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Os animais não matam por um prazer sádico

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Foto: Defenders.org

Um exemplo clássico da conduta humana cotidiana em minimizar o valor da vida animal é dizer que os piores assassinatos parecem trabalho de animais, pela ausência de piedade. Porém, os animais não fazem isso por um prazer sádico, ao contrário de quem comete um assassinato bárbaro.

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Written by David Arioch

June 3rd, 2017 at 8:54 pm

Sobre matanças e os temidos quebra milho

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Experiências e impressões sobre criminosos que viveram em Paranavaí nos tempos de colonização

Frei Ulrico: "Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos" (Acervo: Ordem do Carmo)

Frei Ulrico: “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos” (Acervo: Ordem do Carmo)

Embora tenha falecido há muitos anos, o frei alemão Ulrico Goevert, um dos pioneiros religiosos de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, tinha o hábito de registrar muito do que via e ouvia na antiga Fazenda Brasileira. O primeiro diário de Goevert sobre os fatos aqui vividos data de 1951. Sete anos mais tarde, a convite do padre provincial Adalbert Deckert, de Bamberg, no estado alemão da Baviera, o frei começou a publicar suas experiências em Paranavaí na revista germânica Karmel-Stimmen, onde ganhou uma coluna periódica.

Entre os relatos que mais chamaram a atenção dos alemães está um sobre as matanças promovidas pelos quebra milho, como eram chamados os jagunços e grileiros violentos que viviam na região de Paranavaí entre os anos 1940 e 1950. “Muitos que aqui chegavam de outros estados e países buscavam construir uma nova vida. Tudo isso resultou em uma grande mistura internacional”, conta Ulrico Goevert, acrescentando que no meio de tanta gente havia famílias sonhadoras, oportunistas gananciosos e aventureiros preocupados apenas com o presente.

O frei alemão admitiu anos mais tarde que entre 1951 e 1958 foi procurado por quebra milho das mais diversas origens. “Não foram poucas as confidências de assassinatos e crimes hediondos. Me procuravam pedindo para ajudar a tirar as mortes da consciência”, lembra. O contato frequente com a comunidade fez Goevert se aprofundar um pouco mais sobre o passado duvidoso de uma significativa parcela da população local. “Eu era procurado até por aqueles que não queriam mais do que continuar a sua velha safadeza neste novo lugar”, declara. Boa parte pedia informações ao padre sobre como providenciar novos documentos para dar início a uma nova vida, se isentando dos crimes do passado.

Em Paranavaí, no final dos anos 1940 até a metade da década de 1950, muita gente conseguiu mudar de nome, enganando a polícia e os perseguidores que percorriam milhares de quilômetros para acertar as contas. “Aqueles que demonstravam verdadeira boa vontade, eu consegui ajudar, possivelmente os livrando da morte. O que mais podia fazer se não contribuir para torná-los membros úteis de uma comunidade?”, questiona o frei alemão na coluna mais lida da revista Karmel-Stimmen em 1958.

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse fatos sobre Paranavaí na revista Karmmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Adalbert Deckert pediu que Goevert escrevesse sobre Paranavaí na revista Karmel-Stimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

Perdulários, os quebra milho eram temidos e chamavam muita atenção em Paranavaí pelos gastos astronômicos com bebidas, comidas e orgias em locais como a Boate da Cigana. No entanto, algumas festas eram particulares e aconteciam em locais afastados da cidade. “Eles apenas ordenavam que buscassem as moças, escolhidas a dedo, que iriam servir para o lazer”, confidencia o pioneiro cearense João Mariano.

Tudo era custeado com pequenas fortunas conquistadas em um curto período de tempo explorando mão de obra barata na derrubada de mata e lavouras ou cobrando dívidas e desapropriando terras ilegalmente. “Eram promotores de um estilo de vida totalmente imoral e leviano. Não tinham interesse em mudar. Viviam em função da sequência roubo, homicídio e morte”, registra o alemão.

Apesar de não haver dados sobre a quantidade de quebra milho nos tempos da colonização, é possível inferir que era o suficiente para amedrontar a população. “Não se passava um mês sem eu ter de dar a unção a alguma vítima de assassinato, nem sempre o morto fazia parte desta leviana corja. Tivemos muitos homicídios por causa de direitos de posse”, frisa Ulrico Goevert.

Os crimes eram quase inevitáveis quando dois ou mais proprietários de um mesmo pedaço de terra se encontravam. Um apresentava ao outro o documento que dizia ser legal e reivindicava o direito da área. “Um não queria ceder e muito menos o outro. A discussão só acabava quando puxavam o revólver”, afirma o frei que presenciou algumas dessas situações. Com o tempo, o alemão começou a tentar entender como várias pessoas tinham diferentes escrituras de uma mesma terra. Depois de muito pesquisar, Goevert descobriu que a diferença entre um documento e outro ultrapassava décadas.

A verdade é que em outros tempos alguns oportunistas compraram terras em áreas não colonizadas de Paranavaí e desistiram de construir, levando em conta o investimento com derrubada de mata e povoamento. Então esperavam anos, até alguém iniciar a colonização da região. O tempo passava e o governo autorizava uma nova venda de uma área comercializada muito tempo antes. “Quando tudo ficava aberto, limpo e habitável aparecia gente até com documentos do Século XIX e a confusão se armava”, detalha o líder religioso.

Não é à toa que até hoje há pioneiros em Paranavaí que culpam o governo federal e o governo paranaense por diversos assassinatos provocados por conflitos de posse e comissão de terras. “A situação esquentava e ninguém fazia nada. Se o poder público entrasse no meio para tentar amenizar a situação, quem sabe até disponibilizando uma nova terra à parte lesada, teríamos evitado tantas mortes. Com o sangue quente, e ninguém para ajudar, o peão perdia o controle e matava”, pondera Mariano.

