David Arioch – Jornalismo Cultural

Jornalismo Cultural

Archive for the ‘Avenida Distrito Federal’ tag

Quando eu comprava cigarro para os meus pais

without comments

Suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado

embalagem-free-3155

Eu e meu irmão íamos até o bar da Dona Maria comprar Free (Foto: Reprodução)

Na infância, eu comprava cigarro para os meus pais. Sim, eu e todos os meus amigos e colegas que nasceram nos anos 1980 e tinham pais fumantes. Minha mãe abandonou o vício na minha adolescência, mas meu pai, um tabagista inveterado, faleceu em decorrência de um câncer de pulmão. Começou a fumar muito cedo, quando astros de Hollywood ajudaram a transformar o cigarro em um obtuso símbolo de charme, rebeldia e sensualidade.

Nunca perguntei porque ele fumava, só que um dia, ainda criança, comentei com minha mãe que “só o trem a vapor tinha motivo para soltar fumaça, já que o movimento dele dependia da queima do carvão”. Desde pequeno, eu não via graça na ideia de colocar algo na boca simplesmente para soltar fumaça. Eu associava aquela imagem com a da fumaça preta que saía dos escapamentos dos caminhões velhos que víamos nas ruas. Óxido de carbono, óxido sulfúrico, óxido de nitrogênio e hidrocarboneto aromático, fiquei sabendo mais tarde.

“Quem sabe as pessoas que fumam sejam como os escapamentos dos caminhões, a diferença é que soltam menos fumaça porque são menores. E talvez ela seja menos suja porque sai diretamente da boca”, escrevi num caderno quando tinha sete ou oito anos. Nunca coloquei um cigarro na boca. Também não me gabo disso. Não! Minto! Coloquei sim, aquele de chocolate lançado pela pan e que trazia uma criança negra sorrindo na caixinha. Não vou negar. Fingi fumar com o cigarrinho de chocolate entre os lábios. Afinal, a ideia de fumar, por pior que fosse, preservava seu ardil romanesco nas brincadeiras.

Aos dez anos, suspeitei que o inventor do cigarro tivesse errado a escolha dos ingredientes e criado algo indesejado. Quem sabe a ideia inicial fosse fazer com que saísse algo de bom da boca das pessoas em vez de uma fumaça ruça e malcheirosa. E a ironia já subsistia no fato de que a fumaça por si só era suspeita na sua nebulosidade, como um mandrião velando suas verdadeiras intenções.

Comecei a comprar cigarros com sete anos, quando morávamos na Rua Pernambuco. Eu e meu irmão Douglas caminhávamos 100 metros para buscar um ou dois maços de Free em um bar na Avenida Distrito Federal. Por causa da fumaça, entrar lá era como subir num palco instantes antes de um show. A diferença era que o gelo seco não escurecia como a fumaça do cigarro. Nem fedia como aqueles corpos macerados pelo vício em álcool e tabaco.

Alguns sujeitos tossiam como se estivessem prestes a vomitar ou expelir pedaços de tecido do organismo. Aquela era a realidade dos dependentes mais figadais, e me vi diante dela nos primeiros anos de vida. Eu gostava do lugar, de testemunhar a salada social composta por pessoas das mais diferentes faixas etárias – onde pobres e ricos, vagabundos e trabalhadores se misturavam sem formalidades.

Ações, expressões e reações de alegria, tristeza, inconformismo, cólera, sabedoria, ignorância, tudo poderia ser encontrado no bar da Dona Maria, mãe do meu amigo Fabiano. Porém, nenhum sentimento parecia mais destacável do que um híbrido de ilusão e decepção. Naquele lugar, homens de poucas palavras chegavam sorrindo e partiam chorando assim que as aparências descortinavam as essências.

