anéis, pulseiras e colares baseados em matérias-primas inimagináveis. Também fazem arte com barbante para colocarem nos quadros das bicicletas e cantam músicas próprias sobre a realidade da periferia, só para citar alguns exemplos.

Interpreto tudo isso como consequência de um anseio. Eles não querem apenas viver, mas existir. Desejam respeito e reconhecimento, e acreditam que isso só pode ser alcançado se fizerem algo que a maioria não faz ou tiverem algo que a maioria não tem. Há muito tempo tenho notado adolescentes da periferia que sonham com roupas e calçados caros, mesmo que isso signifique gastar a maior parte do salário. E sem dúvida é uma meta normalmente depreciada por quem não faz parte daquele contexto.

Eu, por exemplo, venho de uma realidade diferente, onde roupas e calçados nunca significaram nada – cresci sem me importar com marcas. E só depois de adulto comecei a entender melhor porque jovens da periferia pagam tão caro em alguns bens. E quando penso nisso, sempre me recordo de uma situação que vivi na infância. Um dia, notei que um dos colaboradores da minha mãe, morador da periferia, usava um tênis recém-lançado que vi num comercial de TV, e aquilo me surpreendeu:

“Nossa! Que caro! Ele deve gostar muito de tênis”, pensei. Descobri mais tarde que o rapaz usava um caro par de tênis não apenas por gostar de tênis, mas porque era um meio de se destacar, de destoar da maioria. No universo dele, o tênis representava o mesmo que um carro para alguém de outro contexto social. E isso ajudava a elevar a sua autoestima.

Ponderando sobre o assunto, vejo como somos falhos ao julgar escolhas alheias, principalmente de quem vive na periferia. Afinal, todo mundo já ouviu uma pessoa criticando alguém por ter pagado tão “caro” em algo. Acho que se de algum modo aquilo proporciona algum bem-estar, que assim seja, é isso que importa, até porque não sabemos o que representa para o outro. É um erro analisarmos ações que não são nossas a partir do nosso ideal de vida. O mundo é diverso, e parece-me que temos dificuldade em aceitar o fato de que ele não se resume à universalização de nossas crenças e inclinações.

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Written by David Arioch

July 14th, 2016 at 1:46 pm

O guarda Clemente

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Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento

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Cruzamento onde Clemente impediu que Beto fosse atropelado (Foto: David Arioch)

Quando eu tinha seis anos, todos os dias um guarda nos aguardava na mesma rua para fazer a nossa travessia. Eu e centenas de outras crianças passávamos por lá pontualmente. Clemente sorria de longe e estendia a mão com tanta devoção que até os raios de sol pareciam mais intensos, iluminando sua fronte e destacando seus dentes nevados.

Levava o apito à boca e emitia um som curto e oxítono, porém eficaz. Era o suficiente para que todos ficassem atentos. Então Clemente segurava minha mão miúda com firmeza e me guiava até a calçada da escola, me protegendo de motos, carros, caminhonetes e caminhões. Cuidadoso, sempre mantinha o próprio corpo mais próximo dos veículos enquanto o meu era velado pelo seu.

A sincronia entre o apito e a instantânea paragem era surreal, como se coreografada. E poucos ousavam encostar sequer um centímetro de pneu na faixa de pedestre. Se alguém o fizesse, Clemente tirava uma trena do bolso, agachava no asfalto por segundos, caminhava até o motorista e o cumprimentava com um caloroso aperto de mão.

“Como vai? Tudo bem? Está quente hoje, não? Imagino que o senhor tenha pressa, claro, quem não tem hoje em dia, não é mesmo, meu amigo? Por isso entendo porque o senhor está com os dois pneus dianteiros sobre a faixa. Acontece. A pressa faz a gente cometer esses pequenos deslizes. Dê uma olhadinha aqui. São apenas 25 centímetros de invasão, o que acredito que o senhor, assim como eu, sabe que não vai garantir que o senhor chegue mais rápido a lugar nenhum. E, claro, agora não temos muitas crianças na rua, mas há horários em que esse espacinho faz uma falta que o senhor nem imagina. Posso contar com sua colaboração?”, disse num início de tarde, retribuindo a concordância do motorista com um aceno de cabeça e um sorriso frugal.