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

Alguns criminosos trabalhavam dando suporte na derrubada de mata (Acervo: Ordem do Carmo)

As colonizadoras também ignoravam as negociações anteriores e simplesmente continuavam a atrair mais colonos com a venda de lotes pagos em pequenas parcelas. “Também perdi as contas de quantas mulheres apareceram reclamando a paternidade do filho e mostrando a foto do pai que já tinha outra família em Paranavaí”, desabafa o frei.

Normalmente o homem fugia de madrugada, abandonando as duas mulheres. A vontade de escapar da responsabilidade era tão grande que o sujeito atravessava a densa mata fechada habitada por animais silvestres e ainda cortava o Rio Paraná com algum bote. “É quase certo que no Mato Grosso o fujão começava tudo de novo”, lamenta frei Ulrico.

O perfil e a conduta dos quebra milho

De acordo com o pioneiro cearense João Mariano, os quebra milho eram homens das mais diversas origens que podiam andar em grupos, duplas ou sozinhos. Chegavam a Paranavaí com um plano de ação definido. Eram contratados para comandar as mais diversas atividades, desde grupos de peões atuando na derrubada de mata até cobranças de dívidas e comissões de terras. “Um quebra milho não sentia remorso em tirar uma vida, mas também não fazia isso de graça ou por qualquer coisa. Eram como mercenários, mas com código de conduta”, explica Mariano.

A conduta era ditada pelo dinheiro, não por vingança ou punição. Quanto maior a recompensa, menor a preocupação com a exposição. Se o retorno financeiro fosse grande, não se importavam em invadir um bar cheio de gente para assassinar três ou quatro pessoas. “Ele ia, fazia o serviço e partia, sem olhar para ninguém a sua volta, a não ser as vítimas. Só que se fosse incumbido de cobrar alguma coisa sem matar ninguém, o sujeito também atendia a exigência”, esclarece o pioneiro que ao longo da vida conheceu muitos quebra milho, inclusive teve amizade com alguns.

Paranavaí nos tempos dos quebradores de milho (Acervo: Casa da Cultura)

Paranavaí nos tempos dos quebra milho (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

Ao contrário do senso comum, dificilmente reagiam quando eram provocados por alguém sem envolvimento com seus negócios. Isso porque não traria retorno financeiro – a lógica da função. Metódicos, os quebra milho da Fazenda Brasileira dificilmente agiam por impulso. Além disso, não atuavam apenas em Paranavaí, mas em todo o Paraná, chegando a prestar serviços em São Paulo, Mato Grosso (incluindo o Mato Grosso do Sul), Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente a serviço de grandes empresários e latifundiários.

“Sei de alguns que encheram caminhões de cadáveres lá pelas bandas de Querência do Norte numa desapropriação ilegal e forçada. Tudo foi feito a mando de uma família tradicional da região de Maringá”, segreda Mariano que viu quando o caminhão estacionou em frente ao antigo Hospital João Cândido Ferreira (Hospital do Estado), onde é hoje a Praça da Xícara.

O veículo encostou e de longe os curiosos sentiram um forte odor de sangue que invadiu o centro da cidade. João Mariano diz que nunca tinha visto tanta gente morta em um mesmo local. “Havia dezenas. A maioria foi levada direto para um necrotério improvisado. Tinha tanto sangue que escorria até pelos pneus”, assegura.

Os quebradores eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Os quebra milho eram responsáveis pelas levas de cadáveres que chegavam ao Hospital do Estado (Foto: Reprodução)

Por medo, nos anos 1940 e 1950, quando se falava em quebra milho, a maior parte da população não se manifestava sobre o assunto. Habilidosos com armas de fogo e armas brancas, inúmeros foram identificados como ex-jagunços, ex-guerrilheiros, criminosos condenados ou procurados, antigos membros de brigadas e de grupos paramilitares, além de desertores do Exército Brasileiro.

À época, como Paranavaí era apenas uma colônia, podiam ser facilmente identificados, mas ninguém queria se meter em confusão. Personagens controversos, os quebra milho fazem parte da história de Paranavaí, onde já viviam no princípio da colonização da Fazenda Brasileira na década de 1930. “Policiavam” e impediam que os migrantes atuando nas lavouras de café abandonassem o trabalho. Quem tentasse era abatido em barrancos às margens de algum rio ou durante a travessia. Antes do descarte de cadáveres, os criminosos os abriam, os enchiam com pedras, costuravam e os lançavam na água para afundar rapidamente, impossibilitando a localização.

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Fazendo a diferença em Ruanda

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Violette Mutegwamaso, a mulher que superou uma guerra civil e o brutal assassinato do marido

Aldeia onde a então dona-de-casa vivia com a família (Foto: Rosemary Lycett)

Aldeia onde a então dona de casa vivia com a família (Foto: Rosemary Lycett)

Em 1994, milícias armadas entraram em conflito em Ruanda, na região dos Grandes Lagos da África. Pessoas de etnias hutu e tutsi tornaram-se inimigos mortais, se enfrentando pelas ruas à luz do dia. A motivação foi o desvio de recursos que deveriam ser utilizados para a reestruturação do país. Com a expansão do caos, iniciado na capital Kigali, 250 mil pessoas foram mortas. Ainda assim, muita gente acreditava que estava livre das zonas de guerra civil. Um exemplo era a dona de casa Violette Mutegwamaso que cuidava dos filhos enquanto o marido trabalhava na capital, a três horas de distância de Gahini, a pacata aldeia onde a família sempre viveu.