Junto ao balcão, Dona Maria mantinha um taco de beisebol, apelidado de “Juízo”, para conter os desordeiros. Repreendia bêbados, dava conselhos e às vezes alimentava os mais miseráveis. Era visceral a forma como seu semblante mudava de um segundo a outro caso alguém fizesse algo de errado. Chapas (carregadores de mercadorias), vendedores ambulantes e artistas de rua passavam por lá com frequência. Um dia ganhei um quadrinho de madeira com a minha imagem entalhada por Maneta, um escultor que viajava por todo o Brasil de carona.

Enquanto alguns sentavam diante das mesas laterais, outros preferiam o balcão, sentindo o aroma das conservas, ouvindo o som dos congeladores e da TV com caixa de madeira. Incomum era encontrar alguém no bar que não fumasse. Eu ziguezagueava pelo espaço, tentando evitar inalar a fumaça que se movia pelo ambiente como uma serpente tentando me engolir. Pior ainda era quando meu nariz entupia por causa da rinite alérgica.

Diante do balcão, eu sentava em um banquinho, balançava as pernas, pedia dois maços de cigarro e observava os doces das vitrines. Assim que Dona Maria me entregava as duas carteiras de Free, eu pagava, guardava os maços no bolso esquerdo da bermuda e o troco no bolso direito. Saía de lá desviando da fumaça e ouvindo gargalhadas e gritos de três ou quatro homens entretidos em uma partida de truco. “Ladrão! ladrão! Isso que tu é, seu porco malandro!”, berrou numa tarde um homenzarrão barbudo com voz tão grave que meus tímpanos latejaram. Me senti como se estivesse diante do próprio demônio.

Ele sentava sobre duas cadeiras em vez de uma, e sua mão chegava a ser maior do que a cabeça dos seus adversários. Assustado, assisti as cartas miúdas desaparecendo entre suas mãos. Era como se fossem miniaturas em papel. De repente, o sujeito olhou para mim e disse: “Que foi, garoto? Perdeu alguma coisa?” Sem abrir a boca, movimentei a cabeça negativamente e me afastei. Antes de pisar na calçada, vi ele tirando um Belmont do bolso da camisa, o acendendo e o tragando com tanta sofreguidão que em poucos segundos o cigarro foi reduzido às cinzas, restando apenas um filtro diminuto resvalando dentro de um cinzeiro de madeira.

Sua boca também era descomunal. Quando ele mirou o teto e expirou a fumaça, foi como se uma nuvem pesada demais para suportar a própria sustentação se formasse sobre sua cabeça, como uma névoa eivada e gulosa. Aquele era o Terebintina, fumante e bebedor profissional, diziam. Trabalhou para as maiores empresas de tabaco e destilados do Brasil na década de 1980. Não era difícil encontrar jovens e até pessoas mais velhas que sonhavam com essa vida. Beber, fumar e nada mais, sim, era o ideal de muita gente. Em casa, enquanto minha mãe sovava uma massa de pão na cozinha, comentei o que aconteceu no bar. Ela se divertiu com o meu relato embora não conhecesse o gigante mal-encarado.

Naquela época, cheguei a acreditar que o mundo era dos fumantes. Por onde eu andasse, falava-se em cigarro. Na TV, no rádio e nos outdoors perseverava a glamourização do fumo. No centro, na saída da escola, eu sempre via embalagens vazias e bitucas de cigarro próximas do meio-fio. Ofereciam até amostras grátis. E, claro, alguns tabagistas eram mais educados do que outros. Minha mãe, por exemplo, evitava fumar perto de mim e do meu irmão. Quando notava que eu o observava, meu pai copiosamente passava o cigarro da mão direita para a esquerda, tentando ocultar a fumaça por trás do livro, e declarava: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.”

Pela manhã, vez ou outra, eu assistia minha mãe trocando os lençóis queimados pelas brasas do cigarro. Talvez aqueles furos com bordas negras significassem mais do que imaginávamos. Afinal, eram disformes e incertos como pequenos tumores. “Ontem, disse para mim mesmo que era o último. Eu não quis imaginar que seria o fim, que eu não fumaria mais até a minha morte. Preferi pensar que se eu parasse agora, teria a possibilidade de fumar de vez em quando”, escreveu Henri-Pierre Jeudy em “O Último Cigarro”.

