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Não me incomoda saber que há pessoas que não gostam de mim
Aceito esse fato como parte de uma realidade diversa em que cada um tem suas preferências
Não me incomoda saber que há pessoas que não gostam de mim. Não vejo nada de errado nisso. Aceito esse fato como parte de uma realidade diversa em que cada um tem suas preferências e naturalmente acaba por pautar sua vida a partir daí.
Isso é normal, e não me sinto realmente desconfortável em reconhecer que sempre vai existir gente que não simpatiza comigo. Não se pode abraçar o mundo e, se você tenta, provavelmente você se machuca desnecessariamente.
Esse tipo de reflexão me traz lembranças do jardim de infância, quando uma criança chorava porque algum coleguinha não queria brincar com ela porque não gostava dela. Talvez houvesse algum ruído, problema de comunicação, e logo a professora tomava a decisão de intervir para tentar aproximá-los.
Então ela pegava a mão de um coleguinha e o levava até o outro para que apertassem as mãos e se abraçassem. E selava a “união” com algo como: “Agora vocês são amiguinhos!” Funcionava? Sim, mas não todas as vezes. Desde sempre, e por um condicionamento social, acreditamos que se alguém não gosta de nós ou se não gostamos de alguém temos que fazer o possível e o impossível para tentar mudar isso.
Claro que se o problema de gostar ou não gostar envolve ações equivocadas, extemporâneas ou mal-entendidos, é possível fazer algo a respeito. Mas e quando não há? E se uma pessoa simplesmente não gosta de você? Da sua personalidade?
Fomos criados de uma forma a crer que quando uma pessoa não gosta de nós precisamos corrigir isso, descobrir quem está errado. É como se sempre houvesse alguém certo e alguém errado. Então devemos nos esforçar e apresentar motivos para que gostem da gente, nos respeitem e nos amem. Podemos tentar, claro. Mas e se não funcionar?
Devemos seguir em frente, até porque acredito que mais importante do que gostar é respeitar. Isso sim faz uma grande diferença em nossas vidas como seres sociáveis. Afinal, você pode não gostar de uma pessoa, mas deve respeitá-la, porque isso é uma premissa do bom convívio e ninguém sai perdendo.
O mundo pode parecer um lugar estranho, sombrio e realmente duro se você se sentir exaustivamente incomodado toda vez que souber que alguém não gosta de você. Mas a verdade é que ninguém é pior ou melhor que ninguém por não ser apreciado ou por não simpatizar com o outro.
Somos seres complexos, com interesses bem diversos, e usamos isso como referência para nos aproximar ou nos afastar das pessoas em algum nível. Tendo isso em mente, creio que temos que ser cuidadosos para não nos anularmos e também não anularmos os outros nessa tentativa de ser aceito e conquistar a apreciação de alguém.
Ademais, não tenho nenhum problema em apertar a mão e tratar bem quem não gosta de mim, até porque não vejo motivo para agir de outra forma. Acredito que a cordialidade tem importante papel na manutenção da vida. E não existe falsidade nisso, mas apenas a preponderância do respeito que deve ser maior do que nossas antipatias.
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Nascemos para a liberdade
Nascemos para a liberdade, mas nos condicionamos facilmente às prisões. Isto porque elas são sedutoras, e nos parecem mais viáveis, alcançáveis. Temos uma intrigante capacidade de rejeitar e negar a liberdade que um dia deu mais sentido às nossas vidas.
A alegria de sonhar como nos tempos de criança não raramente cede espaço ao temor da desilusão, e as incertezas de qualquer realização se transformam em fuga e rejeição. E assim, desaparecemos pouco a pouco. Quem sabe, assumimos a identidade daquilo que outrora temíamos.
É triste morrer vagarosamente sem reconhecer a própria finitude. Há dias que assumem a forma de pesadelos, mas que são naturalizados de forma a não parecerem tão ruins. Então busca-se viver somente, e não se sabe se verdadeiramente, nos finais de semana, nos feriados, quando se vela um pesar que parece impossível de enterrar.
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Quando Vico planejou a própria morte
Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos
Não me esqueço de um amigo que quando éramos adolescentes planejou a própria morte. Naquele tempo eu o chamava de Vico porque ele era fã do filósofo italiano Giambattista Vico. “A razão é a consciência do ser, não o conhecimento dele. A partir do nosso raciocínio, podemos ter conhecimento da nossa existência, mas não o conhecimento total de quem realmente somos”, dizia meu amigo inquiridor que cada vez mais parecia o filósofo que tanto admirava.
Vico, assim como seu mestre homônimo, levava uma vida frugal. Rendido ao desejo do saber, pouco se interessava em socializar. Era casto por natureza e da vida aspirava o entendimento do que definia como pequenas coisas existenciais. Quando andávamos pelas ruas com a simples motivação de respirar o mundo e sentir a vibração da vida que habita a singeleza, parávamos, sentávamos no meio-fio e fazíamos anotações.
No centro de Paranavaí, algumas pessoas riam e de longe zombavam do nosso comportamento julgado extemporâneo. E nós ríamos também, sem precisar abrir a boca e mostrar os dentes. Afinal, a fantasia é a memória dilatada e para sorvê-la é preciso convidá-la. E a nós estrambótica era a deletéria incompreensão, menos digno de zombaria e mais de comiseração. Escrevíamos sobre pessoas, animais, plantas e objetos. E todas as constatações eram discutidas livremente em um grupo pequeno que fundamos através da internet com o nome de Caballaria.