“Quando percebi que a guerra já estava ao lado, peguei meus dois filhos nos braços e fugi para a igreja mais próxima. Pensei que encontraria um santuário de paz. Na realidade, entrei em um pesadelo”, lembra. Atacados por uma milícia munida de facões e armas de fogo, muitos moradores de Gahini caíram mortos dentro da igreja. Para sobreviver, Violette deitou-se em um corredor e lambuzou os corpos dos filhos e o próprio com sangue para evitar que os agressores os matassem.

“Nos escondemos entre os cadáveres e nos fingimos de mortos. Ficamos naquela igreja por uma semana até que o exército ruandense apareceu para libertar a área”, conta. No episódio, sobreviveram apenas 20 pessoas dentre os mais de 700 escondidos no templo religioso. O marido de Violette não teve a mesma sorte. Foi brutalmente assassinado quando retornava para casa depois de mais um dia de trabalho.

Sobrevivente viu a morte de centenas de pessoas (Foto: Daniel Chen)

Sobrevivente viu a morte de centenas de pessoas (Foto: Daniel Chen)

A dona de casa se viu obrigada a assumir sozinha a criação do filho Eric, de cinco anos, e Angelique, de quatro anos. Demonstrando muita força, Violette ainda cuidou de um órfão que perdeu a família inteira na guerra. “Não tive quase apoio, mas tentei reconstruir a vida cultivando as terras de outras pessoas. O que ganhava não dava para alimentar a mim e meus filhos. Também não conseguia pagar a escola, comprar remédios e roupas. Foi muito difícil”, admite em tom emocionado.

Dez anos depois, Violette ouviu falar de um programa internacional de patrocínio para mulheres. Sem nada a perder, se matriculou e ganhou uma ajuda da estadunidense Liz Hammer, uma mãe de dois filhos comprometida em repassar 30 dólares por mês ao longo de um ano. A quantia que partia de Boston pode parecer ínfima para muita gente, mas Violette soube fazer a diferença com tão pouco.

Usou o dinheiro para investir em cerveja de sorgo. “Cheguei a produzir uma tonelada e meia do cereal. Ainda assim, a demanda era tão grande que tive de comprar sorgo de outros agricultores”, explica. De modo artesanal, Violette Mutegwamaso preparava de 150 a 180 litros de cerveja a cada três dias, lucrando cerca de 50 dólares por lote.

Com o dinheiro da bebida, investiu no plantio de feijão. Além de garantir alimento para a família, também conquistou uma nova fonte de renda. “Se o preço está alto, vendo o feijão para os vizinhos. Já quando cai, repasso no atacado para lojas e restaurantes”, revela. Enquanto a maior parte da população de Ruanda tinha uma renda mensal familiar de 260 dólares, segundo dados do Banco Mundial, Violette, superando todas as expectativas, já conseguia faturar 1,8 mil dólares com a safra de feijão.

Marido de Violette morreu durante a Guerra Civil de Ruanda (Foto: Frank Randall)

Marido de Violette foi uma das vítimas fatais da Guerra Civil de Ruanda (Foto: Frank Randall)

Mais tarde, ampliou ainda mais os negócios e contratou trabalhadoras locais para atuar no campo e no gerenciamento das atividades. Preocupada com a comunidade, fez um empréstimo bancário para instalar uma tubulação de água na aldeia, evitando que as mulheres tivessem de andar por horas até achar uma torneira. “Vivemos em um país onde apenas 20% das pessoas tem acesso à água potável, então muitas mulheres são obrigadas a carregar jarros pesados por longas distâncias”, desabafa.

Hoje, Violette Mutegwamaso é presidente de uma cooperativa de artesanato. Dentre os produtos mais populares está a cesta de paz que faz parte da cultura ruandense e normalmente é comprada para presentear a noiva e o noivo no dia do casamento. “Também vendemos bastante cerâmica e artigos de crochê. Fico feliz por reunir na mesma cooperativa mulheres de origem hutu, tutsi e twa. Elas sentam lado a lado para tecer fibras de sisal com técnicas tradicionais de desenho”, afirma Violette.

A cooperativa tirou da miséria muitas vítimas do genocídio e até mesmo pessoas que assumiram a autoria dos mais chocantes homicídios cometidos durante a Guerra Civil de Ruanda. “Se perdoei o assassino do meu marido por que não aceitaria aqueles que cometeram outros crimes?”, questiona, incitando reflexão.

The Bang Bang Club, barbárie na África do Sul pós-Apartheid

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Livro e filme contam as experiências de quatro jovens em meio ao caos da Guerra Civil Africana

Filme se passa na África do Sul de 1990 a 1994 (Foto: Reprodução)

O filme The Bang Bang Club, do canadense Steven Silver e lançado em 2010, conta a trajetória de quatro jovens caucasianos: Greg Marinovich, João Silva, Ken Oosterbroek e Kevin Carter, fotógrafos criados nos bairros de classe média de Joanesburgo, na África do Sul, que trabalhavam para o jornal The Star. Entre os anos de 1990 e 1994, registraram muitos momentos profundos e simbólicos da guerra civil que custou a vida de milhares de membros do Congresso Nacional Africano (CNA), de Nelson Mandela, e do grupo separatista de origem zulu Inkatha, formado por moradores da área rural. A história se desenrola em paralelo a um dos momentos mais importantes da política sul-africana, quando um referendo nacional estabelece o fim do Apartheid e oferece a toda a população a oportunidade de votar.