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





O amor e a romã

with 2 comments

Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta

Eu nos tempos de amizade com Seu Onofre (Foto: Arquivo Familiar)

Eu nos tempos de amizade com Seu Onofre (Foto: Arquivo Familiar)

Ao longo da vida, sempre ouvi alguém dizendo que o amor, confundido com paixão, é arrebatador, como se feito de fagulhas de insipiência. Quando chega até você o cega e o torna avesso ao juízo e à razão das coisas serenas. O consome de forma inesperada, deixando os lábios ressequidos como chão tracejado pela estiagem severa. Quantas histórias conheci de suicídio por amor; pessoas saltando de prédios, lançando carros contra árvores, se enforcando, consumindo estricnina e atirando contra a própria cabeça. Jamais entendi como o amor, tão colorido simbolicamente, poderia ter compleição tão funesta.

O amor não deve ser como o luto, um manifesto de pesar. Nem merece ser relacionado à morte se abarca na sua essência os destemores da luz. O coração que ama em abnegação só obscurece quando deixa de bater, este sim fato irremediável do nosso epílogo. Mas enquanto vive é corado e robusto como uma manga colhida em março. Está além do bem e do mal. O amor é belo na literalidade, na pureza de sua semântica. Nem por isso unilateral ou menos distorcido e depreciado por imperícia, fabulações e desconstruções de sentido.

Não que não haja dor no amor, afinal ela é inerente à vida e nos envia iterados sinais de que o sofrimento também dignifica a existência; ensina que somos pechosos, frágeis e efêmeros como todos os seres que habitam a Terra. Porém, um sentimento torna-se nocivo somente se assim o permitirmos. Pelo menos é o que me mostra a vida desde que comecei a reconhecer o seu enredamento e profundidade.

Com não mais que sete anos, eu morava com meus pais e irmão em uma velha casa na Rua Pernambuco. À época, uma parte da população de Paranavaí ainda tinha o costume de realizar velórios na sala da própria residência. Um dia, do outro lado da rua, a pouco mais de 50 metros de casa, caminhando e passando os dedos da mão direita pelo muro pintado com cal, parei em frente a um portão onde vi e ouvi pessoas num choro tacanho, conversando e coçando os olhos.

Estavam ao redor de um caixão preto tão lustroso que parecia um sapato desmesurado recém-engraxado. A sala era pequena e as pessoas, dependendo da estatura, quase roçavam o umbigo e o peito na cabeça da falecida para chegarem ao banheiro. Por causa da distância, eu não conseguia ver seu rosto coberto por um tecido níveo que mais lembrava um véu de noiva. Sabia que era mulher porque ouvi alguém dizer que a finada era a Dona Estela. “Ué, tão enterrando ela com pano de festa?”, me perguntei num rompante de espontaneidade e singeleza.

Na manhã seguinte, quando saí pra comprar pão, encontrei Seu Onofre, marido de Dona Estela, caminhando a passos lentos, rindo sozinho, e sem apontar os olhos para nada que o cercava nas imediações de uma padaria na Avenida Distrito Federal. Parecia num transe solene e talvez disparatado na concepção de alguns. Me aproximei, o cumprimentei, e num ato tipicamente irrefletido de criança, questionei: “Seu Onofre, por que o senhor tá rindo se sua mulher morreu ontem?”

Então ele continuou em silêncio por três ou quatro segundos enquanto me observava e ajeitava o penúltimo botão superior de uma camisa florida, dessas que os aposentados usam quando saem de férias para um paraíso tropical. Sua tez e seus olhos reluziam tanto que eu podia ver o meu pequeno reflexo distorcido nas suas pupilas amendoadas e aveludadas.