Principalmente nos finais de tarde, observar a vida ao longo de uma hora era um exercício recompensador, porque era o único período do dia em que nos tornávamos alheios a nós mesmos, nossas fragilidades, falhas e cegueiras. “Olha esses moleques à toa! No meu tempo, não tinha essa vagabundagem juvenil”, comentou um senhor engravatado de meia-idade levando a amante para almoçar em um restaurante na Rua Manoel Ribas.
Observávamos sem reagir às críticas e piadas que ouvíamos com certa frequência. Não faria sentido estar lá para intervir, mas tão somente inferir. Do contrário, tudo deixaria de ter um propósito. A maior lição subentendia a missão de nos tornarmos aquilo que nos furtava a atenção. Num primeiro momento, éramos como voyeurs. E creio que aos olhos que nos miravam, não passávamos disso, embora não nos incomodasse sobretudo. A verdade é que logo não existíamos apenas dentro de nós, mas também fora, não mais reduzidos aos ocos limites da nossa canhestra individualidade.
Em pouco tempo o barulho trivial e a movimentação rotineira de carros, motos, caminhões e pessoas não mais equacionavam nossa concentração. Sentados, ouvíamos tudo se perdendo em meio a um barulho tão difuso e pleonástico que o próprio som cotidiano se tornava irrelevante. Não exigia mais respostas dos nossos sentidos. E ficávamos lá, atentos ao que chamávamos de Orquestra do Mouco, nada mais que o silêncio que soava como o próprio rearranjo da natureza. E assim como as coisas mais simples e implícitas da vida, ele ganhava formas ocasionalmente pouco perceptíveis.
Lugares, pessoas, animais e objetos requeriam de nós um exercício diário de elucubração e compreensão. Eles mudavam diante de nós e nós mudávamos diante deles, provando que um olhar desatento poderia nos entorpecer. Acreditávamos que se tudo que víssemos a cada dia transparecesse comum ou ordinário era porque nos faltava habilidade para ir além. Em síntese, o pouco da percepção corria o risco de se confirmar como um danoso arquétipo da insipiência, isso porque ele nos empurrava para as armadilhas das nossas limitações.
Numa dessas longevas observações, uma vez um filhote de bem-te-vi caiu em cima da minha mochila posicionada na calçada, atrás das minhas costas. Não vi nem ouvi nada, mas senti a repentina aragem que tocou minha nuca como um sopro. Quando me virei, um gato siamês estava prestes a abocanhar o filhote. Consegui afastá-lo com as mãos apesar da sua ruidosa resistência. Percebendo que o passarinho não apresentava ferimento, escalei a árvore e o coloquei novamente no ninho antes de partir.
Depois, caminhando perto da Igreja São Sebastião, notei que o farto felino continuava nos acompanhando e se ocultando entre os arbustos. Só que era barulhento demais para passar despercebido. Perto da Sanepar, ele pendurou na minha mochila, fugindo de um cão grande e mestiço, com características de rottweiler, que tentou atacá-lo. Então o cachorro recuou assim que Vico lhe lançou um grande biscoito canino. Ele sempre carregava petiscos para animais dentro da mochila.
Na Avenida Lázaro Vieira, o siamês continuou nos seguindo, indo de um lado para o outro e roçando o rabo entre as minhas pernas. E o cachorro maior veio logo atrás, remansoso e mantendo os olhos em nossos passos. Mais adiante, outros cães e gatos endossaram a marcha. Contei doze animais. De repente, para minha surpresa, um jovem no quintal da própria casa arremessou com violência uma grande manga verde contra nossos seguidores. Errou o alvo e atingiu Vico na cabeça.
Ele caiu de frente com o corpo estendido sobre o asfalto e os braços abertos. Vico não se movia. Continuou estatelado no chão morno com os olhos fechados, parcialmente cobertos pelos cabelos castanhos, e as mãos e pernas levemente raladas. Os cães começaram a uivar e os gatos se esfregaram na cabeça e no dorso de Vico. Desesperado, o agressor adolescente levou as mãos à cabeça e correu para dentro de casa.
Me aproximei do portão, bati palmas e vi o rapaz escondido logo abaixo da janela. “Você matou meu amigo, cara! Sua brincadeira tirou a vida dele! Como você atira manga na cabeça das pessoas que passam perto da sua casa? Qual é o seu problema?”, questionei energicamente. Dois cães se aproximaram da grade, como se quisessem invadir a casa. O garoto não respondeu, mas ouvi seu choro suprimido e ele balbuciando consigo mesmo que seu pai iria matá-lo.
No chão e cercado por animais, Vico ainda não se mexia. O cão grande e mestiço tentou empurrá-lo em vão com o focinho. Alguns curiosos assistiam de longe, indecisos em se aproximar. Cinco minutos após a queda, ele se levantou e sorriu apesar das escoriações e do galo na cabeça. Dei uma gargalhada e seguimos nossa caminhada.
Atraídos pela ração e pelos petiscos que vazavam por um pequeno furo proposital no fundo da mochila, os animais começaram a se dispersar quando perceberam que já não restava mais alimento. Subindo a Avenida Distrito Federal, notamos que a turma se foi – ficou apenas a dupla. Chacoalhei a minha mochila também vazia, onde eu guardava o caderno em um compartimento menor, e sorri. “Amanhã eles voltam. Eles sempre voltam”, comentou Vico.