Em 2004, li o livro The Bang Bang Club que desperta questionamentos e reflexões existenciais sobre a banalização da vida, crueldade e barbárie com as quais o ser humano é capaz de conviver como se fosse algo tão natural quanto tomar um copo d’água. O filme homônimo também é pesado, agressivo e carregado de uma carga psicológica tão extenuante que reflete a própria condição da realidade sul-africana da época, transmitida com esmero estético por uma direção de fotografia que privilegia a perspectiva panorâmica dos fotógrafos em ação. A obra levanta questões que até hoje são discutidas em todo o mundo, quando se trata de fotografia de guerra ou testemunhal.

O verdadeiro Clube do Bangue Bangue (Foto: Reprodução)

Até que ponto um fotógrafo deve ou não interferir no cenário? Tanto no livro quanto no filme, Kevin Carter, um dos vencedores do Prêmio Pulitzer, um dos mais importantes do jornalismo mundial, é questionado muitas vezes. Perguntam-lhe por que não salvou a garotinha que estava sendo espreitada por um abutre na área rural do Sudão. Carter não sabia o que dizer, ficava confuso, e tantos questionamentos o afetaram de tal maneira que em 1994 cometeu suicídio dentro do próprio carro. Inalou através de uma mangueira a fumaça que saía do escapamento, chegando ao interior de automóvel com os vidros fechados. O homem que teve sua foto estampada na capa do New York Times morreu pobre e endividado.

Imagem que garantiu a Kevin Carter o Prêmio Pulitzer

Já Ken Oosterbroek foi morto a tiros pelo próprio exército sul-africano durante um conflito armado em que a turma do Clube do Bangue Bangue saiu para registrar uma incursão. Marinovich foi alvejado no mesmo episódio, mas sobreviveu. Greg também ganhou o Prêmio Pulitzer pela autoria de uma foto em que um suposto Inkatha é espancado, depois o banham em álcool e ateiam fogo com um palito de fósforo.

Enquanto o homem corre desesperadamente em chamas, e com o sol ao fundo, tornando a cena mais vívida, um membro do CNA vai até ele e desfere-lhe um golpe de facão. Greg Marinovich registrou o momento preciso, como diria o mestre Henri Cartier-Bresson. Porém, antes disso, o fotógrafo interpelou um dos agressores: “Como você sabe que ele é um Inkatha?” O homem respondeu: “Não sabemos, mas aqui fica uma lição aos outros.” Tal frase é mais que uma simbologia do caos vivido na África do Sul até 1994. Era mais importante surpreender o inimigo mostrando-lhe do que era capaz, mesmo que isso custasse a vida de um não-membro.

Foto premiada de Greg Marinovich

O filme é bom e fiel ao livro, mas a profundidade do original impresso é ainda mais reflexiva. Alguns momentos não foram para as telas, até porque a riqueza de detalhes de João Silva e Greg Marinovich demandaria uma série, não apenas um filme. Uma prática muito comum citada no livro é o necklace que não aparece na adaptação para cinema. O agressor selecionava a vitima, colocava em seu pescoço um pneu com as bordas embebidas em álcool e ateava fogo. Ainda me recordo também que a guerra entre os Inkatha e a CNA custou a vida até mesmo de bebês, mortos de forma extremamente violenta.

Em suma, fica claro que os maiores “vitoriosos” da guerra civil sul-africana foram os africâneres, principalmente os bôeres, que colocaram os nativos africanos para matarem uns aos outros, o que era bem quisto pelos segregacionistas, racistas brancos e dominantes que sempre representaram a minoria continental. The Bang Bang Club  e War Photographer – que conta com exímio realismo a história de um dos maiores fotógrafos de guerra do mundo, James Nachtwey (que inclusive tem uma curta participação no livro e no filme The Bang Bang Club), são duas recomendações para quem gosta do tema fotografia de guerra.

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A Batalha de Acosta Ñu e o Dia das Crianças

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No paraguai, são prestadas homenagens aos mortos no Día del Niño

Brasil matou mais de cinco mil crianças na Batalha de Acosta Ñu (Foto: Reprodução)

Há alguns anos, tive a oportunidade de estudar a perspectiva paraguaia sobre a Guerra do Paraguai graças aos jornalistas e escritores Hugo Montero e Jaime Galeano, da revista argentina Sudestada. A partir disso, em 2007, escrevi uma história de ficção chamada “Rio de Águas Vermelhas” que foi publicada na época e retrata a história de uma família que foi fazer um piquenique às margens do Rio Nhu-Guaçu, onde todos foram assassinados brutalmente pelo Exército Brasileiro.

Me inspirei em alguns fatos que incluem a Batalha de Acosta Ñu em 1869, episódio jamais esquecido pelos paraguaios. Faço questão de destacar que enquanto no Brasil o Dia das Crianças, celebrado no dia 12 de outubro, se resume a fazer algo de bom pelos pequenos, como dar presentes ou levá-los para se divertir em algum lugar, no Paraguai a realidade é bem diferente. O Día del Niño, em 16 de agosto, é marcado por muitas homenagens aos que foram mortos na Batalha de Acosta Ñu,  em Eusebio Ayala, no Departamento de Cordillera, onde a maior parte da força paraguaia era formada por garotinhos segurando varas de madeira que simulavam rifles.

Em suma, foi um conflito desigual, pois Uruguai, Argentina e Brasil não contavam apenas com número superior de soldados, mas também mercenários que faziam as rajadas de fogo cortarem o vento. Aos poucos, pilhas de corpos se espalharam pela pradaria conforme a bandeira da Tríplice Aliança assegurava um morticínio sem precedentes numa guerra sul-americana liderada por ingleses.