“Olhe, David, você ainda é muito criança, não sei se vai entender, mas vou lhe revelar um segredo. Não me sinto feliz, só que me comprometi em reencontrar um novo sentido na minha vida. Antes de Estela falecer, ela sabia o quanto eu era dependente dela. Ela foi minha primeira e única companheira por mais de 40 anos, desde a adolescência. Então sabe o que ela fez quando ficou doente e lhe contaram que não viveria por muito tempo? Não se lamentou. Tirou um caderninho de dentro do criado-mudo, pegou uma caneta e planejou minha vida, meu dia a dia pelos próximos cinco anos. Ela sempre soube que sou relaxado. Disse que era pra eu seguir direitinho, assim não me sentiria perdido. Se antes eu conseguisse recomeçar uma nova vida, eu poderia abandonar o caderninho. Senão, bastaria reiniciar as tarefas. O primeiro dia é hoje. Dê uma olhada!”

Peguei o caderninho com as duas mãos e lá estavam as primeira sugestões. “Querido Onofre, meu grande amor, se levante amanhã, tome um bom banho, vista a camisa florida que está no primeiro cabide, a bermuda bege da segunda gaveta e as sandálias castanhas que estão na primeira fileira da sapateira. Vá até a padaria caminhando vagarosamente e sorria. Lembre-se da primeira vez que nos vimos, de quando nos casamos, de quando Laurinha nasceu. Não deixe de sorrir, mesmo que as pessoas o julguem. Ignore toda a negatividade. Mais cedo ou mais tarde esse exercício há de contagiar o seu coração, transformando a dor em uma nova forma de amor.”

Devolvi o caderninho e caminhamos até a padaria. Lá, me pagou um doce e uma sodinha. Preservou o sorriso a maior parte do tempo, inclusive quando me relatou as dificuldades que passaram nos anos 1950 em Paranavaí. “Nossa casinha era praticamente um ranchinho. A gente não tinha geladeira, então só podia comprar alimento que não estragasse rápido. Éramos jovens, muito jovens, só que felizes num lugarzinho no meio do mato”, disse, já com os olhos marejados.

Na volta, notei que durante o trajeto Seu Onofre acariciava com esmero a aliança na mão esquerda. Havia um silêncio morno e abafado como o de um escafandro que se misturava aos sons de motos, carros e caminhões atravessando a Avenida Distrito Federal. De repente, a rescendência desconfortável daquela fugaz amostra de poluição foi ofuscada pela olência uniforme e sutil de um buquê de lírio azul transportado a pé por uma jovem funcionária de uma floricultura. “Era a preferida da Estela. Ela chamava de Xodó Azul”, comentou Seu Onofre num riso lacônico.

Em frente ao portão de sua casa nos despedimos. Quando eu estava me afastando, gritou meu nome e pediu que eu o aguardasse. Logo voltou trazendo nas mãos de palmas rosadas uma porção de romãs colhidas no quintal. “Que nunca falte amor na sua casa, assim como nunca faltou na minha”, falou com um lhano sorriso. Continuei visitando Seu Onofre até 1993, quando morávamos no Jardim Progresso. Com o tempo, minha rotina mudou e a dele também, até que perdemos contato.

Um dia, em 2002, recebi uma carta assinada pela sua filha Laurinha que vivia em Curitiba há mais de 15 anos. Achei até que a correspondência foi enviada por engano, pois já não me recordava dela. Quando abri o envelope, encontrei sementes de romã, trazidas da Palestina, e uma pequena carta. “Meu querido e bom amigo David, o que morre hoje, renasce amanhã, desde que o coração assim o aceite. Saiba que nem mesmo o Mar Morto conseguiu ofuscar o perfume das romãs que irradiavam até Jericó”, escreveu Seu Onofre.