Durante a travessia com Clemente, eu erguia a cabeça, mirando o céu com o nariz, e o observava. Pequeno, eu acreditava que ele podia tocar aquela imensidão azul com o topo do seu quepe. Eu via seu bigode escuro, espesso e longo como se fosse as cortinas do firmamento. As nuvens se moviam próximas de sua cabeça, reafirmando a ideia de que pelo menos naquele cruzamento ele era a autoridade suprema, e além dele não havia mais ninguém.

Após às 17h30, quando o sinal da escola era acionado, avisando que as aulas acabaram, fazíamos o mesmo trajeto. Horas se passavam e Clemente continuava sorrindo e estendendo as mãos. Ele jamais demonstrava cansaço, irritação ou enfado. Era tão educado que às vezes os motoristas estacionavam seus veículos e caminhavam até ele para parabenizá-lo pelo trabalho.

E aquilo fazia dele um dos personagens mais admiráveis da minha infância, alguém em quem eu também poderia me espelhar para me tornar um ser humano digno quando crescesse. Não era raro ver pessoas querendo presenteá-lo. Comprometido com sua ética de trabalho, ele agradecia com olhos abrilhantados e recusava, a não ser os presentes feitos a mão, uma comidinha ou doce caseiro.

Criança, eu nunca tinha ouvido falar em racismo, até que no recreio perguntei ao meu coleguinha Beto porque ele e alguns outros garotos não seguravam a mão de Clemente. Inclusive um dia o vi tirando a mão do guarda de cima do seu ombro. “Ué, porque ele é preto! Meu pai falou que não devia existir guarda preto porque essa gente não é de confiança; tem só a palma da mão branca. Fora que tem mau cheiro e cabelo duro”, respondeu com naturalidade.

Assustado, fiquei em silêncio. Durante o recreio, sem saber o que aquilo significava, sentei num canto do pátio e pensei nas palavras de Beto. Me dei conta de que realmente Clemente era um homem negro, o primeiro que vi desde que nasci, mas e daí? Dias depois, Beto me deu um ultimato falando que eu não poderia andar mais com ele e com outros três coleguinhas se eu continuasse segurando a mão de Clemente. Ignorei e ao longo de meses fui excluído das brincadeiras no parquinho da escola. Na hora do futsal, Beto convencia todas as outras crianças a me deixarem de fora.

Um mês se passou e não vi mais clemente no cruzamento, seu local de trabalho. Ele não voltaria mais. Em seu lugar colocaram um rapaz loiro e de olhos claros que dedicava sua atenção às adolescentes que circulavam pelas imediações. Influente, o pai de Beto conseguiu fazer com que Clemente fosse transferido para outra cidade. Inventaram uma desculpa de falta de guardas e o convenceram a partir.

Mais tarde, num sábado, Beto caminhava e chupava um picolé quando foi surpreendido por um carro desgovernado que invadiu a calçada no cruzamento da Rua Pernambuco com a Rua Souza Naves. Aturdido, jogou o palito, fechou os olhos e se encolheu. Não viu Clemente sair do mercado, arremessar as sacolas e se jogar com ele no asfalto.

O guarda ganhou ferimentos superficiais por todo o corpo. Ao ver Beto ileso, sorriu, sem se importar com a roupa rasgada. Constrangido e com olhos esgazeados, o menino se encolheu em posição fetal. Descobriu que a mão rejeitada é aquela que mais deveria ter sido afagada.

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Dio, a descoberta do bombachinha

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Me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira

Vivia solto, percorrendo todo e qualquer espaço que lhe agradasse ou atiçasse sua curiosidade

Eu tinha oito ou nove anos. Cheguei em casa e me surpreendi ao ver no quintal um gavião-bombachinha empoleirado no galho da jabuticabeira. Ele era filhote e minha mãe o encontrou ferido nas imediações de um terreno baldio. Cuidou dele e logo ele se recuperou, mas não quis partir. Vivia solto em casa, percorrendo todo e qualquer espaço que lhe agradasse ou atiçasse sua curiosidade. Sua penugem plúmbea contrastava com o céu claro em dias quentes. Eu dizia que ele era o senhor da chuva porque suas penas acinzentadas eram como o firmamento nuvioso. Sempre que alguém me perguntava porque Diodon tinha as penas próximas do pé direito alaranjadas, eu repetia a mesma história que inventei:

“Num dia de pouca claridade ele voou tão alto que o Sol ficou com raiva e apareceu de repente queimando apenas uma pequena porção de suas penas. O susto foi tão grande que até seus olhos azuis mudaram de cor – uma lembrança sem fim de sua teimosia.” Dio era tranquilo e silencioso, porém não gostava de interagir com outros animais. Apenas os assistia à distância, como se do galho onde repousava observasse os súditos de seu reino. Tinha um olhar inquiridor e ao mesmo tempo singelo e lhano. Não era capaz de caçar, então recaía sobre nós a responsabilidade de alimentá-lo com carne moída com carbonato de cálcio em pó.