Na Batalha de Acosta Ñu havia mais de cinco mil crianças entre 9 e 15 anos. Ainda assim, o Conde D’Eu ordenou que os soldados não deixassem vestígios do abate para não precisarem carregar inimigos feridos. No Paraguai, é de conhecimento popular que a verdadeira história da guerra com o Brasil, Uruguai e Argentina foi omitida pelos países da Tríplice Aliança.

Entre 1865 e 1870, a Aliança matou mais de 90% da população masculina paraguaia. Durante a guerra, estima-se que a cada 100 mil homens paraguaios sobreviviam apenas quatro. O episódio representou a perda de quase 61 mil quilômetros quadrados de extensão territorial. Com o fim das beligerâncias, o Paraguai contraiu uma enorme dívida com o banco inglês Baring Brothers, o mesmo que financiou a participação dos países da Tríplice Aliança.

Descendentes de sobreviventes da guerra contam que quando as crianças caíam mortas sobre o solo paraguaio, as mães se juntavam ao grupo com as armas dos filhos falecidos. A realidade era tão caótica que o Marquês de Caxias renunciou ao posto e enviou uma carta para Dom Pedro II. De acordo com o marquês, a megalomania da Tríplice Aliança chegou a um ponto em que a guerra só terminaria quando toda a população do Paraguai fosse transformada em fumaça, quando matassem o último feto no ventre da mulher paraguaia.

Antes de deixar a Batalha de Acosta Ñu, o Conde D’Eu, um dos maiores criminosos de guerra do Brasil e substituto do Marechal Caxias, mandou atear fogo nos últimos feridos e prisioneiros. Eliminaram todos os inimigos que encontraram e levaram consigo apenas os aliados ainda saudáveis.

“Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui”

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Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí por recomendação do major Fernando Flores

Antigo Hospital do Estado foi fundado por Siqueira (Foto: Reprodução)

O médico gaúcho Otávio Marques de Siqueira, responsável pela construção do Hospital Professor João Cândido Ferreira, onde é hoje a Praça da Xícara, se mudou para Paranavaí em 1949, a pedido do major Fernando Flores. Além de se responsabilizar pela saúde da população, Siqueira foi incumbido de convencer os migrantes a fixarem residência em Paranavaí e não em Alto Paraná.

Otávio Marques de Siqueira veio a Paranavaí pela primeira vez no tempo da Fazenda Brasileira, em 1941, após participar da inauguração da primeira balsa do Porto São José, um recurso que intensificaria as relações entre Paraná e Mato Grosso. Em entrevista à Prefeitura de Paranavaí décadas atrás, Siqueira relatou que naquele ano quando chegou à Brasileira se deparou com um imenso vazio. “Não havia nada por aqui, só quiçaça e capoeira”, afirmou o pioneiro gaúcho que chegou ao povoado por meio da única estrada que existia à época, reaberta pelo Capitão Telmo Ribeiro em 1939.

Siqueira conheceu em Londrina o diretor da 4ª Inspetoria de Terras do Estado, Francisco de Almeida Faria, que lhe mostrou um mapa retangular de Paranavaí. “Ele olhou com o jeitão dele e falou: ‘Isto está muito monótono’, então traçou duas diagonais no mapa e saiu duas avenidas, uma era a Paraná”, enfatizou o médico que teve os primeiros contatos com o cotidiano da colônia em 1945, mas se mudou para Paranavaí em 1949, a convite do major Fernando Flores que em Londrina lhe falou sobre a necessidade de se construir um hospital em Paranavaí.

“Antes de vir pra cá, eu exercia o cargo de diretor da Santa Casa de Londrina”, destacou Siqueira que coordenou a construção do extinto Hospital Professor João Cândido Ferreira, o Hospital do Estado, em área onde está atualmente a Praça Dr. Sinval Reis, conhecida como Praça da Xícara. Após a inauguração, o pioneiro assumiu o cargo de diretor do hospital. “O Dr. Siqueira era um médico muito bom”, comentou o pioneiro gaúcho Severino Colombelli, acrescentando que Otávio Marques salvou muitas vidas.

Siqueira não veio a Paranavaí apenas para atuar como médico. “Meu objetivo era fazer com que as famílias se fixassem aqui e não em Alto Paraná”, revelou. Pioneiros lembram que esse tipo de missão era muito comum, pois todos aqueles que vinham ao povoado para assumir alguma liderança também tinham o papel de atrair novos moradores. A publicidade mais apregoada em Paranavaí era a de que cada propriedade valeria até cem vezes mais no futuro. Porém, muitos diziam que isso não passava de utopia.

A colônia era um local tranquilo em 1949, quando os principais pontos comerciais pertenciam a Carlos Faber, Severino Colombelli, Luiz Ambrósio e José Francisco, irmão de Natal Francisco, segundo o médico que nunca se esqueceu da vez em que pioneiros pegaram uma jaguatirica nas imediações do antigo Cine Ouro Branco.

Em 1950, o desenvolvimento local chamou a atenção do governador Moisés Lupion que enviou a Paranavaí um funcionário encarregado de vender imóveis. “Deu liberdade para que ele fizesse o que bem entendesse, desde que atraísse pessoas com muito dinheiro”, pontuou Siqueira. Logo surgiu uma onda de assassinatos motivados pela posse de terras. De acordo com o médico, as propriedades eram tomadas na marra. “Eu não me preocupei, nem me meti nisso”, declarou.

Saiba Mais

Otávio Marques de Siqueira nasceu em 18 de julho de 1914 em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

Mortes que entraram para a história de Paranavaí

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Conheça os crimes dos anos 1950 jamais esquecidos pelos pioneiros 

Nos anos 1950, Paranavaí ficou conhecida em todo o Paraná como a “Capital do Crime” (Acervo: Fundação Cultural de Paranavaí)

No início dos anos 1950, Paranavaí ficou conhecida em todo o Paraná como a “Capital do Crime”. À época, acontecia pelo menos um homicídio por dia na cidade. Muitos assassinatos eram motivados por brigas envolvendo posse de terras ou comissão na venda de imóveis.

Em Paranavaí, não há registros sobre centenas de crimes que aconteceram nos anos 1940 e princípio da década de 1950. Não são poucos os que foram enterrados como indigentes. Às vezes a família do falecido nem recebia o registro de óbito. Em muitos casos, a única informação discriminada no obituário era “causa mortis desconhecida”, deixando patente o desinteresse das autoridades em investigar muitos crimes. No entanto, restaram os pioneiros que, falando ou escrevendo, trazem à tona alguns dos fatos mais obscuros da história local.

O ceifador de vidas

Um dos personagens mais controversos da história de Paranavaí e região, quando todo o Extremo Norte do Paraná pertencia a Paranavaí, é o migrante paulista João Pires que atuou como jagunço em toda a colônia, principalmente em áreas que hoje pertencem a Loanda e Santa Isabel do Ivaí. Pires se tornou proprietário de uma fazenda conhecida como Derrubada Grande que mais tarde recebeu o nome de Guaritá e depois Nova Aliança do Ivaí.

Pioneiros contam que Pires era um ceifador de vidas, carregava “nas costas” dezenas de mortes, todas motivadas por posses de terras. O padre alemão Ulrico Goevert creditava todas as riquezas do migrante ao sangue que ele derramava por onde passava, sem qualquer remorso. “Durante anos, pensei em silêncio: espera um pouco, ‘Seu Pires’, e chegará o teu dia de cair liquidado no chão!”, revelou o frei no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”. João Pires era famoso pelo requinte de crueldade com o qual tratava suas vítimas.

Ao migrante paulista, não interessava se eram jovens, velhos ou mulheres que viviam nas propriedades que era encarregado de grilar. Se a pessoa resistisse em desocupar a área, Pires “passava fogo” em toda a família, sem deixar sobreviventes. O migrante conquistou fortuna ao prestar serviços para fazendeiros. Naquele tempo, os “quebra milho”, como eram chamados os jagunços, ganhavam muito dinheiro com a grilagem de terras. O pagamento era proporcional a área que conseguiam desocupar. “Num determinado dia, o Pires encontrou seu justiceiro”, contou o frei alemão.

Assassinatos eram motivados por conflitos de posse de terras (Acervo: Ordem do Carmo)

O migrante paulista caiu em uma emboscada e foi alvejado com inúmeros tiros. Mesmo com tantos ferimentos, conseguiu ajuda e foi trazido a Paranavaí na carroceria de um caminhão. Internado no Hospital do Estado, resistiu ao máximo. Porém, cientes da gravidade do estado de saúde de João Pires, os médicos chamaram frei Ulrico para ministrar os últimos sacramentos.

“Fiz a minha obrigação sacerdotal. Algumas horas mais tarde, ele se levantou e chamou o médico, pediu que o curasse só até o ponto de estar em condições de se vingar do inimigo. Afirmou que o mataria a tiros”, lembrou o padre que reprovou a atitude do homem. Logo em seguida, João Pires arregalou os olhos e deu um grito exasperado: “Ali vem o diabo para me buscar!”. Depois disso, o homem caiu morto na cama.

Um amigo do migrante que também teve o mesmo destino foi “Gustavo, o Grande Brigão”. Se qualquer desconhecido o olhasse, o homem já arrumava confusão. Gustavo foi assassinado com tiros à queima-roupa pelo próprio motorista. “No dia do sepultamento, fui ao quarto do falecido e encontrei o cano de uma pistola no lugar de uma cruz”, relatou frei Ulrico.

O abraço da morte

No início da década de 1950, havia dois homens muito amigos que viviam às margens do Rio Paraná. Porém, a amizade foi abalada quando um soube que diante de outras pessoas o outro o criticava. Sentindo-se traído, o homem decidiu se vingar. Pegou o barco e atravessou o rio para encontrar o amigo. Quando chegou lá, no momento em que se cumprimentaram com um abraço, o homem traído cravou a peixeira nas costas do “amigo”, atravessando o coração. O autor do homicídio deixou o homem caído, agonizando até a morte, e voltou para casa.

Antes de chegar à margem, encontrou os dois filhos da vítima e gritou: “Visitei o pai de vocês. Ele os tratará melhor no futuro”. Sem entender, os rapazes seguiram para casa. Quando chegaram em terra firme e viram o pai morto nem pensaram em se vingar. Segundo o frei alemão Ulrico Goevert, os jovens ficaram gratos, pois o homem os maltratava demais.

“Ficou que nem bicho morto que você arrasta e joga no mato”

O pioneiro paulista João da Silva nunca se esqueceu da morte de um jagunço que vivia em Paranavaí e foi assassinado em Cidade Gaúcha, também no Noroeste Paranaense, em uma tentativa frustrada de grilagem de terras. “Quando isso aconteceu, nem enterrado ele foi. Ficou que nem um bicho morto que você arrasta e joga no mato. Ainda tenho lembranças de um turco que foi morto no centro da cidade”, destacou João da Silva em entrevista ao escritor Paulo Marcelo Soares da Silva, registrada no livro História de Paranavaí.

O pioneiro José Francisco Siqueira, conhecido como Zé Peão, se recorda da morte de dois japoneses e um mineiro. “Um peão veio lá da região de Santa Cruz do Monte Castelo buscar o pagamento em Paranavaí. Quando chegou aqui os japoneses falaram que não iriam pagar”, contou. Durante a discussão, o rapaz sacou a arma e atirou nos dois devedores. O motorista dos japoneses ainda tentou intervir, mas foi baleado e morreu. “Outra morte que chamou muita atenção foi de um tal de Canário, assassinado lá em Jurema [atual Amaporã]. Quem mandou matar foi um fazendeiro de Jacarezinho [no Norte Pioneiro Paranaense]”, frisou Zé Peão em antigo depoimento à prefeitura.

Em entrevista ao jornalista Saul Bogoni há algumas décadas, o pioneiro catarinense Carlos Faber citou como inesquecível a morte de dois brasileiros e um japonês em uma das ruas mais movimentadas de Paranavaí no início de 1946. “O japonês tinha uma fazenda e o rolo era por causa de terras. O que matou foi preso depois de alguns meses”, enfatizou.

Pessoas que os pioneiros apontaram como jagunços da Colônia Paranavaí

João Pires, Frutuoso Joaquim de Sales, Gustavo Brigão, Pedro Krüger, Laurentino, Narciso Barbudo, Napoleão, Chico Catingueiro, Pracídio, Macaúba, Canjerana, Maneco Borges, Nocera e Guri.

Curiosidades

Durante a colonização de Paranavaí, poucos eram os fazendeiros que se envolviam diretamente nos conflitos de terras. O costume era contratar jagunços ou “quebra milho” para tratarem da situação. Para isso, eram muito bem remunerados.

Era comum a fuga para o Mato Grosso quando a situação ficava muito complicada para os envolvidos em atividades criminosas em Paranavaí.

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Grileiros tomavam conta da Brasileira

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Em 1935, o povoado era habitado apenas por pioneiros corajosos e posseiros

Intervenção federal na Brasileira só aconteceu em 1936 (Foto: Reprodução)

Na década de 1930, quando a Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, foi abandonada por grande parte de seus habitantes, ficaram apenas os pioneiros mais corajosos e grileiros que logo começaram a tomar conta do povoado.

Em 1935, a Brasileira se dividia entre pioneiros que não queriam abrir mão do novo lar e grileiros que chegavam de todas as partes do país. Nenhum dos remanescentes se deixava intimidar, mesmo com a intervenção federal de Manoel Ribas. “Havia poucos colonos. Naquele tempo, tinha que ter muita coragem pra vir pra cá, então dá pra imaginar que quem se aventurava na Fazenda Brasileira estava sujeito a duas coisas: matar ou morrer”, relata o pioneiro cearense João Mariano.

Sede da Brasileira na década de 1930

Mesmo com poucos moradores no povoado, a briga por terras se acirrou. Posseiros trocavam ameaças sem se importar com os transeuntes, o que já dava a ideia de que algo muito ruim viria depois. Quando o Governo do Paraná decidiu intervir, dando prazo de 90 dias para os grileiros desocuparem as áreas invadidas, a situação já estava fora de controle. “Seria preciso muito mais que isso pra fazer esse pessoal desapropriar as terras”, destaca Mariano, acrescentando que chegou um momento em que ninguém mais trocava ameaças, simplesmente matava o seu desafeto.

À luz do dia, não era raro ouvir tiros vindo de várias direções. Cadáveres eram vistos em meio ao povoado, caídos sobre o solo arenoso. Dependendo da intensidade da corrente de ar, a terra cobria superficialmente o morto. Aqueles que não tinham familiares eram deixados onde estavam, abandonados sobre o chão, até começarem a se decompor. Apenas quando o odor da volatização de cadaverina e putrescina se tornava insuportável que alguém dava um jeito de se livrar do corpo.

“Mas a vida continuava. Afinal, quem tinha peito pra interferir?”, questiona o pioneiro, lembrando que quem quisesse viver na colônia tinha que lidar com a morte como se fosse algo natural e cotidiano. À época, acontecia do moribundo agonizar no chão enquanto suplicava por ajuda. Mesmo assim, as pessoas passavam ao lado ignorando sua presença.

Telmo Ribeiro chegou na Brasileira com um grupo de mercenários paraguaios

A ambição e a ganância em conseguir por meio da força um pouco dos 317 mil alqueires de terras da Fazenda Brasileira custou a vida de muita gente. Estima-se que dezenas de pessoas foram assassinadas nesse período, embora seja impossível precisar o total de vítimas. Muitos crimes eram ocultados pelos jagunços que se livravam dos cadáveres nas imediações do Porto São José, na Lagoa do Jacaré, confluente do Rio Paraná. “Os corpos eram despejados lá porque os jacarés comiam a carne humana, eliminando as provas do crime”, garante o pioneiro mineiro Sátiro Dias de Melo.

Em 1936, quando a Brasileira começou a ganhar fama em todo o Paraná pela onda de crimes, o governo federal pressionou o interventor Manoel Ribas que enviou para cá o tenente gaúcho Telmo Ribeiro, famoso por métodos menos ortodoxos de impor ordem. Com o tenente, conhecido como rápido no gatilho, veio um grupo de mercenários paraguaios de Pedro Juan Caballero. Não levaram mais do que alguns meses para dar fim ao clima de faroeste que imperava no povoado. Segundo pioneiros, melhoraram a situação ao preço de muitas mortes.