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





A cruz que evitou uma tragédia

with one comment

Cruz da Igreja São Sebastião impediu desastre de avião

Cruz que serviu de referência para um piloto que se perdeu em Paranavaí (Acervo: Ordem do Carmo)

Em fevereiro de 1953, a cruz da Igreja São Sebastião, então situada no ponto mais alto de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, serviu de referência para um avião que sobrevoava a cidade, evitando assim uma tragédia.

Em maio de 1952, o bispo Dom Geraldo de Proença Sigaud, de Jacarezinho, no Norte Pioneiro Paranaense, ciente de que a única igrejinha de Paranavaí não atendia mais a demanda populacional, autorizou o frei alemão Ulrico Goevert a construir uma igreja matriz. “Era um assunto de urgente necessidade”, afirmou o padre no livro “Histórias e Memórias de Paranavaí”.

Naquele tempo, a cidade tinha um cruzeiro que se situava na atual Avenida Distrito Federal, esquina com a Rua Antônio Felippe, em frente a igrejinha criada em 1944 e que foi ampliada. O cruzeiro fez parte do cotidiano da comunidade local até 1952, quando foi construída a igreja matriz. “Serramos os paus do cruzeiro e fizemos a nova cruz da torre da igreja com 25 metros de altura”, lembrou o pároco alemão.

No mesmo ano, a energia elétrica chegou a Paranavaí, então a cruz que ficava no topo da igreja recebeu iluminação pública pela primeira vez. “Até então quem fornecia energia elétrica para a igreja era o pioneiro Leodegário Gomes Patriota que tinha um gerador no Posto São Cristovão”, declarou frei Ulrico.

Frei Henrique relatou o fato para a revista alemã Karmelstimmen (Acervo: Ordem do Carmo)

A cruz não servia de alento apenas aos religiosos de Paranavaí, mas também para os pilotos que se perdiam quando o mau tempo prejudicava os voos. “A nossa cruz, iluminada no alto da torre da Igreja São Sebastião, já deu um excelente resultado. Numa noite, salvou a vida de três pessoas que viajavam de avião e atravessaram uma tempestade”, escreveu o padre alemão Henrique Wunderlich para a revista alemã Karmelstimmen em 9 de fevereiro de 1953.

O piloto, que hoje ninguém sabe de onde vinha e para onde ia, ao avistar a cruz reconheceu que o lugar era uma cidade e iniciou uma série de sinalizações, na expectativa de que alguém entendesse a mensagem visual e o socorresse. Todos os moradores que tinham carros, jipes ou caminhonetes foram até o campo de aviação, onde formaram duas filas luminosas com os faróis. Sem demora, o avião que estava quase sem combustível aterrissou em segurança. Na hora do desembarque, o piloto tirou o boné e disse: “Deus com sua cruz salvou nossas vidas.”

Frase do padre alemão Ulrico Goevert

“A cruz era o ponto mais alto de Paranavaí e aos seus pés estendeu-se a cidade.”

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar:





O temido João Camochina

without comments

Camochina ganhou fama pelo hábito de espoliar propriedades vizinhas

Inspetoria de terras (ao centro), onde Doubek sugeriu que Borges entregasse o sítio a Camochina (Foto: Reprodução)

Dentre os pioneiros de Paranavaí, no Noroeste do Paraná, poucos sabem da história do migrante João Camochina. Polêmico, o homem temido ganhou fama durante a colonização pelo hábito de se apossar das propriedades vizinhas.

Camochina chegou a Paranavaí nos anos 1940 com o mesmo objetivo de muitos pioneiros: comprar as terras comercializadas pelo Governo do Paraná. A primeira propriedade adquirida pelo migrante foi um sítio de 59 alqueires em um lugar conhecido como Água da Cobra. Lá, estendeu os limites de sua propriedade até as áreas vizinhas. Um dos prejudicados pela atitude de João Camochina foi o pioneiro mineiro Arlindo Francisco Borges que morava em um sítio de 32 alqueires na Gleba 2.