A primeira vez que ele subiu no meu dedo, senti cócegas. Quando comecei a rir, Dio abriu o bico e emitiu um guincho oxítono e estiolado. Tive a impressão de que ele quis retribuir minhas gargalhadas à sua maneira. Conforme Diodon crescia, meus dedos se tornaram insuficientes para resguardá-lo, e ele decidiu se aninhar em meu braço e ombro, principalmente perto do pescoço, onde aprendeu a me cutucar sutilmente com as garras. Sobre a minha espádua, Dio sempre chamava a atenção de curiosos no centro de Paranavaí. Vez ou outra abria as asas como um leque, reafirmando sua imponência. Seus olhos estalados me davam a impressão de que sua visão atilada contemplava tudo que o cercava, a exemplo de sua audição. Nada passava despercebido, nem mesmo uma folha solitária arrastada pela brisa para dentro de uma boca de lobo.

Ocasionalmente ele se encolhia na presença de estranhos, velando parte do corpo atrás de mim. Era inevitável sentir cócegas e gargalhar ao perceber seu bico ruço ponteando a minha cabeça. Então ele movia os pezinhos à esquerda, até tocar meu deltoide, e me observava com atenção, já ignorando as visitas que ele encarava como intrusão. Apesar do estranhamento que durou meses, os poodles Happy e Chemmy já não eram mais vistos por Dio como ameaças. Ao analisá-los, seu comportamento mudou consideravelmente. Me recordo quando flagrei o caritativo Chemmy lambendo as penas de Diodon. Silencioso, o bombachinha mirava o bico em direção ao céu índigo com ar contemplativo.

Naquele final de tarde, assim que o estrepitoso Happy se aproximou para lamber seu bico, Dio não se posicionou para bicar seu focinho como de costume. A verdade é que não se importou. Talvez nem tivesse notado o que aconteceu e continuou admirando a amplidão celeste, abstraído da terra e lançado aos céus por onde flutuava sob sonhos maviosos como suas penas. Happy estranhou a passividade do gavião e o examinou com expressão exultante e enleada. Os poodles recuaram quando o bombachinha agitou as asas e caminhou até o quintal, em direção à jabuticabeira. Subindo de galho em galho, chegou ao topo. Hesitou por quase um minuto e de repente saltou com as asas abertas.

Durante o voo, Dio guinchava com tanta excitação que chamou a atenção de vizinhos e estranhos que passavam pela Rua Artur Bernardes. Ele estava feliz e até os mais airados percebiam isso. Era como se o céu desanuviado ganhasse um novo dono, um jovem animalzinho que descobriu através da observação que o sopro da vida também subsiste na concessão. Todos os dias à tarde ele voava no mesmo horário. Achando aquilo curioso, comecei a cronometrar a duração de seus passeios e incursões. Uma hora, duas horas, três horas, quatro horas. A cada semana que passava eu notava que menos tempo em casa Diodon ficava. Foi quando me dei conta que seu lar já não era um lugar, mas um espaço inestimado por onde suas asas balouçavam com a pureza de um cavalo alado.

Na última vez que o encontrei em casa, ele bicou carinhosamente a minha cabeça. Suas penas estavam mais vibrantes, assim como seus olhos rutilantes de citrino que me transmitiam astúcia e convicção. Diodon não era mais o miúdo bombachinha que chegou em casa ferido, desnutrido e com poucas penas. Embora não gostasse de abraços, permitiu que eu o envolvesse rapidamente entre os meus, sem sequer apontar suas longas e afiadas garras. O soltei e ele reproduziu o mesmo guinchado da primeira vez em que subiu em meu dedo. Em poucos minutos, Dio foi embora e nunca mais voltou. Não o procuramos porque não há o que encontrar quando a partida é motivada pelo anseio intempestivo de voar.

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