Ninguém podia deixar a Fazenda Brasileira

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Quem abandonava o povoado era assassinado a tiros às margens do Paranapanema

Paranapanema, cenário de muitos crimes nos tempos da colonização (Foto: Reprodução)

Na década de 1930, a Fazenda Brasileira, atual Paranavaí, no Noroeste do Paraná, era conhecida como terra sem lei. Os migrantes que vinham para cá em busca de melhores condições de vida não podiam abandonar o povoado. Quem se arriscava a fugir era assassinado a tiros às margens do Rio Paranapanema, com a conivência dos colonizadores.

A história da colonização de Paranavaí é marcada por muita luta e perseverança, principalmente dos colonos. No entanto, o que a maioria da população desconhece até hoje é que em 1930 as regras já eram ditadas por colonizadores e jagunços que se colocavam acima da lei.

No ano em que Getúlio Vargas assumiu como presidente do Brasil, o Paraná ainda preservava 87% de vegetação primitiva. O novo governo federal tinha grande interesse na quase inabitada Vila Montoya, no Noroeste, que pertencia a Tibagi, no Centro Oriental Paranaense. A área então, que era da Companhia Brasileira de Viação e Comércio (Braviaco), foi repassada ao jornalista e político gaúcho Lindolfo Collor (avô do ex-presidente Fernando Collor de Mello), um dos participantes da Revolução de 1930.

No mesmo ano, foram trazidas à Brasileira cerca de 1,2 mil famílias de migrantes, principalmente do Sudeste e Nordeste, para trabalharem na lavoura de café sob regime de colonato. Naquele tempo, já vivia aqui, desde 1929, época do Distrito de Montoya, o falecido pioneiro pernambucano Frutuoso Joaquim de Sales, das primeiras levas de migrantes trazidos pelo engenheiro agrônomo baiano Joaquim Rocha Medeiros.

Frutuoso Sales vivenciou período mais obscuro da história local (Foto: Reprodução)

Sales é sempre apontado como o pioneiro que vivenciou o período mais obscuro da história de Paranavaí, embora sempre evitasse falar a respeito. Preferia assuntos maleáveis, os mais simples e triviais. “Em 1930, ele era o responsável pelo transporte de café, sabia de muitas coisas, mas para não comprometer a si mesmo e a terceiros sempre fugia de temas polêmicos, principalmente quando alguém perguntava sobre os crimes do passado”, declara o pioneiro mineiro Sátiro Dias de Melo que foi muito amigo de Frutuoso.

No ano em que Sales era responsável pelas cargas que entravam e saíam da Fazenda Brasileira, inúmeras famílias insatisfeitas com as condições de trabalho decidiram partir. Com o consentimento do contratante, os colonos recebiam os vencimentos, recolhiam os pertences e eram acompanhados até as margens do Rio Paranapanema, de onde sempre partia alguma balsa com destino ao Estado de São Paulo.

Antes da travessia, colonos e familiares eram assassinados a tiros por jagunços que trabalhavam para os colonizadores. Alguns eram mortos às margens do rio, já outros, abatidos quando estavam de costas, durante a travessia. Segundo relatos de pioneiros, os capangas abriam os corpos das vítimas, extraíam todas as vísceras, enchiam de pedras, costuravam e jogavam no Paranapanema, conhecido pelo enorme cardume de piranhas. As histórias sobre os crimes praticados contra os colonos impediram que muita gente fosse embora da Fazenda Brasileira. Os fatos disseminavam terror e medo.

A morte à espreita no Rio Paranapanema

De vez em quando, alguns migrantes, mesmo cientes do risco, preferiam se aventurar na fuga, o que dá uma ideia da dimensão do padrão de vida subumano imposto aos colonos na Fazenda Brasileira. O pioneiro Natal Francisco viu isso de perto quando deixou Presidente Prudente, em São Paulo, para conhecer o Noroeste do Paraná. Acompanhado pelo irmão José Francisco, guiou um Ford movido a gasogênio até o Porto Ceará, às margens do Rio Paranapanema.

Lá, perguntaram ao balseiro sobre a Brasileira. O rapaz os alertou que deveriam deixar o veículo, caso não quisessem perdê-lo. “Disse também que a gente corria risco de morte vindo pra cá”, informou Natal Francisco em entrevista concedida ao escritor Paulo Marcelo Soares Silva, publicada no livro História de Paranavaí, lançado em 1988. Muitos migrantes chegavam à Fazenda Brasileira partindo de uma estrada que ligava Presidente Prudente, Porto Ceará, Povoado de Cristo Rei, Gleba-1, Piracema e Porto São José.

Depois de oito dias na Brasileira, os irmãos Francisco estavam retornando ao Porto Ceará quando ouviram o som de um acordeão. Surpresos, mas curiosos, adentraram a mata. Antes que vissem qualquer coisa, uma mulher gritou. “Pelo amor de Deus, não mata nóis. Tamo fugindo, mas tamo quase morto.” Mesmo assustados, Natal e o irmão ligaram as lanternas para ver se tinha mais alguém ali. O marido da moça estava caído no chão com a roupa rasgada e uma sanfona sobre o peito todo ensanguentado.

O casal de colonos enganou os jagunços e fugiu da Fazenda Brasileira. Às margens do Rio Paranapanema, improvisaram uma jangada para navegar até o Porto Ceará. Enquanto isso, alguns capangas chegaram até a beira do rio. De lá, atiraram e acertaram o rapaz que sobreviveu com a ajuda dos irmãos Francisco.

Curiosidade

Em abril de 1931, quando o interventor e general Mário Tourinho retomou as terras do Noroeste para o Governo do Estado do Paraná, o interventor estabeleceu por decreto que nenhuma pessoa ou família poderia ter títulos de propriedade que ultrapassassem 200 hectares, iniciando assim uma nova ordem na Fazenda Brasileira.