Tudo começou em 1948, quando o grileiro se interessou pelas terras de Borges. Em vez de propor negócio, Camochina usou uma tática muito comum na época. Reuniu parte do gado que ficava em seu sítio e o levou até as terras de Arlindo Francisco. Depois o invasor foi até a inspetoria de terras, administrada pelo marceneiro Hugo Doubek, denunciar que Borges estava vivendo em “sua propriedade”. “Minha terra ficava num canto da dele. Quando isso aconteceu, fazia dois anos que eu tinha derrubado o mato e formado a roça”, relatou Arlindo Francisco em entrevista ao jornalista Saul Bogoni décadas atrás.

No mesmo período, João Camochina espoliou outras propriedades, como as dos pioneiros Guerino Pomin e Justiniano. Os dois migrantes foram até a delegacia e denunciaram o grileiro para o sargento Marcelino, a maior autoridade policial da colônia. “Ele foi preso, mas soltaram logo. Aí me aconselharam a esperá-lo atrás de um toco. Graças a Deus, eu não tinha essa natureza”, disse Borges. Naquele tempo, poucos sitiantes lesados tiveram coragem de denunciá-lo.

Após alguns dias, Arlindo Francisco foi convidado a ir até a inspetoria conversar sobre o acontecido. Hugo Doubek disse ao mineiro que o melhor seria entregar as terras. “Falou que o Camochina era ruim e poderia me causar algum mal. Eu já estava sendo oprimido e percebi que o Doubek ficaria do lado dele, então saí mesmo. Eu sabia que se eu resistisse teria de matar ou morrer”, enfatizou. Mais tarde, Camochina procurou Borges e prometeu dar a ele uma novilha mojando, dois mil e quinhentos réis e um capado de cinco arrobas. “Me deu isso em troca do estrago que o gado fez na minha roça. Aqui era assim, quem tinha dinheiro fazia o que queria e quem não tinha, perdia. Era melhor perder para não entrar em outros traços piores da vida”, justificou, acrescentando que nunca recebeu nada pelo sítio perdido.

O presente jamais recebido

Em 1953, Arlindo Borges foi chamado até a Coletoria Federal, onde informaram que ele devia cinco anos de impostos atrasados do sítio da Gleba 2. Ao deixar a coletoria, Borges foi atrás de João Camochina que estava em um açougue comendo churrasco. “Expliquei a situação a ele e marquei da gente se encontrar em frente ao prédio onde fica a Casas Pernambucanas [na Rua Getúlio Vargas] pra resolver isso”, declarou.

Rua Getúlio Vargas no dia do encontro entre Arlindo Borges e João Camochina

Naquela tarde chuvosa de sábado, Arlindo e Camochina foram até a Coletoria Federal. Para surpresa de Borges, o grileiro assumiu a responsabilidade dos impostos. Resolvida a situação, os dois foram embora juntos e se separaram na esquina da Avenida Distrito Federal com a Rua Antonio Felipe. “Me agradeceu muito, mas me senti humilhado quando disse que enquanto eu o considerava um homem, ele me via como um cachorro. Pediu que eu o perdoasse e emendou falando que me daria um presente”, revelou.

Na quarta-feira, Arlindo Borges, que estava vivendo em um sítio de três alqueires na Água do Quintino, ficou sabendo da morte de João Camochina. “Ele colocou um homem lá no sítio que era meu. O tal instalou uma cancha de bocha e depois o Camochina mandou ele sair. Indignado, o homem quis levar as tábuas e houve um desentendimento”, contou. Durante a discussão, o homem matou o grileiro. “Eu nunca soube qual era o presente que o Camochina ia me dar”, comentou Borges. Em entrevista ao jornalista Saul Bogoni há algumas décadas, o pioneiro catarinense Carlos Faber deixou claro que esse tipo de morte era comum. “As brigas eram sempre por causa de terras”, sentenciou.

Contribuição

Este é um blog independente, caso queira contribuir com o meu trabalho, você pode fazer uma doação clicando no botão doar: